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Regras mudam, e o comportamento do goleiro em campo também

As mudanças nas regras ocorrem todos os anos, normalmente numa escala pequena, porém sempre acontecem conforme a International Board considere que serão benéficas ao futebol.

Ao longo dos anos, muitas regras relacionadas ao goleiro foram alteradas. Algumas delas foram:

– 1871 surge o goleiro e este podia tocar as bolas com as mãos em quaisquer partes do campo, pois não existiam as áreas;

– 1873 goleiros não podem mais carregar a bola com as mãos;

– 1874 as mãos podem ser usadas pelos goleiros só para defender sua própria meta;

– 1887 as defesas com as mãos pelo goleiro só podem ocorrer na sua metade do campo;

– 1892 é proibida a carga sobre o goleiro;

– 1901 torna-se permitida o toque com as mãos pelo goleiro em todo momento, não apenas para defender seu gol;

– 1902 as áreas de meta e penal são criadas e dentro dela o goleiro não podia ser atacado pelos adversários;

– 1912 apenas neste ano se proíbe o goleiro de tocar a bola com as mãos fora da sua própria área penal;

– 1929 goleiros são proibidos de se movimentar sobre a linha de meta na cobrança do pênalti;

– 1931 até este momento os goleiros podiam dar 2 passos carregando a bola, neste ano são autorizados a darem 4 passos;

– 1936 os goleiros ficam proibidos de receber a bola em suas mãos a partir da cobrança de um tiro de meta, antes que essa saísse da área penal;

– 1992 surge a proibição do recuo, os goleiros não podem mais pegar a bola com a mão que ocorre de um passe com os pés de um companheiro de equipe;

– 1997 a bola vinda de um arremesso lateral da própria equipe fica proibida de ser defendida com as mãos pelos goleiros;

– 2000 entra a regra dos 6 segundos, onde o goleiro pode manter a bola em suas mãos por no máximo este tempo e cai a regra dos 4 passos;

– 2019 na cobrança do tiro de meta a bola não precisa mais sair da área para entrar em jogo;

– 2019 na cobrança de pênalti é permitido ao goleiro manter apenas um pé sobre a linha de meta.

Com o intuito de tornar o futebol mais divertido, mais ofensivo, sem a conhecida “cera” para se ganhar tempo, duas das grandes mudanças, mais recentes, ocorreram em 1992, sobre a proibição do recuo, e em 2000, com os 6 segundos de posse de bola com as mãos, onde ajudaram a mudar o comportamento dos goleiros em campo.

Para entender melhor essa alteração de comportamento dos goleiros em função das mudanças de regras, conversei com Rafael Kiyasu, treinador de goleiros do Santos F.C. e instrutor da CBF Academy.

Kiyasu contou como as modificações nas regras com o passar dos anos interferiram nas ações dos goleiros:

“Podemos entender as mudanças das regras, e sua influência na posição do goleiro e mesmo no futebol como um todo, criando um paralelo à teoria do Caos iniciando com Edward Lorenz, em meados da década de 60, a partir de um fenômeno que se intitulou como o conhecido Efeito Borboleta (aquele mesmo do filme), quando uma pequena mudança no estado de qualquer sistema (incluindo os sistemas dinâmicos, como a vida ou até mesmo o futebol), poderia levar a mudanças drásticas no seu decorrer, gerando resultados inesperados e incertos (como qualquer ação dentro de um jogo).

Nos casos específicos dessas regras citadas, tendo influência direta nos comportamentos tático-técnicos individuais dos goleiros, o que por si, gera comportamentos tático técnicos coletivos, influenciando seus companheiros, adversários e consequentemente o jogo como um todo.

