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Sem virar a mesa: apontamentos sobre o julgamento do Caso Gabigol

Pitágoras Dytz

Escritor. Advogado da União, ex-Consultor Jurídico junto ao Ministério do Esporte

@pitagoras_dytz

““Obediência” significa, para nós, que a ação de quem obedece ocorre substancialmente como se este tivesse feito do conteúdo da ordem e em nome dela a máxima de sua conduta, e isso unicamente em virtude da relação formal de obediência, sem tomar em consideração a opinião própria sobre o valor ou desvalor da ordem como tal.”

Max Weber, Economia e Sociedade

Tão logo encerrados os debates no âmbito do Tribunal e proclamado o resultado – culpado, com pena de dois anos, por infração às regras antidopagem – iniciaram-se os debates na imprensa. Não era para menos, afinal, tratava-se de Gabriel Barbosa, o Gabigol, jogador que já serviu à Seleção Brasileira e que, até 25 de março, jogava no Clube de Regatas Flamengo, clube que, em nota oficial, afirmou ter sido pego de surpresa com o resultado e que, ainda segundo a imprensa, acredita que a pena aplicada teria sido motivada pela pessoa do acusado e não decorrente da conduta realizada, que, em sua visão, não teria sido fraude, mas um mero mau comportamento[1]. Não faltaram também os ‘especialistas em generalidades’ que, no calor da hora, saíram reverberando a surpresa e afirmando que não conheciam casos como esses[2].

Não há como discutir o caso em si, pois os documentos a ele relacionados ainda não foram disponibilizados; só quem os conhece são os membros da Justiça Desportiva Antidopagem – JAD, a ABCD e a equipe da defesa do jogador, e também não há porque, eis que o caso já foi julgado e logo abrem-se as portas do CAS para sua avaliação e eventual revisão, a qual, contudo, creio não ser provável, uma vez que, diferentemente do quanto afirmado pelos ‘especialistas’, aquela corte arbitral já julgou conduta similar à que valeu a condenação a Gabigol e manteve a condenação fixada originariamente. Portanto, não será surpresa nenhuma para Flamengo, para atleta ou qualquer outro que o condenado tenha que esperar até 2025 para voltar aos campos.

O que não surpreende é a reação pós-julgamento. Era natural e esperada, e seria até inusitado uma mera resignação. Também é natural que, à falta de argumentos – que parece ter sido a tônica que levou à condenação na corte antidopagem, se apele a estratagemas argumentativos, notadamente de caráter erístico – segundo Schopenhauer, a dialética erística é a arte de discutir, mais precisamente a arte de discutir de modo a vencer, e isto per faz e per nefas (por meios lícitos e ilícitos)[3].

Não se questiona a validade do julgamento, nem a legitimidade da decisão. Por vias tortas, ou desvios, questiona-se a sua justiça, especialmente em virtude do que se considera uma pena excessiva e que, a considerar o que já se veiculou na imprensa, segundo o clube, teria sido motivada pela pessoa do acusado, como se a JAD houvesse se valido da Teoria do Direito Penal do Inimigo, de Gunther Jakobs, para aplicar-lhe a pena. Mas não, os auditores da JAD apenas aplicaram a pena prevista para casos como esse.

A JAD, composta pelo Tribunal e pela Procuradoria de Justiça Antidopagem, é um dos legados positivos dos Grandes Eventos Esportivos realizados no Brasil entre 2014 e 2016, sendo resultado de um esforço para dar concretude ao compromisso assumido na Convenção Internacional contra o Doping nos Esportes, celebrada em Paris, em 19 de outubro de 2005, que foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no 306, de 26 de outubro de 2007, e promulgada por meio do Decreto nº 18 de novembro de 2008. Não foi uma solução simples – sua construção foi feita a muito custo –, mas tornou-se realidade a partir da MP nº 718, de 16 de março de 2016, que foi integralmente convertida na Lei nº 13.322, de 28 de julho de 2016, que modificou a Lei Pelé para nela introduzir uma série de modificações – as quais perduram até hoje, mesmo com a edição da Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023. Era um primeiro passo na modernização e moralização da Justiça Esportiva brasileira, tão desgastada por decisões duvidosas e tendenciosas.

Mas mais do que dar cumprimento ao compromisso internacional assumido pelo País, havia a necessidade de se conferir uma confiabilidade ao sistema de controle de dopagem em funcionamento no Brasil, visto com desconfiança pela Agência Mundial Antidopagem – AMA (ou WADA), que enxergava com certa estranheza – opinião compartilhada por quem se deparava com os sucessivos casos julgados pela justiça desportiva comum – a falta de uniformidade no processamento dos casos e também nas decisões[4], com penas variando conforme a modalidade e sendo aplicadas mesmo ao alvedrio das previsões consignadas no Código Mundial Antidopagem – CMA, quando não havendo a absolvição de atletas ou a aplicação de penas mais brandas[5]. Impunha-se o desafio de encontrar uma solução que garantisse, ao mesmo tempo, segurança jurídica e credibilidade para o sistema de controle de dopagem.

