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Racismo, discriminação racial e o futebol

Este tema precisa ser sempre debatido e enfrentado, na medida em que o desporto tem um protagonismo no combate ao racismo e ao preconceito racial. O que ocorre nas arenas desportivas é um reflexo da sociedade, razão pela qual uma resposta enérgica e educativa das autoridades competentes servirá de exemplo em razão de sua natureza pedagógica.

O futebol tem a graciosa virtude de unir culturas e povos, sem distinção de credo, raça ou origem. A linguagem da bola é universal. Contudo, os recentes episódios de discriminação racial que ocorrem no Brasil e no mundo demonstram, de forma inconteste, que o preconceito é uma chaga que envergonha o nosso país e que tem que ser erradicada de uma vez por todas.

O jornalista e historiador Laurentino Gomes, na obra 1889[1], explica que o Brasil era viciado em escravidão e resistiu, enquanto pôde, às campanhas abolicionistas, sendo que em meados do século XIX, a situação chegou a tal ponto que a Inglaterra, maior potência militar e econômica daquela época, passou a dedicar ao nosso país tratamento equivalente ao reservado aos estados barbarescos do Norte da África envolvidos com a pirataria e o tráfico de escravos. Sob a mira dos canhões britânicos, os navios negreiros eram aprisionados a caminho da costa brasileira e submetidos à Corte de Justiça inglesa, que geralmente confiscava as embarcações e devolvia suas “cargas” humanas ao litoral da África.

Em 1831 foi aprovada a primeira lei brasileira de combate ao comércio negreiro, por pressão da Inglaterra. Todavia, a referida legislação “nunca pegou”. Era, como se dizia na época, “uma lei para inglês ver”. Mesmo com a proibição oficial, o tráfico continuou de forma intensa respaldado na leniência das autoridades constituídas.

Na obra O negro no futebol brasileiro, Mário Filho relata que no início do século XX o futebol era praticado quase que exclusivamente por clubes de engenheiros e técnicos ingleses, além de jovens da elite metropolitana que conviviam neste espaço. A base dos principais times de futebol era formada por profissionais liberais, servidores públicos, acadêmicos e bacharéis em direito que monopolizavam os campeonatos nos bairros de elite.

A Lei Áurea foi promulgada em 13 de maio de 1888, logo é compreensível que no início do século XX apenas uma elite privilegiada praticasse o esporte.

Os tradicionais clubes do Rio de Janeiro foram fundados no final do século XIX. Contudo, Sport Club Rio Grande é tido como o clube de futebol mais antigo do Brasil e foi fundado em 19 de julho de 1900.

Para se ter acesso ao Fluminense tinha que pertencer à “boa família”, do contrário, certamente ficaria de fora. Alguns clubes da época demonstravam em seus próprios nomes sua inegável origem, como, por exemplo: Paissandu Cricket Club, The Bangu Athletic Club e o Rio Cricket and Athletic Association., sendo que este último era fechado para ingleses e filhos destes. Já o Bangu, apesar de ser de ingleses admitia negros em seu elenco, que eram os operários da fábrica e os colocava em pé de igualdade com os mestres ingleses, o que não acontecia com Botafogo e Fluminense. (MARIO FILHO, 2003 – P. 29).

A quebra deste paradigma ocorreu somente em 1923 com a vitória do Vasco da Gama que era um clube de origem popular e que abriu novas oportunidades para a nobre prática desportiva, valendo destacar a constatação feita pelo cronista Mário Filho: “Os clubes finos, de sociedade, como se dizia, estavam diante de um fato consumado. Não se ganhava campeonato só com times de brancos. Um multirracial era o campeão da cidade. Contra esse time, os times de brancos não tinham podido fazer nada. Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto, para ver quem jogava melhor”.

A triunfal conquista do Vasco da Gama em 1923 e o bicampeonato estadual no ano seguinte incomodaram os outros clubes cariocas, afinal, como poderia um time formado por jogadores negros, pobres e oriundos da periferia ter tanto sucesso dentro das quatro linhas ?

Inicialmente tentaram excluir os jogadores que não pudessem assinar a súmula, em seguida, os clubes de elite se desligaram da Liga organizadora do campeonato e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Amadores (AMEA). Ao Vasco foi negado o acesso à referida associação, sob a falsa alegação do clube não ter um estádio próprio, porém, o real motivo da negativa veio à tona quando foi apresentada uma proposta indecorosa, na qual o Vasco da Gama seria admitido na AMEA desde que eliminasse do time 12 jogadores, mais explicitamente os negros, pardos, caixeiros e operários.

Diante da proposta racista e preconceituosa, o clube cruzmaltino não se intimidou e apresentou a seguinte resposta:

Estamos certos de que V.Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno de nossa parte sacrificar, ao desejo de filiar-se à Amea, alguns dos que lutaram para que tivéssemos, entre outras vitórias, a do campeonato de futebol da cidade do Rio de Janeiro de 1923. São 12 jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de suas carreiras. Um ato público que os maculasse nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glórias. Nestes termos, sentimos ter que informar à V.Exa. que desistimos de fazer parte da Amea.”

Esta pode ser considerada a “Lei Áurea” do futebol brasileiro, pois, em 1925, o Vasco foi admitido na AMEA, com dignidade.

