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Reforma da Justiça Desportiva: como seria Palmeiras x Flamengo se já existisse o Juizado Especial Desportivo?

Na semana passada voltei à discussão sobre reforma da justiça desportiva. A certo ponto argumentei que qualquer proposta de reforma da justiça desportiva deve levar em conta a abertura que o sistema atual dá à possibilidade de busca à justiça comum. Pois bem. Os acontecimentos do final de semana, que envolveram a Justiça do Trabalho em mais uma guerra de liminares, colocaram em risco a lisura da competição desportiva, justamente o bem jurídico tutelado pela justiça desportiva.

À ocasião eu trouxe à discussão uma das propostas de reforma da justiça desportiva: a integração desta ao Poder Judiciário. A proposta, em linhas gerais, é o estabelecimento de um sistema híbrido, que combina uma fase arbitral a uma fase judicial (estatal): haveria, portanto, a Câmara Arbitral Desportiva e o Juizado Especial Desportivo. Os detalhes teóricos e as ponderações sobre vantagens e desvantagens estão na coluna da semana passada.

Teria o sistema híbrido, de inclusão da justiça desportiva ao Poder Judiciário, alguma chance de evitar os acontecimentos do final de semana?

É oportuno ilustrar a proposta simulando uma situação fictícia, a fim de esclarecer os trâmites sugeridos. Suponha-se que o atleta de futebol “X”, atuando na equipe sub-20 do clube “Y”, tenha sido expulso, com cartão vermelho direto, durante uma partida do Campeonato Regional Sub-20. Levado à Câmara Arbitral Desportiva, três árbitros julgaram seu comportamento naquela partida e o condenaram a uma suspensão de 4 jogos. Os advogados do clube optaram por não recorrer da decisão ao Juizado Especial Desportivo.

No ano seguinte, o clube decide integrar o jogador “X” à equipe profissional para disputar o Campeonato Regional profissional daquele ano. Como o jogador “X” já havia cumprido uma suspensão, de forma automática, na partida imediatamente subsequente àquela em que houve a expulsão, tal atleta integra a equipe profissional restando cumprir 3 partidas de suspensão. Na primeira partida do campeonato o atleta “X” não é relacionado na equipe, cumprindo, portanto, a 2ª suspensão. Entretanto, na segunda e na terceira partida é o atleta “X” relacionado e efetivamente atua em tais partidas, quando ainda restavam duas partidas de suspensão. Atua também na quarta e na quinta partida deste campeonato. Finalmente, na sexta e na sétima partida o atleta “X” não é relacionado, cumprindo, assim, a totalidade da pena imposta pela Câmara Arbitral Desportiva no ano anterior.

Frente a essa situação, o clube “Z” (demonstrando nos autos ser interessado no caso, já que uma eventual condenação do clube “Y” o favoreceria) denuncia à Câmara Arbitral Desportiva a irregularidade do jogador “X” em quatro partidas do Campeonato Regional profissional, infringindo o disposto no artigo 214 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que prevê punição ao clube que:

Incluir na equipe, ou fazer constar da súmula ou documento equivalente, atleta em situação irregular para participar de partida, prova ou equivalente. PENA: perda do número máximo de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e multa de R$ 100,00 a R$ 100.000,00.

Dessa forma, entendem os árbitros que, de fato, o jogador “X” atuou de forma irregular na segunda, terceira, quarta e quinta partida do Campeonato Regional profissional e, portanto, condenou o clube “Y” a perda de 12 pontos (três pontos perdidos para cada partida).

Ocorre que, em sua defesa, alegou o clube “Y”, em sede preliminar, que a punição aplicada ao jogador “X” foi feita quando ele ainda era um jogador amador e defende que tal punição não mais se aplicaria ao jogador “X” quando da sua passagem ao profissional, frente ao princípio constitucional da diferenciação entre desporto amador e profissional, prevista no artigo 217, III da Constituição Federal.

Ademais, caso assim os árbitros não entendessem, o clube “Y” argumentou que o jogador “X” somente estaria irregular na segunda e terceira partida do Campeonato Regional. Para sustentar tal argumento, o clube “Y” utilizou-se da interpretação literal do artigo 171 do CBJD que prevê a forma de cumprimento das sanções aplicadas. Nesse artigo, em seu §1º, há a previsão de que, em caso de impossibilidade de cumprimento da suspensão no mesmo campeonato (que é o caso do jogador “X”, expulso no Campeonato Regional Sub-20), esta deve ser cumprida nas partidas imediatamente subsequentes do campeonato realizado pela mesma entidade de administração do desporto (neste caso, o Campeonato Regional profissional). Assim, o jogador “X” deveria ter cumprido sua punição na primeira, segunda e terceira partida. Na quarta partida o jogador “X” não mais estaria irregular, já que o artigo 171 fala em partidas imediatamente subsequentes.

Dessa forma, inconformado com a decisão da Câmara Arbitral Desportiva, o clube “Y” procura o Poder Judiciário, na forma do Juizado Especial Desportivo. O mérito do caso é então, analisado pelo magistrado concursado e especialista da 1ª Vara Desportiva, admitindo todas as formas de prova, seguindo o procedimento processual previsto para os Juizados Especiais e também observando todas as normas desportivas nacionais e internacionais.

Entendendo que a Câmara Arbitral Desportiva se equivocou em sua decisão, decide o magistrado desportivo reformá-la, acolhendo o argumento do recorrente, clube “Y”, para puni-lo com a perda de apenas seis pontos pela escalação irregular do jogador “X” na segunda e na terceira partida do Campeonato Regional profissional. Contudo, o magistrado desportivo não acolhe a preliminar do clube “Y”, entendendo que não houve qualquer afronta ao preceito constitucional de tratamento diferencial ao desporto amador.

Frente a essa situação, o clube “Y” poderá recorrer ao Superior Tribunal Federal para discutir a preliminar suscitada[1]. Contudo, tal recurso não terá efeito suspensivo, e a decisão tomada pelo Juizado Especial Desportivo já produzirá efeitos a partir de sua publicação.

É impossível dizer se o Juizado Especial Desportivo seria capaz de evitar a guerra de liminares deste final de semana e as futuras que certamente virão, ou ao menos garantir maior proteção à competição.

Mas penso que é um caminho que deve ser considerado.

……….

[1] A proposta descrita na semana passada prevê que não seriam admitidos recursos contra as decisões proferidas pelo Juizado Especial Desportivo, salvo em casos de afronta a preceitos constitucionais, a exemplo do ocorrido no rito sumário da Justiça do Trabalho, previsto na Lei nº 5584/70, para ações cujo valor da causa não exceda a dois salários mínimos (art. 2º, §§ 3º e 4º).

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