Como vimos inicialmente o futebol era jogado com 11 jogadores, dos quais um era o goleiro, (e neste ponto a regra ainda continua a mesma e o vê do mesmo jeito), porém sua atuação era livre pelo campo todo, o que era facilmente visível sua participação e influência no jogo coletivo. Conforme as regras foram se alterando e sua permissão em utilizar as mãos foi se restringindo, até culminar em 1912, quando só então o goleiro passa a reduzir a utilização das mãos em sua área de meta, criando uma espécie de “prisão ilusória”, ou como os  irmãos portugueses bem chamam a posição um “Guarda Metas”, local que assim como um policial (ou guarda) deveria vigiar (ou manter-se em guarda), não podendo sair dali.

Talvez neste momento o futebol foi compreendendo ou talvez seja melhor dizer, descompreendendo a posição do goleiro como coletiva, individualizando suas ações, tornando-o não somente único como “separado”.

Isso aumentou ainda mais quando também em meados de 70, em nosso país, surgiu a figura do treinador de goleiros, que entendendo da sua especificidade, talvez tenha cometido o erro de o retirar do jogo, e treinar todas essas especificidades fora do jogo, retirando não só o jogo, mas como também o importante contexto, e imprevisibilidades do jogo no qual ele está inserido, que o permitia entender suas ações com um significado mais “tático” e significativo, passando a priorizar o ensino do “como fazer” (técnica) em detrimento ao “porquê fazer” (tática), ganhando assim a técnica um status de prioridade absoluta no treino, deixando de ser uma ferramenta solucionadora de problemas, para ser a única resposta aos atos do jogo, treinada (ou adestrada) fora do jogo para depois de dominá-la ( ou domá-la), e coloca-la  de volta no jogo, acreditando que essa mecanização isolada e parcial seja transferida de forma plena em uma dinâmica interativa e sistêmica do jogo.

Curiosamente na mesma década de 70 na Alemanha, um autor chamado Freindrich Mahlo lança uma obra chamada “O acto tático no jogo”, contrariando essa linha extremamente isolada do ato técnico treinado fora de contexto, e tornando imprescindível perceber e analisar a situação, buscar então uma solução mental para só então transformar esse processo em uma solução motora.  Desde então outras grandes obras foram lançadas (e aparentemente passadas despercebidas pelos treinadores da posição).

Apenas na década de 80, o holandês Cruyff, treinador do Ajax, e influenciado pelo seu antecessor Rinus Michels, recupera nosso personagem de seu isolamento (e porque não considera-lo social também?) incorporando o goleiro de volta aos 10 jogadores que estavam no campo a sua frente e o libertando das linhas (não apenas imaginárias) de sua área, considerando o goleiro como parte fundamental da equipe, como dizia ele: “se o goleiro ficar estático no gol, seria muito distante do que aquilo que é jogado pelo resto da equipe. Atuando como jogador, o goleiro dá a sua equipe um jogador extra contra seus oponentes. Na realidade jogamos com 11 jogadores, enquanto os adversários com 10 e meio.”

Porém este advento só começaria mesmo a ser mais e mais bem explorado na década seguinte, quando o fator da regra proibir o uso das mãos no recuo, o goleiro passa a ter que incluir em seu repertório motor as ações com o uso dos pés dos jogadores.

Ano passado tivemos mais uma alteração na regra, permitindo que o tiro de meta seja cobrado dentro da área, e seu efeito reverberou, aumentando a proximidade e com isso os elementos de pressão, cada vez mais próximos ao goleiro, obrigando ao goleiro a ter cada vez mais “habilidade motora”, para se sobressair sobre os adversários.

Como vimos não só as regras alteram o jogo, como seus elementos sofrem fortes influências culturais e históricas na sua forma de jogar, e com isso devemos refletir em uma conhecida frase, “treina-se como se joga”; esta deve ser cada vez mais verdadeira em sua essência, reconhecendo os aspectos inerentes do jogo, (entre eles a imprevisibilidade, dinamismo, técnica aberta, tomadas de decisão constantes) e transformando o jogar no seu verdadeiro treinar, retornando ao jogo de futebol com 11 jogadores e claro, trazendo na bagagem um verdadeiro e inestimável legado, sobre as especificidades da posição.

Em síntese poderíamos ponderar:  muda-se a regra, muda-se o jogo, muda-se o treino.

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