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Reforma da Justiça Desportiva: a arbitragem

No debate sobre a reforma da Justiça Desportiva, uma das ideias é a de transformá-la, adaptando-a, ao sistema arbitral. A arbitragem é, certamente, a técnica mais utilizada de solução de litígios fora do âmbito da esfera judiciária. O Brasil é o 5º país com maior número de partes envolvidas em arbitragem, segundo o ranking da Câmara de Comércio Internacional (CCI). A aceitação ampla do sistema de arbitragem ao redor do mundo, sendo este utilizado em competições desportivas internacionais de diversas modalidades, nos jogos olímpicos, nos conflitos sobre dopagem e, finalmente, como recursos contra as decisões proferidas nos órgãos nacionais de solução de conflitos desportivos (vide sistema CAS/TAS) faz com que a arbitragem seja, de fato, alternativa animadora. Proponho analisarmos a arbitragem na coluna desta semana para debatermos algumas questões que demandam reflexão sobre esta proposta de reforma da Justiça Desportiva.

Disciplinada no Brasil através da Lei 9.307/96, a arbitragem é privada, ou seja, é instalada exclusivamente por vontade das partes, que devem ser capazes, nos termos do Código Civil. Essa vontade de submeter seus conflitos ao juízo arbitral deve ser expressa pelas partes mediante convenção de arbitragem, que se dá em forma de cláusula compromissória e do compromisso arbitral.

A cláusula compromissória consta do contrato firmado entre as partes sendo, portanto, prévia à existência do conflito. A Lei 9.307/96 – Lei da Arbitragem – prevê que “nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.”. Já o compromisso arbitral é realizado após o surgimento do conflito, quando ambas as partes acordam em remeter seu litígio ao crivo do juízo arbitral.
A arbitragem é, pois, uma via que “concorre” com o Poder Judiciário; ante a morosidade deste, opta-se por aquela. É curioso observar o Estado abrindo mão do monopólio da jurisdição ante a demanda massiva pelo judiciário pós Constituição de 88, que acabou por abarrotá-lo de tal sorte que resultou em um grau elevado e insustentável de ineficiência.

O laudo arbitral foi equiparado pela Lei 9.307/96 a uma sentença judicial. Essa equiparação foi uma novidade dessa Lei, já que antes de sua promulgação havia a necessidade de homologação do laudo arbitral pelo poder judiciário para que houvesse efetivo cumprimento. O artigo 31 da referida lei determina que: “a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo”. Na hipótese de não cumprimento do determinado pelo Tribunal Arbitral, poderá a parte vencedora propor uma ação de execução perante o juízo.

A arbitragem não conta com duplo grau de jurisdição: a Lei de Arbitragem, em seu artigo 18, determina expressamente que a sentença arbitral é irrecorrível, isto é, não existe um tipo de recurso apto a reformar o mérito da decisão prolatada pelo árbitro. Dessa forma, no que se refere à matéria decidida pelo Tribunal Arbitral, a sentença faz coisa julgada. É possível que o poder judiciário discuta apenas possíveis ofensas a certos direitos, mas a revisão do judiciário será sempre limitada ao âmbito processual para assegurar que ambas as partes tiveram a possibilidade de um procedimento justo, que respeitasse as regras do direito brasileiro.

Esse aspecto conflita bastante com a atual estrutura da Justiça Desportiva, que conta com até três graus de jurisdição: julgados que se originam nas Comissões Disciplinares dos Tribunais Desportivos regionais podem ser alvo de recurso ao Pleno de tais tribunais e, posteriormente, ao Pleno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva. A matéria é analisada, pois, três vezes, já que o recurso tem efeito devolutivo.

A Lei da Arbitragem dá às partes liberdade para decidir os termos que disciplinarão a arbitragem, apenas fazendo ressalva no que se refere à não “violação aos bons costumes e à ordem pública”. Essa liberdade de determinação das regras do direito que serão aplicadas no procedimento arbitral é relevante quando lidamos com a possibilidade de aplicação da arbitragem na Justiça Desportiva. Afinal, há de se manter a arduamente conquistada autonomia desportiva. Temos, neste aspecto, um cenário favorável ao desporto, já que é possível estabelecer regras próprias que atendam as especificidades de cada modalidade esportiva.

Essa liberdade é observada, inclusive, na escolha dos árbitros. Podem as partes nomear os árbitros que comporão o Tribunal Arbitral livremente. A lei nem ao menos limita a quantidade de árbitros; tão somente estabelece que sejam sempre em número ímpar, podendo nomear, também, os respectivos suplentes. Não há, ainda, exigência de formação do árbitro. Determina o artigo 13 da Lei da Arbitragem que pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes. Aplicam-se aos árbitros todas as disposições constantes no Código de Processo Civil concernentes ao impedimento e suspeição dos juízes.

Contudo, ressalta-se que não são todos os tipos de conflitos que podem ser solucionados através da arbitragem. Já no artigo 1º da Lei da Arbitragem o legislador coloca uma limitação à natureza das lides submetidos à arbitragem, quando prevê que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Nesse sentido, podem ser solucionadas pela arbitragem questões relativas a direitos que tenham valor econômico e que possam ser comercializados ou transacionados livremente por seus donos.

Daí infere-se, pois, que a separação de um casal ou a disputa pela guarda dos filhos, por exemplo, não podem ser submetidas à arbitragem. Nessa mesma esteira, questões criminais também não podem ser discutidas por arbitragem. Essa limitação material pode ser um problema quando da aplicação da arbitragem, nos termos colocados na atual legislação, à Justiça Desportiva, já que esta tem o condão de punir as infrações cometidas por aqueles que a ela se submetem, extrapolando, pois, a questão meramente patrimonial.

