Por Juliana Biolchi
À medida em que progridem os projetos de Sociedade Anônima do Futebol, e que os clubes começam a lançar mão dos meios legais de renegociação de seus passivos (regime centralizado de execuções, recuperação extrajudicial ou recuperação judicial), os impactados pelo alongamento da dívida passam a manifestar o seu descontentamento, ainda mais quando a nova engenharia do débito decorre de uma imposição legal (caso do RCE, cuja forma de pagamento é pré-estabelecida em lei), sem, portanto, negociação.
Nesse cenário, vemos renascer o estereótipo, acalentado pelo senso comum, de que devedor em crise é alguém que busca obter vantagem patrimonial em detrimento de seus credores. Em palavras simples: um vigarista.
Trata-se de um arquétipo completamente descontextualizado, que precisa ser discutido e reformulado. Essa tendência confunde inadimplemento com fraude e acaba criminalizando o Clube em dificuldade (e seus dirigentes). E isso prejudica o resultado útil dos processos — judiciais ou extrajudiciais — de reestruturação, erguendo paredes onde deveriam existir pontes.
Para desconstruir a fábula, é preciso entender o sentido da crise na vida da organização. Assim como no caso da pessoa física, a pessoa jurídica também nasce, tem sua própria vida e, em algum momento, enfrentará a morte. Para vencer as ameaças à sua perenidade e garantir a continuidade, é imprescindível tomar atitudes. Elas são determinadas, entre outros aspectos, pelo sistema de valores dos indivíduos — e é nesse ponto que a cultura estereotipada em torno do devedor em crise limita o diálogo.
Em caminho contrário, se as partes interessadas forem capazes de reconhecer as oportunidades na crise e de agirem em cooperação para superar dificuldades, a atividade futebolística viável se manterá, e esse é o interesse comum entre clubes e seus credores.
Se a cultura criminalizadora é obstáculo, a negociação é o caminho para a busca da harmonização entre as partes (ainda que não seja obrigatória). Ora, o clube pode optar pelo RCE, sim, e não precisa negociar com credores, do que resultará o alongamento da dívida sem legitimidade. Mas, em outro sentido, pode partir para estruturas dialogadas, como a recuperação extrajudicial, e reconstruir a relação com as pessoas que, um dia, estiveram em seus quadros e fizeram sua história.
O sistema legal criado para salvar clubes viáveis, no qual a SAF é um dos pontos centrais, deveria disparar o gatilho da colaboração, funcionando como palco para a construção de um novo paradigma e uma nova capacidade de resposta às ameaças que assombram os clubes. Se os envolvidos incentivaram a cooperação, reforçando o fair play com transparência e simetria informacional, o resultado virá a bem de todos, desonerando o Poder Judiciário e tornando o sistema de insolvência do futebol ainda mais eficiente.
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Juliana Biolchi é diretora geral da Biolchi Empresarial. Mestre em direito e especializada em revitalização de empresas, negociações complexas e recuperação extrajudicial.