Independentemente de raça, credo ou cor os gênios da bola foram os responsáveis pelo fascínio do público em admirar a arte dentro dos gramados. Muitos craques tiveram este importante papel, apesar de um número extremamente reduzido destes é que grava seu nome no mural da história.

Arthur Friedenreich foi o primeiro jogador brasileiro a ter sua popularidade reconhecida ao ser carregado, em triunfo, na vitória do campeonato Sul-Americano de 1919. Sua chuteira ficou exposta na vitrine de uma joalheria no centro do Rio de Janeiro.

Este jogador traduz o significado da raça brasileira. Foi contemporâneo de Charles Miller e sua infância se deu em um período em que o futebol era praticado pela elite nacional, composta também de filho de imigrantes, que praticavam este esporte no São Paulo Athletic Club, no Germânia e no Mackenzie College. Nesse círculo infelizmente não havia espaço para negros e pobres, daí a importância de Friedenreich que ajudou a iniciar o processo de integração racial e cultural entre os povos. Nascido no bairro da Luz, em São Paulo, era filho de um alemão e uma empregada doméstica de pele escura, era mulato de olhos claros e estudou nos melhores colégios de São Paulo.

No final da década de 1930, quando a guerra começa a atingir a Espanha, a Áustria, a Polônia e a então Tchecoslováquia, o escritor Stefan Zweig decide abandonar o continente europeu e fixar residência no Brasil, o que ocorreu em 1941.

No livro “Brasil, um país do futuro”, o romancista austríaco relata a dificuldade de se conseguir, em nosso planeta, uma convivência pacífica entre as pessoas, independentemente da diversidade das raças, classes, cores, religiões e convicções. Contudo, o próprio autor conclui que apesar de todos os problemas históricos através dos quais o Brasil enfrentou, foi nesta terra que a melhor solução foi encontrada, digna não apenas de atenção, mas de admiração do mundo.

De acordo com as palavras de Zweig, pela estrutura etnológica, caso tivesse acompanhado a loucura nacionalista e racista da Europa, o Brasil deveria ser o país mais dividido, menos pacífico e mais conturbado da face da terra. Logo, pela lógica europeia, seria de se esperar que cada um dos grupos étnicos fosse hostil com os outros – os que chegaram primeiro com os que vieram depois, brancos contra negros, americanos contra europeus, morenos contra amarelos; que as maiorias e as minorias se hostilizassem em uma disputa incessante pelos seus direitos e privilégios. Para surpresa, descobre-se que todas essas raças, que já pela cor evidentemente se distinguem umas das outras, convivem em plena harmonia e, apesar das diferentes origens, apenas competem no intuito de acabar com suas diversidades a fim de se tornarem rapidamente brasileiros, de constituir uma nação nova e homogênea.[2]

Passados quase 80 anos da chegada do escritor nascido em Viena e que faleceu em Petrópolis de forma trágica, a nossa realidade mudou, pois parece que a população regrediu neste aspecto e os conceitos de tolerância racial e convivência harmoniosa ficaram em um passado distante. Nos dias de hoje, talvez a impressão do romancista não fosse tão otimista.

A primeira regulamentação frente ao preconceito racial somente se deu em 03 de julho de 1951, data da promulgação da Lei n.º 1.390/51, conhecida como Lei Afonso Arinos, em razão de ter sido proposta pelo jurista mineiro Afonso Arinos de Melo Franco[3].

O mencionado diploma legal é de grande importância histórica, na medida em que propunha evitar a discriminação racial em território brasileiro. Entretanto, as condutas tipificadas na referida legislação não se configuravam crime, mas apenas em contravenções penais, com penas muito brandas.

Foi apenas no ano do centenário da Lei Áurea que o combate mais eficaz contra a discriminação racial ganhou força, tendo em vista a redação do artigo 5º XLII da Constituição da República Federativa do Brasil, que passou a prever que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.

A lei em questão foi editada no ano seguinte à promulgação da Constituição Federal (Lei n.º 7.716/89), tendo sido parcialmente alterada pela Lei n.º 9.459/97, dispondo acerca da punição para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

O crime de racismo é definido pela doutrina como sendo aquele em que o agente impede o exercício de qualquer direito líquido e certo em razão de um preconceito baseado em etnia, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Já o crime de injúria racial (que não se confunde com o crime de racismo), está tipificado no artigo 140, § 3º do Código Penal[4], que ocorre quando o agente se utiliza da etnia, cor, religião, origem, ou pessoa portadora de deficiência para ofender a honra subjetiva da vítima.

É absolutamente incompreensível que, em pleno século XXI, atitudes irracionais sejam manifestadas por certos torcedores de determinados clubes. O racismo é um ato criminoso e tem que ser punido da forma mais severa possível.

……….

[1] GOMES, Laurentino – 1889 – Globo Livros – 1ª Ed. – 2013 –  P. 212.

[2] ZWEIG, Stefan – Brasil, um país do futuro – L&PM editores – 2013 – P. 16/18

[3] O inteiro teor da Lei n.º 1.390/51 está no anexo do presente livro.

[4] Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. (…)

§3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de um a três anos e multa.

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