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Responsabilidade da SAF em dívidas do clube original e as decisões na Justiça do Trabalho

A Sociedade Anônima do Futebol do Botafogo, polo passivo em uma ação trabalhista em tramite no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, foi condenada para cumprir solidariamente a obrigação contraída pelo clube original (Botafogo de Futebol e Regatas).

A responsabilidade da SAF frente aos passivos do clube original já foi objeto de ação no TRT 3ª Região, em demandas trabalhistas envolvendo o Cruzeiro SAF e o Cruzeiro Esporte Clube. Verifica-se, no entanto, que a Justiça do Trabalho de Minas Gerais proferiu entendimentos divergentes em seus julgados, impelindo, por essa razão, uma breve análise do que menciona a Lei 14.193/21.

Inicialmente, importa mencionar que na ação ajuizadas em face ao Cruzeiro, o autor (ex-treinador de goleiras do time feminino) pugnou pelo reconhecimento de grupo econômico entre o Cruzeiro SAF e o clube original (Cruzeiro Esporte Clube). Nessa reclamação precisamente, a responsabilidade solidária do Cruzeiro SAF sucedeu sob fundamento de que, ainda que o Cruzeiro SAF detenha personalidade jurídica própria, diversa do Cruzeiro E.C., ambas integram grupo econômico, nos termos do que define o art. 2º, §2º da Consolidação das Leis do Trabalho.

De forma distinta, a outra reclamação trabalhista, ajuizada por um ex-fisiologista do clube azul-celeste, culminou em procedência da ação, valendo-se do cumprimento das regras próprias estabelecidas na Lei 14.193/21 (Lei da SAF). Acertadamente, portanto, o magistrado dessa ação laboral coadunou a aplicação da lei específica do assunto ao caso concreto, inserindo a situação tal como prescreve às singularidades da legislação.

Como já citado em outros textos desta seção do Lei em Campo, a SAF pode ser constituída (art.2º): i) pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; ii) pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol; iii) pela iniciativa de pessoa natural, de pessoa jurídica ou de fundo de investimento;  iv) o clube ou pessoa jurídica original poderá tornar-se acionista,  e integralizar o capital social da SAF com a transferência de seus ativos (art. 3º).

Com exceção do art. 2º, inciso III, da Lei da SAF, todas as demais formas acima citadas podem demandar responsabilidades pretéritas à constituição da SAF. O debate sobre essa questão torna-se eminente quando, dentre as responsabilidades, há pendencias de obrigações financeiras adquiridas pelo clube original.

Nesses casos, a lei é objetiva quanto à responsabilidade da SAF, atentando-se à premência do credor tanto quanto a importância de propiciar a recomposição financeira do clube e da companhia.

O art. 9º da Lei 14.193/21, então, estabelece que quando a SAF for constituída pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol (art. 2º, §2º), a SAF “não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social”.

Assim sendo, quando se tratar de obrigações financeiras pendentes, contraídas antes da constituição da SAF, o devedor principal é o clube ou pessoa jurídica original, sendo a SAF responsável indiretamente perante o credor, mas, diretamente perante ao clube original, mediante os seguintes critérios do art. 10 da Lei da SAF, quais sejam: i) por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei; ii)  por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.

A Lei da SAF atribuiu ao clube original a responsabilidade primária perante o credor nos casos em que o passivo foi gerado pelo clube antes da SAF ser formada, devendo este cumprir com as obrigações conforme sucede a descrição pragmática da lei, a qual transpõe o intento do legislador em assegurar a atividade econômica do clube original e da SAF, e preservar a subsistência de ambas, como antídoto ao cenário atual que se verifica.

Nota-se que a Lei 14.193/21 nada menciona sobre responsabilidade solidária, assim como sobre grupo econômico, inserindo a SAF como sustento do clube original, em uma sistematização própria e específica, adequada à melhor configuração do mercado, de forma a satisfazer as dívidas irresolutas dos clubes.

À vista disso, na cautela de afiançar o cumprimento de inúmeras obrigações pretéritas, acumuladas ao longo de décadas de existência dos clubes, a Lei da SAF estabelece a responsabilidade subsidiária da SAF, na forma do art. 24 da Lei 14.193/21.

Importante citar que a responsabilidade subsidiária possui caráter acessório, estabelecendo-se de forma suplementar no pagamento de uma dívida, sendo cabível somente após a impossibilidade do cumprimento pelo devedor principal, devendo necessariamente observar-se essa ordem, como pode ser observar da leitura de dispositivos legais que prescrevem sobre o tema, como o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, e o art. 133 do Código Tributário Nacional.

Por outro lado, na responsabilidade solidária, não há diretriz quanto ao devedor que será cobrado, podendo o credor fazê-lo sem ter que observar qualquer colocação, podendo cobrar, inclusive, somente de um dos devedores. A responsabilidade solidária, contudo, não pode ser presumida, devendo a lei prevê-la, ou ser acordada entre as partes, nos termos do que dispõe os arts. 264 e 265 do Código Civil:

Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda.
Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.

