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Reconhecimento facial em estádios – será preciso escolher entre segurança e privacidade?

Em agosto A Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2745/23, que estabelece diretrizes para o uso e a implementação de tecnologia de câmeras e sistemas de videomonitoramento com reconhecimento facial em estádios de futebol e outros locais de competições profissionais.

Ao contrário do artigo 148 da Lei Geral do Esporte[1], que impõe a implementação de monitoramento biométrico em arenas com capacidade para mais de 20 mil pessoas, o PL prevê que o sistema de reconhecimento facial será facultativo, de acordo com a necessidade de cada local para garantir a proteção dos direitos fundamentais, assegurar a privacidade e a segurança dos torcedores e jogadores.

O sistema de monitoramento biométrico traz diversas vantagens: maior rapidez no acesso ao estádio, eliminação do cambismo e, acima de tudo, maior segurança para o torcedor. O sistema permite identificar aquele torcedor que está proibido de ingressar no estádio, por exemplo. Ou identificar o torcedor que comete alguma infração ou crime no estádio.

Contudo, se do ponto de vista da segurança o sistema de reconhecimento facial pode ser visto como uma poderosa e positiva ferramenta, do ponto de vista da privacidade e proteção de dados pessoais o mesmo não pode ser dito.

É o que defende o movimento “Reclaim Your Face” (https://reclaimyourface.eu/), um movimento europeu que traz a voz das pessoas para a discussão em torno dos dados biométricos utilizados para monitorizar a população. O movimento questiona a razão pela qual estes dados sensíveis estão sendo utilizados e apontam para o impacto nas liberdades individuais em espaços públicos e privados.

Relevante ressaltar: dados pessoais biométricos são dados pessoais sensíveis; dados pessoais sensíveis gozam de uma proteção especial da lei dada a gravidade do impacto de eventual incidente com tais dados pessoais.

De acordo com o movimento “Reclaim your face”, “Quando monitorados, mudamos o comportamento e a autocensura. Quando categorizados, somos julgados e discriminados. É um círculo vicioso de desequilíbrios de poder.” Para adeptos do movimento, o reconhecimento facial pode levar a uma interferência desproporcionada em muitos direitos fundamentais e pode amplificar a discriminação contra grupos minoritários; é antidemocrático e impõe limitações à forma como todos podem existir e desfrutar dos espaços públicos.

Football Supporters Europe (FSE), uma associação de torcedores, independente e sem fins lucrativos, fundada em 2008 e reconhecida como órgão representativo das questões dos adeptos por instituições como a UEFA e o Conselho da Europa, se manifestou sobre esta questão no início do ano[2]:

“Há duas boas razões pelas quais os torcedores deveriam prestar muita atenção à questão da vigilância biométrica em massa. Primeiro, temos direito à privacidade, associação e expressão, tal como todas as outras pessoas. E segundo, somos frequentemente usados ​​como cobaias para tecnologias e práticas invasivas. Com isto em mente, encorajamos os adeptos a trabalhar a nível local, nacional e europeu para garantir que os direitos fundamentais de todos são protegidos contra tais abusos.”

Como mencionado, o artigo 148 da Lei Geral do Esporte impõe que o monitoramento biométrico seja implementado em arenas com capacidade para mais de 20 mil pessoas. O que não há na Lei, contudo, é a obrigatoriedade de adoção de qualquer medida de mitigação dos riscos que esta medida traz ao titular dos dados pessoais.

Em episódio do podcast “Dinheiro em Jogo”[3], produzido por Rodrigo Capelo, jornalista especializado em negócios no esporte, o advogado Rafael Zanatta, diretor da associação Data Privacy Brasil, alerta para o fato de que clubes que adotarem o monitoramento biométrico podem, por exemplo, ser compelidos pelo Estado a compartilhar os dados pessoais biométricos que coletou de seus torcedores.

Isso pode se dar, por exemplo, como meio atípico de execução, que são medidas consideradas de coerção indireta e psicológica para obrigar o devedor a cumprir determinada obrigação.

Ressalta-se que, historicamente, a proteção de dados surgiu muito mais da preocupação com o uso que o Estado faz dos dados pessoais do que da preocupação com o uso destes dados entre particulares.

De fato, a possibilidade de tratamento secundário desse tipo de dado pessoal, seja por dever de compartilhamento com o Estado, seja para estabelecimento de perfis de publicidade direcionada a partir das emoções das pessoas durante o jogo ou qualquer outro, gera um aumento no risco para o titular sem que haja, por parte do controlador, uma demonstração de mitigação dos riscos. Novamente, a Lei Geral do Esporte nem ao menos impõe ao agente de tratamento essa obrigação!

