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Realmente existe um direito esportivo?

Os fundamentos do Direito Esportivo (I) – Podemos afirmar que realmente existe um Direito Esportivo?

Nesta segunda edição da coluna, proponho-me a começar a tratar dos fundamentos do Direito Esportivo, tarefa que continuaremos ainda por mais algumas semanas. Contudo, antes faço a seguinte provocação aos leitores: existe mesmo um Direito Esportivo?
Em 2014, durante a realização do I Simpósio Científico sobre Direito Desportivo da Universidade Federal de Goiás, que organizei, João Leal Amado, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal, disse em alto e bom som em sua palestra magna: “Se alguém se arvora à condição de especialista em Direito Desportivo, desconfie. Essa pessoa teria que ter se especializado em tantos ramos do direito, como o trabalhista, civil etc. que são necessários para o trabalho no desporto, que tornaria impossível o intento” [reparem que uso aqui a grafia desporto, desportivo, conforme se emprega em Portugal, e o nome do evento era daquele modo, mesmo]. O que inteligentemente Leal Amado queria dizer com isso é que, assim como ele se considera um estudioso do Direito Trabalhista Esportivo, há os especialistas em Direito Contratual Esportivo, Direito Tributário Esportivo…, mas não um expert em todas as áreas que compõem o que conhecemos como Direito Esportivo em sentido estrito.
Ainda que eu não possa afirmar que o professor de Coimbra seja um pessimista quanto à existência de um Direito Esportivo, ele nos lança uma grande dúvida. Seria o Direito Esportivo um mero arranjo de especialidades de outros ramos que se relacionam com a atividade esportiva? Foi isso o que quis alertar em sua fala em Goiânia?
Penso que existe um modo de buscar a resposta tanto a essa como àquela outra que enuncia este texto: se existe um Direito Esportivo, ele está vinculado ao núcleo da relação entre o direito e o esporte. Mas veja: se o esporte é uma atividade eminentemente lúdica ou educativa, por que o direito interveio na atividade esportiva? A chave da questão está na atividade esportiva enquanto disputa, concorrência, competição. Estamos falando de esporte de rendimento.
Em determinado momento o esporte, antes provavelmente uma parte do sistema educacional ou cultural, começou a se diferenciar funcionalmente, principalmente por meio da criação, reprodução e desenvolvimento de uma linguagem própria. Isso se deu primordialmente no campo do esporte competitivo, esse que denominamos por esporte de rendimento.
Uma competição esportiva requer a existência de duas categorias que se encontram em constante tensão: “alta performance” e “incerteza do resultado”. Ora, alguém dificilmente acompanharia um atleta, equipe ou modalidade se não houvesse a expectativa de vitória, quebra de recordes, triunfos espetaculares, superação de limites humanos. Ocorre que tudo isso seria pouco atrativo se não houvesse o contingente, o aleatório, o imponderável, a incerteza do resultado. O espectador, assim, espera a melhor performance do atleta ou equipe, porém, sem qualquer vício que pudesse retirar do espetáculo a magia da dúvida quanto a um final de uma partida, prova ou competição, de um resultado não previamente sabido.
Nasceu assim a necessidade de se assegurar a igualdade entre os disputantes, de modo a se afastar não somente a encenação própria do “Telecatch”, em que, a título de ilustração, pesos pesados lutavam contra pesos moscas, mas, também, o afastamento de qualquer artifício que propiciasse vantagem indevida de um dos contendores no esporte de rendimento. A luta contra a dopagem, p. ex., é um dos aspectos dessa busca pela igualdade entre os disputantes, ou “paridade de armas”.
A partir de então, surge também um conjunto de regras de disputa, organização de competições e, principalmente, de controle dos movimentos do atleta (como se nadar costas ou bater um escanteio, p. ex.), que necessariamente fez emergir uma linguagem jurídica específica para o esporte.
Estamos aqui falando acerca de dois princípios que baseiam o direito no esporte: “igualdade” e “especificidade” esportivas. Deles derivam não somente o princípio da “autonomia esportiva” (nosso fiel amigo desta coluna a partir de agora), como também aquilo que chamei por intervenção do direito no esporte.
Em resumo, o direito age no esporte como necessidade de autorregulação de linguagem corporal e da igualdade em competições, e consequente universalização do modo de prática da modalidade. Visa, portanto, o resguardo da incerteza do resultado por meio da paridade de armas, ou igualdade entre os competidores. Tem por critério de diferenciação a necessidade de especialização nessa linguagem própria do ambiente esportivo-competitivo, que produz narrativas jurídicas, e que definimos por “especificidade esportiva”.
Imagino que a esta altura já esteja claro para o paciente e atento leitor que até aqui chegou que é possível, sim, afirmar a existência de um ramo do direito denominado Direito Esportivo, não como um emaranhado de especialidades, mas como aquele que se volta para assegurar a “incerteza do resultado esportivo” por meio de uma linguagem jurídica própria da prática atlética que se dá no sentido de uma “especificidade esportiva”. Este último princípio é o critério de diferenciação funcional que nos ilumina na tendência de visualizar que o sistema do direito admite a existência de um subsistema jusesportivo, com sua linguagem, regulação, governo e justiça próprios.
Bom, mas esse já é o tema da próxima coluna. Até semana que vem!

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