Não obstante as vantagens da arbitragem há, contudo, certas questões que não obstam por completo, mas dificultam a transformação da Justiça Desportiva em arbitragem.

Alguns pontos nesta discussão merecem destaque. Vejamos:

1. Arbitragem deve ser consensual. As partes precisam estar de acordo com a forma de resolução do conflito por meio da arbitragem e devem expressar essa concordância. A Lei da Arbitragem fez questão de mencionar o contrato de adesão para esclarecer que, nesse caso, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula. Para transformar a Justiça Desportiva em arbitragem seria necessário que a cláusula compromissória constasse no Contrato de Trabalho de todos aqueles que são submetidos à Justiça Desportiva (atletas, treinadores, membros das comissões técnicas, etc.), no Estatuto Social de cada entidade de prática desportiva, de cada Federação regional e de cada Confederação Nacional. Ainda, quando do surgimento de um conflito, as partes teriam que concordar, expressamente, pela arbitragem. Não há maiores problemas até aqui. Entretanto, o que aconteceria se uma das partes se recusasse a submeter-se a arbitragem? Seria essa parte punida de alguma forma por isso? Teria que deixar de participar de alguma competição? Se a arbitragem deve ser consensual, e se a parte for punida se não aceitar submeter-se a ela, é possível continuar considerando essa hipotética aceitação forçada como concordância?
2. O sistema atual é vulnerável em relação à possibilidade de seus usuários procurarem o poder judiciário para enfrentar o mérito da decisão da Justiça Desportiva. O sistema arbitral resolveria este problema, já que a sentença arbitral faz coisa julgada material. A Lei de Arbitragem veda expressamente que o Poder Judiciário profira outra decisão de mérito, devendo apenas anular a sentença arbitral e determinar que se dê outra em substituição. Dessa forma, a parte é inibida de procurar o Poder Judiciário já que sabe que a sentença arbitral somente será anulada em caso de eventual descumprimento de regras processuais. Nesse sentido, não cabe recurso da sentença arbitral, salvo para o esclarecimento de alguma obscuridade ou omissão. Entretanto, como ressaltado, atualmente a Justiça Desportiva possui triplo grau de jurisdição; o mérito pode ser analisado por até três órgãos colegiados. Essa discrepância entre os sistemas deve ser amenizada, com a previsão de ao menos uma possibilidade recursal.
3. O princípio da celeridade é bastante caro à Justiça Desportiva ante a necessidade de solucionar os conflitos em tempo hábil que não prejudique o andamento do campeonato. A arbitragem, comparada ao Poder Judiciário, traz a importante vantagem da rapidez na solução de seus conflitos. Portanto, o tempo gasto no procedimento arbitral pode ser ponto favorável à sua adaptação desportiva.
4. Os procedimentos arbitrais são sigilosos; seus atos são de divulgação restrita às partes. Ao estabelecer a arbitragem para o processo desportivo, o sigilo pode trazer problemas de confiabilidade no sistema por seus usuários, já que as decisões são tomadas de portas fechadas. O sistema de solução de conflitos da CONMEBOL é permeado por sigilo e é um dos fatores que faz com que seja frequentemente questionado. É possível, porém, que as partes determinem de comum acordo, dar publicidade total aos atos arbitrais. Pode-se, portanto, estabelecer a publicidade como regra nos procedimentos arbitrais desportivos, mas essa adaptação dependeria da prévia anuência explícita das partes.

No âmbito do Futebol, a CBF estabelece em seu Estatuto que litígios envolvendo entes do futebol brasileiro devem ser submetidos à Câmara Nacional de Resolução de Disputas – CNRD. As decisões proferidas pela CNRD são passíveis de recurso para o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Contudo, ressalto que a CNRD não é um centro de arbitragem. Esta coluna não vai se ater à descrição e análise dos procedimentos adotados na CNRD por não ser este seu objeto. Mas é necessário frisar que existem singularidades na CNRD que muito a diferem da arbitragem regulada pela Lei 9.307/96. Destaca-se, entre elas, a composição fixa da CNRD de cinco membros que, formando turmas de três, são os responsáveis pela condução e julgamento dos litígios. Não há escolha de árbitros pelas partes.
O estatuto da CBF proíbe que a justiça comum seja utilizada para discutir o mérito de qualquer litígio no âmbito desportivo e obriga seus membros a se submeterem à arbitragem; o artigo 125 do estatuto é claro nesse sentido:

Art. 125 – Em lugar de recorrer aos órgãos da Justiça ordinária, os litígios que não forem de competência da Justiça Desportiva ou da Câmara Nacional de Resolução de Disputas – CNRD, deverão, obrigatoriamente, ser submetidos à Arbitragem. (CBF, 2017)

Há, portanto, por parte da entidade de administração do futebol no Brasil, uma forte imposição para o uso da arbitragem como forma de resolução de conflitos que não são de competência da Justiça Desportiva, o que indica uma clara tendência a utilizar o instituto da arbitragem numa reforma do sistema atual da Justiça Desportiva.

É relevante destacar, ainda, que a Lei Pelé (Lei 9.615/98) atualmente proíbe que a arbitragem aprecie matéria referente à disciplina e à competição (estas reservadas à Justiça Desportiva) em seu artigo 90-C:

Art. 90-C. As partes interessadas poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, vedada a apreciação de matéria referente à disciplina e à competição desportiva.

Dessa forma, uma adoção da arbitragem desportiva deve, necessariamente, revogar a proibição estabelecida na Lei Pelé.

Se esse, de fato, for o caminho da Justiça Desportiva, muitas adaptações deverão ser realizadas, ante as incompatibilidades apresentadas nesta coluna. A Lei da Arbitragem não atende às especificidades do mundo desportivo e não deve, pois, ser aplicada cegamente.

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