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Reforma da Justiça Desportiva: e se a Justiça Desportiva integrasse o Poder Judiciário?

Na minha coluna do dia 24.08.2020, abordei o tema da reforma da justiça desportiva e falei sobre a arbitragem, já que neste debate uma das ideias é a de transformá-la, adaptando-a, ao sistema arbitral. A despeito do prestígio concedido à Justiça Desportiva pela Constituição da República esta não integra o Poder Judiciário, sendo entidade de direito privado. Mas e se concebêssemos um cenário no qual a justiça desportiva fosse parte do judiciário, compondo, portanto, à justiça comum? Proponho hoje este exercício de imaginação nesta coluna!

A importância do debate sobre a reforma da justiça desportiva

Imagine uma área claramente demarcada, onde cada movimento das pessoas é regulado e sancionado por lei; o que não fazer usar ou dizer. Pode parecer uma prisão, mas não é. É simplesmente a natureza intrínseca das competições desportivas e sua miríade de regras.

Nesta descrição caricatural está uma das maiores contradições do esporte. O setor desportivo é presumivelmente o setor da sociedade com maior penetração de regras e normas. No entanto, talvez seja também o setor em que, relativamente falando, o maior número de decisões é tomado por profissionais não remunerados imbuídos de competência judicial, mesmo ocasionalmente sem formação legal formal, até quando se trata de decisões que têm graves efeitos negativos sobre o destinatário.

Ademais, as disputas no esporte variam significativamente em um aspecto central da maioria das outras disputas que surgem na sociedade civil: em muitas disputas desportivas, a justiça não pode ser alcançada apenas por reparação monetária. A consequência na vida real de ser privado, por exemplo, de uma medalha olímpica por infração própria ou por conduta temerária de um oponente, é mais do que um valor em dinheiro. Ao contrário, o que está realmente em jogo são oportunidades perdidas, e todo o orgulho, fama e glória que se seguem do excelente desempenho que o atleta não poderá realizar; as oportunidades esportivas perdidas não podem ser recuperadas.

Estas especificidades do desporto exigem uma tomada de decisão sólida, justa e célere. É por isso que o debate sobre resolução de conflitos jurídicos no esporte é de suma importância e um pré-requisito para a justiça e igualdade nas competições esportivas.

A Justiça Desportiva, consagrada pelo artigo 217 da Carta Magna, tem a função de disciplinar as questões relativas à prática formal do desporto no País. Estão submetidos à Justiça Desportiva um número incontável de pessoas, especialmente se considerarmos que existem 742 clubes profissionais de futebol no Brasil e mais de 24.000 jogadores profissionais. Tal número aumenta ainda mais se incluirmos os profissionais das demais modalidades desportivas. Levando em conta as quantias astronômicas movimentadas no desporto brasileiro e as inúmeras pessoas cujos destinos profissionais são decididos na corte desportiva tem-se uma questão urgente a ser debatida e solucionada.

O Estado Na Justiça Desportiva: “Juizado Especial Desportivo”

Pois bem, o debate está acontecendo.

Esta coluna (e o próprio portal Lei em Campo como um todo) deu ênfase, em diversas oportunidades, à importância do princípio constitucional da autonomia desportiva. Para o jurista Melo Filho, a autonomia desportiva é a “medula espinhal do sistema desportivo nacional […], devendo o Estado “respeitar e observar a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações quanto à sua organização e funcionamento”.

Não obstante a necessidade de preservar a autonomia desportiva, assim como todo e qualquer direito constitucionalmente garantido, a autonomia não deve ser absoluta. Reafirmar que o esporte tem autonomia para organizar-se não deve ser utilizado como argumento absoluto que tenha o condão de afastar por completo a gerência do Estado. Mesmo porque, a estrutura atual da Justiça Desportiva, apesar de ser uma das mais desenvolvidas do mundo, tem diversos e graves problemas; isso demonstra que é relevante questionar a uma total e completa autonomia, ainda que entendêssemos que fosse possível.

Nessa perspectiva, como contribuição ao debate da reforma da Justiça Desportiva, proponho a reflexão sobre um cenário que se afasta daquele descrito naquela minha coluna sobre arbitragem: a inclusão da Justiça Desportiva no ordenamento judiciário brasileiro.

