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Responsabilidade dos clubes em casos de conflitos causados por torcedores (nos estádios e fora deles)

Nas últimas semanas assistimos a lamentáveis episódios de violência causados por torcedores, dentro dos estádios e fora deles. Houve o episódio de violência contra o ônibus do Fortaleza no dia 21 de fevereiro; no dia 25 de fevereiro, dois torcedores do Internacional sofreram traumatismos cranianos após partida válida pela 10ª rodada do Gauchão; e no dia 02 de março um torcedor faleceu após uma briga entre torcidas organizadas do Atlético Mineiro e Cruzeiro.

Os casos citados não são isolados; para nosso lamento, são cada vez mais comuns. Nesse cenário, é comum também questionar a responsabilidade dos clubes quando da ocorrência de tais episódios.

Quando analisamos as ocorrências de violência dentro dos estádios, o debate parece estar pacificado: a responsabilidade é dos clubes; tanto o mandante quanto o visitante podem responder por atos dos seus torcedores. A responsabilidade é objetiva, ou seja, não há necessidade de demonstração de culpa para que haja a responsabilização.

A responsabilidade objetiva do clube sobre o comportamento dos seus torcedores é expressa no artigo 8 do Código Disciplinar da FIFA, artigo 78 do Regulamento Geral de Competições da CBF, no artigo 152 da Lei Geral do Esporte e em diversos artigos do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).

À título exemplificativo, cita-se o artigo 213 do CBJD que pune aquele que “deixa de tomar providências capazes de prevenir e reprimir: I — desordens em sua praça de desporto; II — invasão do campo ou local da disputa do evento desportivo; III — lançamento de objetos no campo ou local da disputa do evento desportivo.”

A sanção de multa e, quando a infração é de elevada gravidade, a perda de mando de campo, é destinada ao clube, não àquele que efetivamente realizou desordens, invadiu o campo ou lançou objetos.

A norma é clara.

É dizer: se um torcedor comete quaisquer das três infrações tipificadas no artigo 213 (desordem, invasão ou lançamento de objetos), a previsão é a de que haja punição ao clube, não ao torcedor que efetivamente praticou a desordem, a invasão e/ou o lançamento de objetos.

O debate começa a ficar um pouco mais nebuloso quando lidamos com fatos ocorridos fora dos estádios, mas ainda assim temos uma relativa pacificação.

Além das normais públicas e privadas citadas, também o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou algumas vezes sobre a responsabilidade do clube mandante pela segurança dos seus torcedores. O STJ tem entendimento no sentido de responsabilizar o mandante da partida e a entidade de administração do desporto (CBF, no caso do futebol) pela segurança dos torcedores.

Só que além de reafirmar a responsabilidade do mandante e da CBF sobre a segurança dos torcedores, o STJ deixa claro que o local do evento esportivo não se restringe ao estádio, mas abrange também o seu entorno.

A ministra Nancy Andrighi, relatora do REsp 1.924.527, ressaltou que “o clube mandante deve promover a segurança dos torcedores na chegada do evento, organizando a logística no entorno do estádio, de modo a proporcionar a entrada e a saída de torcedores com celeridade e segurança“. Essa posição foi observada tanto no citado REsp 1.924.527 quanto no REsp 1.773.885, este como relator o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.

O posicionamento do STJ está em consonância com a própria Lei Geral do Esporte, que em seu artigo 149, I exige que o clube mandante solicite “ao poder público a presença de agentes públicos de segurança, devidamente identificados, responsáveis pela segurança dos espectadores dentro e fora dos estádios e dos demais locais de realização de eventos esportivos” (destaque nosso).

Até aqui, portanto, fica claro o entendimento majoritário de que o clube é responsável pelas ocorrências de violência perpetradas pelos seus torcedores, dentro do estádio e em seu entorno.

Não parece estar claro, porém, o limite do “entorno”. É dizer: qual é o raio de distância que define o limite da responsabilidade do clube?

É possível argumentar que este raio é de 5000m ao redor do estádio. Esse número está no artigo 201, § 1º,I  da Lei Geral do Esporte, que tipifica como crime contra a paz no esporte o ato de “promover tumulto, praticar ou incitar a violência em um raio de 5.000 m (cinco mil metros) ao redor do local de realização do evento esportivo ou durante o trajeto de ida e volta do local da realização do evento”

Com base neste mesmo artigo, é possível o argumento de que o raio é até maior do que 5000m, já que há previsão de prática do crime tipificado “durante o trajeto de ida e volta do local da realização do evento”, seja lá qual trajeto for.

Para fazer uso desta métrica, contudo, é preciso fazer uma interpretação extensiva do artigo 201 para utilizá-lo clube como fundamento para a responsabilização do clube por ato de terceiro. Isso porque a norma, como dito, tipifica um crime contra a paz no esporte cometido por um torcedor; a norma é direcionada ao torcedor, não ao clube.

Esse tipo de interpretação extensiva pode nos trazer problemas já que toda norma que restrinja os direitos e garantias fundamentais reconhecidos e estabelecidos constitucionalmente deve ser interpretada restritivamente.

Essa questão não é, obviamente, pacífica. Na Apelação Cível TJRS AC 70080360589 (Nº CNJ: 0007967-28.2019.8.21.7000), o Des. Eugênio Facchini Neto proferiu voto divergente do voto do Relator utilizando a métrica do artigo 201 da Lei Geral do Esporte (à época o artigo 41-B do Estatuto do Torcedor) como um dos fundamentos que sustentou seu entendimento no sentido de responsabilizar o clube mandante por atos de violência do torcedor fora do estádio[1].

