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Saudades do que a gente não viveu

Por Tom Assmar

Durante os anos recentes que precederam a pandemia de Covid-19, o mundo das nações mais desenvolvidas viveu uma conjunção benigna de baixa inflação e forte crescimento econômico. Mudanças na pirâmide demográfica, a consolidação de redes internacionais de suprimentos e consumo trazidas pela globalização, fortes investimentos em educação e o aumento nos índices de produtividade e eficiência dos processos produtivos trazidos pelo uso intensivo de tecnologia criaram condições macroeconômicas que possibilitaram a esses países conviverem por muitos anos com baixíssimas taxas de juros (em alguns casos com taxas negativas de juros reais). Como consequência, um crescente volume de capital passou a investir globalmente em novas oportunidades de negócios que tivessem retornos mais atrativos do que os obtidos no mercado financeiro, descobrindo em pouco tempo o imenso potencial presente nos mais diversos segmentos esportivos. O dinheiro piscou, o esporte sorriu … deu match.

Para quem investe, uma série de fatores fez do futebol europeu um terreno fértil para receber generosos recursos de fundos norte-americanos, asiáticos e de países do oriente médio: governança centralizada em torno de ligas; mecanismos de controle financeiro flexíveis (em alguns casos até demais, favorecendo práticas de sportswashing); regulamentação estável e segurança jurídica favorável ao surgimento e desenvolvimento de clubes empresa com atuação e marcas globais; torcedores com maior renda disponível para consumir produtos licenciados e um aumento vigoroso nas receitas de direitos de transmissão. Dado ao que aconteceu por aqui nesse mesmo período, é fácil perceber por que esses investidores trataram o mercado brasileiro com desinteresse e desconfiança, e fizeram nosso futebol ficar ainda mais distante do que é praticado dentro e fora de campo no velho continente.

Para quem torce, tanto dinheiro transformou o que uma vez foi apenas um esporte em uma indústria bilionária do entretenimento, marcada pela obsessão em potencializar a experiência do torcedor em consumir ao se divertir. Tudo passou a girar em torno de oferecer um grande evento atraente ao público internacional: aumento da segurança com a punição a clubes e torcedores que promovam qualquer tipo de violência; estímulo à diversidade, respeito e tolerância; reforma dos estádios para incorporar elementos de ambientação que potencializam a experiência do jogo; oferta de conteúdo proprietário e exclusivo ligado à imagem de clubes e jogadores; calendário unificado entre as principais ligas e um crescente uso de tecnologias de interação e transmissão das partidas. O jogo virou apenas uma parte do espetáculo, e aqueles que não entenderam o que estava acontecendo ficaram pelo caminho. É sempre assim … a história oficial sempre será contada pelos vencedores.

No ultra competitivo mercado mundial do turismo, há muito trabalho e inteligência envolvidos na capacidade de transformar um recurso em um produto. Cachoeiras, praias, cidades, florestas, comidas, teatros ou estádios são recursos turísticos. Existem em vários lugares do mundo e podem ser mais ou menos atrativos, mas só irão gerar riqueza e desenvolvimento sustentável quando forem transformados em produtos turísticos ao terem posicionamento, embalagem, promoção e comercialização adequadas. Essa transformação não é simples, leva tempo e exige conhecimento, investimento e gestão profissional. Mas é isso que explica por que em 2019 o Brasil recebeu 6,3 milhões de turistas estrangeiros, enquanto a Espanha recebeu 84 milhões.

Em vários indicadores que medem o avanço de um país, nós estamos ficando para trás. Temos sistematicamente perdido posições nos rankings internacionais de educação (PISA), transparência e acesso à informação (Repórteres sem Fronteira), corrupção (Transparência Internacional) e competitividade econômica (IMD). Em todos eles, não apenas nossa posição é ruim como ainda por cima nossa progressão é negativa, com piora nas notas absolutas e perda de posições no ranking ao longo do tempo.

No futebol, esse movimento não é diferente. A despeito de nossa seleção estar em 2º lugar no ranking da FIFA e nossos jogadores terem papeis relevantes nos clubes mais ricos e poderosos, nossos times têm pouquíssima relevância e competitividade internacional. Nosso campeonato é visto fora do Brasil apenas por brasileiros. Os clubes, torcedores e investidores internacionais não se interessam pelos nossos jogos, apenas pelos nossos jogadores. Assim como no turismo, temos recursos ricos e produtos pobres. Continuamos à margem da riqueza criada no mundo, fechados em nós mesmos e ainda distantes e irrelevantes para o capital global. Quanto potencial desperdiçado … que saudade do que a gente ainda não viveu.

Igual eu preciso dele, na minha vida, mas quanto mais eu vou atras mais ele pisa,

então já que é assim, se por ele eu sofro sem pausa, quem quiser me amar, também vai sofrer nessa bagaça …

Quem eu quero não me quer, quem me quer não vou querer, ninguém vai sofrer sozinho, todo mundo vai sofrer.

Todo Mundo Vai Sofrer – Marília Mendonça

Ah futebol brasileiro, quanta sofrência, quanta ingratidão … como você me trata mal… como eu queria que tudo fosse diferente. Será que um dia seremos o que poderíamos ter sido ? Queria muito achar que sim, mas me oferecendo um produto de tão baixa qualidade só minha paixão de torcedor pode explicar por que ainda tenho esperança e te dou atenção. Sua sorte é que a paixão cega e nos tira a capacidade de perceber os fatos e agir sobre a realidade. Afinal, quem nunca se apaixonou por algo (ou alguém) que lhe faça mal ? Faz parte da vida … e como todo apaixonado, olho para a bola dos nossos gramados e digo pra ela que eu sou facinho facinho, todo seu de corpo e alma, que ela me tem quando quiser, que basta ganhar jogando bem que eu enlouqueço e perco o juízo, e que tudo que eu queria era que nosso amor não tivesse sofrimento. Mas ela ignora minha cantada e continua a rolar sem prestar atenção em mim, tão segura da sua beleza que não percebe que já não está mais sozinha na minha vida. Tudo bem … amar e sofrer andam mesmo juntos, e mesmo mal tratado ainda não sou capaz de te abandonar. Meu coração de torcedor já se acostumou com sua indiferença. Mas percebo que minha mente e meu bolso não estão felizes e já começam a querer brigar comigo. Quem sabe um dia eles me acordem dessa loucura e procurem me compensar com outras paixões. Só o tempo dirá …

Crédito imagem: Getty Images

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fTom Assmar tem graduação e mestrado em Administração, e atua há mais de 25 anos com gestão, planejamento e finanças. Acredita que o futuro do nosso futebol passa necessariamente pela formatação de um produto que atenda aos interesses coletivos e pela qualificação da gestão dos clubes. É sócio do Futebol S/A.

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