Incluir a Justiça Desportiva no judiciário é um caminho oposto ao da arbitragem: se nesta há um afastamento dos ditames estatais, dando às partes autonomia para determinar os procedimentos de seus litígios, aquele chama o estado a assumir seu papel constitucionalmente posto, quer seja, o monopólio da jurisdição. Insta frisar que a Constituição Federal adotou o sistema de jurisdição una, conforme prescrito em seu artigo 5º, inciso XXXV. Nesse sentido, as demandas contenciosas podem ser submetidas ao controle jurisdicional estatal, ainda que existam outros meios de solução de conflitos, incluindo a Justiça Desportiva, mas dos quais não emerge coisa julgada; pode a parte lesada, assim, sempre recorrer ao judiciário mesmo que determinadas demandas venham a ser analisadas e decididas por instrumentos procedimentais administrativos. Dessa forma, portanto, sempre haverá, no sistema atual, a possibilidade de a parte que se sentir prejudicada em um determinado julgado da Justiça Desportiva, procurar a justiça comum (atendidos os pressupostos de admissibilidade) e acabar por prejudicar o andamento de uma determinada competição desportiva.

O cenário proposto nesta coluna outorga ao estado a função de dizer o direito no esporte também sobre matérias que, até então, são exclusivas da Justiça Desportiva: disciplina e competição desportiva.

É necessário ressaltar a relevância da especialização neste contexto. A especialização é essencial para boa prestação jurisdicional. Sabemos da existência de dificuldades enfrentadas quando questões desportivas são levadas ao crivo da justiça comum, que por vezes profere decisões que se afastam completamente do contexto desportivo, causando danos. É basilar, portanto, que tenhamos uma Justiça especializada para tratar de questões desportivas.

O cenário: um sistema híbrido

Imaginemos a criação do “Juizado Especial Desportivo”, órgão de primeira instância, composto por magistrados selecionados de forma criteriosa e objetiva, passando por procedimentos isonômicos, seja através de concursos de títulos, ou de provas e títulos, amplamente divulgados.

Não obstante a criação do Juizado Especial Desportivo e considerando a impreterível observância da autonomia desportiva, concebamos agregá-la às práticas alternativas de resolução das controvérsias desportivas, através da mediação, arbitragem e conciliação para atuar em conjunto com o Juizado Especial Desportivo, flexibilizando o contexto decisório e exclusivo deste, bem como relativizando a ideia sustentada pelo princípio da autonomia desportiva irrestrita.

Dessa maneira, haveria um regime jurídico híbrido, no qual a autonomia desportiva estaria contemplada no procedimento arbitral privado (ou mediação, ou conciliação) e o estado estaria incumbido de proferir a decisão final, em casos em que as partes sentirem que foram prejudicadas.

Nesse sentido os litígios desportivos seriam apreciados e processados pelo procedimento arbitral, por mediação ou por conciliação, respeitadas as vontades das partes. O Juizado Especial Desportivo seria acionado no caso de as partes (i) se recusarem expressamente a submeter-se à arbitragem, mediação ou conciliação ou (ii) desejassem ter reexaminadas suas demandas pelo poder judiciário. O recurso ao Juizado Especial Desportivo teria efeito devolutivo, portanto, com análise total do mérito. Não seriam admitidos recursos contra as decisões proferidas pelo Juizado Especial Desportivo, salvo em casos de afronta a preceitos constitucionais, a exemplo do ocorrido no rito sumário da Justiça do Trabalho, previsto na Lei nº 5584/70, para ações cujo valor da causa não exceda a dois salários mínimos (art. 2º, §§ 3º e 4º).

O sistema híbrido de solução de conflitos desportivos imaginado nesta coluna resolveria a séria questão presente atualmente sobre a busca pelo judiciário ante uma insatisfação sobre os resultados advindos do atual sistema da Justiça Desportiva. Qualquer debate sobre reforma da Justiça Desportiva precisa ser pensado no sentido de enfrentar essa questão. O sistema híbrido pode auxiliar neste sentido, já que estaríamos lidando com uma justiça especializada, que teria as ferramentas necessárias à prestação jurisdicional técnica de qualidade.