O mencionado o Projeto de Lei 2745/23  prevê que a LGPD deverá ser observada pelos responsáveis e que será proibido o uso indiscriminado da tecnologia de reconhecimento facial em locais onde o usuário deve ter a sua privacidade garantida, como banheiros, vestiários, salas de café e refeitórios.

É relevante ressaltar que, à luz da LGPD, ao utilizar um sistema de reconhecimento facial, os clubes devem se comprometer a investir em sistemas de gerenciamento de dados apropriados que possam responder às solicitações de acesso do titular dos dados, que poderiam, se declarado, incluir todas as gravações armazenadas do indivíduo em questão. Os clubes devem comunicar essas questões de forma clara e acessível aos torcedores.

Football Supporters Europe (FSE), destaca que “o que torna tudo isto um pouco desconcertante é a desconexão entre meios e fins. Ou, dito de outra forma, há pouca, ou nenhuma, evidência que sugira que a utilização da tecnologia de reconhecimento facial em jogos de futebol seja uma resposta proporcional aos perigos inerentes”.

Adicionalmente, reitera a FSE que , no que diz respeito à segurança, Paul Corkrey (membro do Conselho da FSE/FSA Cymru) resumiu a incongruência da justificação da polícia em Outubro de 2019, quando os torcedores do Cardiff e do Swansea foram identificados pela primeira vez: “20.270 torcedores de futebol foram submetidos a reconhecimento facial para monitorar menos de 50 pessoas em uma lista de vigilância da força policial”, a maioria das quais só tinha proibições de estádios emitidas pelos clubes.

Isso vale para o argumento de serviço ou acesso. Em resposta à ideia de torcedor sem ingressos discutida pelo Manchester City, Amanda Jacks, da Football Supporters’ Association (FSA), observou que “os torcedores ainda terão que ser revistados antes de entrar em qualquer estádio, e a tecnologia é aparentemente apenas um pouco mais rápida que os leitores de cartão eletrônico, [então] é difícil ver como isso é genuinamente uma melhoria no sistema atual.”

O reconhecimento facial pode trazer inúmeras vantagens (não só no esporte), mas, além de ainda carecer de regulamentação para fins de proteção do titular do seu direito fundamental à proteção de dados pessoais, não pode ser imposto às entidades desportivas sem que estas também sejam obrigadas a adotar medidas que mitiguem o risco ao titular.

O esporte precisa, de forma urgente, voltar seu olhar cuidadoso à proteção de dados pessoais. E, como sociedade, é preciso debater e decidir: entre segurança e privacidade/ proteção de dados, será realmente preciso escolher?

Crédito imagem: Palmeiras/Divulgação

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[1] Art. 148. O controle e a fiscalização do acesso do público a arena esportiva com capacidade para mais de 20.000 (vinte mil) pessoas deverão contar com meio de monitoramento por imagem das catracas e com identificação biométrica dos espectadores, assim como deverá haver central técnica de informações, com infraestrutura suficiente para viabilizar o monitoramento por imagem do público presente e o cadastramento biométrico dos espectadores.

Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo deverá ser implementado no prazo máximo de até 2 (dois) anos a contar da entrada em vigor desta Lei.

[2] https://www.fanseurope.org/news/fse-opposes-fans-being-used-as-test-subjects-for-facial-recognition-technology/ – Então, quais são os principais problemas? Primeiro, tem a capacidade de minar três direitos fundamentais que muitos considerariam a pedra angular de qualquer sociedade democrática:

O direito à privacidade, conforme estabelecido no Artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e no Artigo 8 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos;

O direito de associação, conforme estabelecido nos artigos 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos;

O direito à expressão, conforme estabelecido no artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Cada um destes direitos é também fundamental para os adeptos do futebol e para as organizações às quais estes podem optar por aderir ou com quem confraternizam.

Um segundo problema, relacionado, é o da discriminação, que também é abrangido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (artigo 2.º) e pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 14.º). Na verdade, estudos demonstraram que a tecnologia de reconhecimento facial apresenta um preconceito inerente ao identificar de forma desproporcionada as mulheres e as minorias étnicas, o que significa que as pessoas destes grupos têm maior probabilidade de serem detidas e interrogadas pela polícia e de terem as suas imagens retidas como resultado de uma falsa corresponder.

Isto nos leva ao problema número três: eficácia. Até Arfon Jones, um antigo agente da polícia com mais de 30 anos de experiência e atual comissário da polícia e do crime do Norte de Gales, expressou publicamente o seu cepticismo. Falando ao The Guardian antes do jogo desta semana no Cardiff City Stadium, Jones observou que “[quando] a tecnologia de reconhecimento facial foi usada pela primeira vez na final da Liga dos Campeões no Millennium Stadium, houve várias centenas, senão milhares, de falsos positivos , então deve haver preocupações sobre sua precisão.”

[3] https://open.spotify.com/episode/74GrrumUTU66OgEpUQGOFL

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