O posicionamento do Des. Eugênio Facchini Neto é o de que ainda que o dano causado pelos torcedores tenha sido causado longe das dependências do estádio, se vinculado ao evento desportivo, deve ser imputado ao clube a responsabilidade pelo eventual ressarcimento das vítimas[2].

Este também parece ser o entendimento da CONMEBOL. Em seu Manual de Clubes, no item 5.11.1, há previsão de que a associação membro ou o clube local são responsáveis pelo “bem-estar e a tranquilidade das delegações esportivas locais, visitantes e  autoridades esportivas durante sua estadia na cidade anfitriã”.

A previsão da CONMEBOL vai ao encontro do entendimento do Des. Eugênio Facchini Neto sobre ser responsabilidade do clube toda e qualquer ocorrência de violência relacionada ao evento esportivo.

Não é um entendimento majoritário, porém.

Na Apelação Cível TJRS AC 70080360589 o voto do Des. Eugênio Facchini Neto foi um voto divergente, que contrariou o entendimento da maioria. O que prevaleceu naquele caso foi a teoria de que “não é possível responsabilizar o clube por todos os atos e pela segurança individual de seus espectadores para além do entorno do local onde realizada a partida de futebol[3]”.

Esta parece ser a posição do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Logo após as ocorrências de violência contra o ônibus do Fortaleza no dia 21 de fevereiro de 2024, o Tribunal emitiu uma nota[4] afirmando que “por se tratar de infração ocorrida fora do estádio, o Tribunal do Futebol destaca que a competência para análise e denúncia é exclusiva da Secretaria de Segurança Pública do estado”.

Concordamos com o entendimento do STJD. Não nos parece razoável atribuir aos clubes a responsabilidade pelo provimento da segurança em qualquer local da cidade, desde que tenha conexão com o evento esportivo. Casos como o ocorrido no ataque ao ônibus do Fortaleza e a morte do torcedor durante conflito de torcidas em Belo Horizonte são questões de segurança pública. Os clubes devem auxiliar o poder público na identificação dos criminosos, mas a responsabilidade nesses casos não pode ser atribuída a eles.

Crédito imagem: Fortaleza/Divulgação

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[1]Pois bem. Os autores obviamente não estavam na condição de “espectadores pagantes”, mas se encontravam nas imediações do estádio, se considerarmos que para efeitos de responsabilização penal, importam condutas praticadas num raio de 5.000 metros ao redor do local de realização do evento desportivo, como referido na norma acima citada. E a residência do autor estava num raio bem mais próximo (cerca de pouco mais de 400 metros em linha reta). Enquanto a primeira circunstância estaria a indicar não estarem eles protegidos pelo CDC, a segunda circunstância coloca dúvidas sobre isso”.

[2]não se trata de abrir as portas para toda e qualquer indenização sofrida por alguém, em dia de jogo. Há que ficar perfeitamente claro o nexo de causalidade entre o dano e a atividade desenvolvida no estádio, ou seja, o jogo e as paixões que ele suscita. E tenho que isso restou evidenciado nos autos. Como dito acima, a conduta praticada pelos dois grupos de vândalos que causaram os danos descritos na inicial estava inequivocamente vinculada ao que sucedera no estádio.”

[3] APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. DEVER DE SEGURANÇA. ESTATUTO DO TORCEDOR. DEPREDAÇÃO REALIZADA POR TORCEDORES NA RESIDÊNCIA DOS AUTORES LOCALIZADA FORA DAS ADJACÊNCIAS DO ESTÁDIO DE FUTEBOL. DANOS MATERIAIS E MORAIS. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. LEGITIMIDADE PASSIVA DO CLUBE RECONHECIDA POR FORÇA DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA ASSERÇÃO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

A entidade responsável pela organização de competições e de práticas esportivas equipara-se a fornecedor. Exegese dos artigos 14 do CDC e 3º da Lei 10.671/03 (Estatuto do Torcedor). E, de acordo com o que dispõe o artigo 14, inciso I, do mesmo Estatuto, a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento esportivo é da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes.

Conforme dispõe o art. 14 do CDC, que trata da responsabilidade pelo fato do serviço, a responsabilidade é objetiva, ou seja, independe de culpa, bastando que fique comprovada a ocorrência do fato, o dano e o nexo de causalidade entre ambos.

No caso, embora incontroverso que a residência dos autores foi alvo de depredação por torcedores do SCI (ocorrência do fato), não se olvidando, de igual forma, que a situação aterrorizante por eles vivenciada foi extremada, afora os prejuízos de ordem material resultantes do evento (ocorrência do dano), não verifico presente o nexo de causalidade capaz de ensejar a reparação pretendida.

O evento noticiado, e que fulcra a pretensão indenizatória, ocorreu fora do estádio, não se podendo responsabilizar o clube por todos os atos e pela segurança individual de seus espectadores, sejam eles torcedores ou não, inclusive para além do entorno do local onde realizada a partida de futebol.

REFORMA DA SENTENÇA QUE EXTINGUIU O FEITO POR ILEGITIMIDADE PASSIVA, DE OFÍCIO, PARA JULGAR IMPROCEDENTE A AÇÃO.

RECURSO DESPROVIDO, POR MAIORIA

[4] https://www.stjd.org.br/noticias/nota-oficial-sobre-o-episodio-contra-o-onibus-do-fortaleza

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