A SAF, entretanto, nada menciona sobre a responsabilidade solidária, prevendo a responsabilidade subsidiária no art. 24, e a responsabilidade indireta perante o credor na forma dos arts. 9 e 10 da Lei 14.193/21. Em resumo, a SAF não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social. Por sua vez, o clube ou a pessoa jurídica original é responsável pelas obrigações anteriores à constituição da SAF, por meio de receitas próprias, pelo repasse de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF, e por destinação de 50% dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida da SAF, na condição de acionista, situação em que, se devidamente observada, os patrimônios e as receitas da SAF não poderão sofrer quaisquer constrição, como penhora ou bloqueio de valores quanto às obrigações anteriores à formação da SAF (art. 12).

Além de não haver previsão de responsabilidade solidária e/ou direta da SAF, também não há caracterização de grupo econômico. Sobre isso, a previsão contida no art. 2º, §2º da Consolidação das Leis do Trabalho deve ser afastada em ações envolvendo SAF, ante à observância do princípio da especialidade, devendo o magistrado aplicar ao caso concreto a Lei da SAF, justamente pela individualidade que ela prescreve em sua redação para estes casos. Assim, a CLT deixa de ser fonte de Direito, diante da existência da Lei 14.193/21 que versa especificamente sobre o assunto.

Além do mais, vale mencionar que para o reconhecimento de eventual sucessão trabalhista, o Tribunal Superior do Trabalho já se posicionou de forma a exigir a continuidade do contrato de trabalho do empregado com a nova companhia.

Referida lei ampara o credor, servindo a constituição da SAF como instrumento para ampliar e incrementar a obtenção de receitas como mais uma forma de efetivação dos passivos. O que, no entanto, deve ser observado, é a ordem em que o cumprimento das obrigações foi estruturado.

Portanto, infere-se que a Lei 14.193/21 não isenta a SAF das responsabilidades contraídas pelo clube original, mas, tão somente, a estabelece de forma ordenada, justamente para atender as singularidades do setor, e, para assegurar a viabilidade do premente fluxo financeiro, sustentabilidade e subsistência da companhia desportiva. A responsabilidade da SAF, contudo, existe perante o clube original, e este, por sua vez, é o devedor principal, onde recai a responsabilidade direta ao credor.

Por outra via, o clube original poderá quitar suas obrigações com pagamento direto ao credor, ou, valendo-se de concurso de credores, por intermédio do já abordado Regime Centralizado de Execuções do art. 13, I, da lei, ou por meio de recuperação judicial ou extrajudicial nos termos da Lei 11.101/05.

Além de assegurar um fluxo contínuo e sustentável de repasse de valores pela SAF ao clube original, a lei estabelece incentivos para certificar a regularidade do citado pagamento, conforme dispõe o art. 15, §2º. Ou seja, se o clube ou pessoa jurídica original comprovar a adimplência de ao menos 60% do seu passivo original ao final dos 06 anos, será permitida a prorrogação do Regime Centralizado de Execuções por mais 04 anos, ocasião em que se permitirá uma redução do repasse das receitas correntes mensais para 15%.  Decorrido esse período, o credor restará amparado pela SAF, caso o clube ainda assim não pague o valor devido, sendo responsável subsidiário pelo cumprimento das obrigações civis e trabalhistas anteriormente constituídas pelo clube (art. 24).

A constituição da Sociedade Anônima do Futebol não retira em nada os direitos do credor. Muito pelo contrário, a lei sistematiza um formato que amplia o potencial financeiro do clube original para que possa finalmente cumprir com suas pendências financeiras.

A SAF não ser devedor solidário não o isenta de responsabilidades. A Lei da SAF sistematiza uma organização própria onde a SAF contribui com a recomposição do clube, os quais muitas vezes, estão à beira da insolvência, além de somar inúmeras execuções frustradas perante seus credores.

Considerando a atual realidade financeira dos clubes, a Lei 14.193/21 prescreveu diversas ferramentas de financiamento e meios de obtenção de recursos para reorganização dos clubes e liquidação dos passivos tragicamente acumulado ao longo das décadas de gestões inadequadas e inapropriadas à dimensão demandada pelo futebol.

O art. 24 da lei citado acima reforça essa ideia, ao determinar que a SAF pode ser responsabilizada subsidiariamente pelo pagamento da dívida, decorrido o período de 10 anos estabelecido no art. 15, §2º, podendo, ainda, o plano de pagamento ocorrer de forma diversa por meio de negociação coletiva (art. 19). Assim como a atenção aos credores, privilegiados pela ordem dos créditos trabalhistas (art. 18), possibilitando também a negociação da dívida trabalhista com deságio (art. 21).

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