Dar ao Estado o poder de dizer o direito no âmbito desportivo não significa deixar de lado todos os ditames da Lex Sportiva, já que não há como pensar o esporte sem que este esteja de acordo com as regras transnacionais desportivas. Nesse sentido, nos esclarece Gabriel Real Ferrer[1] que:

A nível interno, os Estados podem configurar livremente sua própria administração desportiva, podem criar Ministérios, ou Secretarias de Estado, ou Diretrizes Gerais, ou se preferirem os dispensar totalmente. Podem organizar sua administração periférica da melhor forma que lhes prouver. Podem distribuir competências em matéria desportiva entre os vários escalões, políticos ou administrativos em que configurem sua organização territorial. Mas não podem desconhecer radicalmente a existência de um fenômeno associativo que, tendo sua origem nas mais íntimas fibras da sociedade, estratificou sua estrutura até construir poderosas organizações mundiais que, em matéria desportiva, impõe sua vontade sobre os próprios Estados.

No entanto, ainda que a coluna tenha o condão de contribuir para a melhoria da Justiça Desportiva, não se pode ignorar que há também nela questões que podem ameaçar sua aplicabilidade:

  1. Financiamento do Juizado Especial Desportivo. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2017, as despesas totais do Poder Judiciário somaram R$ 90,8 bilhões. Do gasto total de R$ 90,8 bilhões em 2017, R$ 82,2 bilhões foram destinados ao pagamento de recursos humanos. São números espantosos que ensejam reflexão sobre qualquer proposta que tenda a aumentá-los ainda mais. Para evitar que isso ocorra seria necessário desenvolver um sistema que fosse sustentado financeiramente pela própria estrutura da arrecadação desportiva. Nesse sentido, os usuários da Justiça Desportiva, de forma efetiva ou potencial, arcariam com os custos da mesma. Contudo, ainda que fosse possível que o financiamento viesse exclusivamente dessa fonte, tal solução não é perfeita já que as entidades de prática desportiva possuem recursos escassos. Por outro lado, estabelecendo-se um percentual sobre as vendas milionárias de jogadores para o custeio da Justiça Desportiva, o peso financeiro sobre os pequenos clubes pode diminuir consideravelmente. É preciso aprofundar o debate nesse sentido.
  2. A morosidade característica do Poder Judiciário. É salutar a importância do princípio da celeridade na Justiça Desportiva, já que as competições precisam continuar. No que se refere à celeridade, o sistema atual geralmente atende tal demanda. É necessário que o Juizado Especial Desportivo mantenha as características peculiares da Justiça Desportiva, dentre elas a celeridade, sob pena de tornar-se absolutamente danoso ao esporte.

Não obstante os pontos negativos aqui expostos que podem minar a aplicabilidade do Juizado Especial Desportivo, há que se ressaltar que este órgão especializado teria condições de proferir decisões técnicas e com maiores índices de imparcialidade. Ademais, a transparência do processo seria mantida. Tais fatores são essenciais a todo e qualquer sistema de solução de controvérsias. É fundamental que a Justiça Desportiva tenha em si um alto grau de confiabilidade nas decisões por ela proferidas.

Salienta-se, finalmente, que para que a Justiça Desportiva venha a integrar o Judiciário brasileiro é preciso que seja proposta uma Emenda Constitucional e que sejam revogadas todas as disposições infraconstitucionais e regulamentárias que proíbem o acesso à justiça comum para discutir questões desportivas regulamentares e disciplinares. Adicionalmente, seria necessária forte negociação junto às Federações Internacionais que também proíbem às suas filiadas o acesso à justiça comum.

……….

[1] FERRER, G. R. Bases conceptuales de DerechoDeportivo: La naturalezadel sistema disciplinario y de otros grupos normativos relativos al `hechodeportivo´, a la `competición` y a laorganización deportiva´. In: Leonardo Schmitt de Bem; Rafael Teixeira Ramos. (Org.). Direito Desportivo: Tributo a Marcílio Krieger. 1 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009, v. 1, p. 196-206.

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