Como já havíamos criado a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem – ABCD, que retirou das entidades esportivas a incumbência de realizar os testes, um ponto frágil do sistema, a solução foi a criação da JAD, com a separação material de competências entre ela e a Justiça Desportiva dita comum, essencialmente regulada pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD; tudo o que fosse relacionado à dopagem, passaria àquela, inclusive as infrações conexas previstas nesse códex. A uniformidade – de tratamento, procedimentos e decisões, v.g. – foi garantida a partir da concentração dos casos num único Tribunal, cuja jurisprudência se consolida(ria) a cada julgamento. A segurança jurídica foi alcançada não apenas  por essa medida, mas especialmente pela decisão de segregar as funções; o Conselho Nacional do Esporte – CNE ficou incumbido de aprovar o Código Brasileiro Antidopagem – CBA e suas alterações, no qual serão estabelecidos, entre outros, as regras antidopagem e as suas sanções, os critérios para a dosimetria das sanções e o procedimento a ser seguido para processamento e julgamento das violações às regras antidopagem (art. 11, VI, alíneas ‘a’ a ‘c’, da Lei Pelé), a ABCD encarregada da gestão de resultados, a acusação – em casos de resultados adversos ou outras infrações – à cargo Procuradoria e o julgamento, sob a batuta do Tribunal, cuja formação e requisitos de ingresso e permanência são muito diferentes daqueles exigidos pela Justiça Desportiva Comum. Acrescente-se que, na tarefa que lhe foi conferida, o CNE não atua a partir do zero, mas se guia pelas disposições do Código Mundial Antidopagem – CMA editado pela AMA, ex vi do art. 11, § 2º da mesma lei.

O CBA, assim como o CMA, dão forma e asseguram o funcionamento ordenado de um sistema de presunções que visam assegurar a integridade esportiva, tendo por objetivo garantir o direito de os atletas e as entidades participarem de competições livres de dopagem, promover a conservação da saúde, preservar a justiça e a igualdade entre os competidores (caput do art. 48-A da Lei Pelé, repetido pelo caput do art. 174 da Lei nº 14.597, de 2023), corolário do respeito à boa e conhecida paridade de armas e ao jogo limpo.

Em seus julgamentos, a JAD está jungida a esse sistema de presunções, algumas absolutas, outras relativas, as quais militam em prol da garantia da integridade, assegurando, de um lado, a proteção aos atletas e ao sistema contra qualquer tipo de manipulação, e, de outro, a manutenção da confiança de que o resultado obtido durante uma disputa o foi a partir do embate entre iguais. E não é a JAD, na figura da Procuradoria ou do Tribunal, quem define quais são essas presunções nem como elas deverão ser ponderadas. É o CMA e, uma vez incorporado ao ordenamento nacional por meio de resolução do CNE – no qual têm assento diversas entidades esportivas –, o CBA, quem as definem. E o CBA, espelhando-se no CMA, prevê em seu art. 122, que aquele que fraudar ou tentar fraudar qualquer parte do processo de controle de dopagem estará sujeito à aplicação da pena cominada no preceito secundário qual seja de quatro anos, exceto nas hipóteses dos incisos I e II.

Então, de onde vem a surpresa se tanto a norma previamente estabelecida, como impõe a garantia constitucional – e princípio geral de Direito – da nullum crimen, nulla poena sine previa lege (art. 5º, XXXIV, da Constituição Federal de 1988), quanto a denúncia previam a possível subsunção da conduta à hipótese legal? Falta de conhecimento da norma não isenta ninguém de pena e, pelo que consta, não faltaram causídicos para conhecê-la. Logo, tal alegação seria afirmar o descrédito na equipe jurídica ou seu despreparo para cumprir sua função de assessoramento.

Por outro lado, o fato de o Tribunal não ter enfrentado um caso semelhante anteriormente[6] não vulnera o julgamento em nenhum aspecto e não garante ao acusado uma franquia de direitos diversa daquela prevista na norma como, por exemplo, a aplicação de atenuante, o que, pelo que consta até agora, inclusive lhe teria sido assegurada pelo órgão judicante, pois, se a pena aplicada foi de dois anos, e não de quatro – como previsto no art. 122 do CBA – é porque, a priori, foram levadas em consideração as circunstâncias de que fala o inciso I do preceito secundário do mesmo artigo, que consagra uma atenuante. Do contrário, o Tribunal deveria tê-lo condenado a quatro anos.

 Não há, portanto, como querer afirmar-se – exceto com o intuito de induzir ao erro – que o Tribunal escolheu a pena. Não. Se a Procuradoria apresentou denúncia e enquadrou a conduta na hipótese do art. 122 do CBA, cujo tipo e pena correspondente foram definidos anteriormente pelo CNE, e se as provas comprovaram a sua efetiva ocorrência como apontado por Tatiana Mesquita Nunes em recente artigo, O que está em jogo: O caso Gabigol e o processo de controle de dopagem[7], toda e qualquer contrariedade ou será apenas isso, ou ilação ou, o que é bastante provável, uma tentativa de deslegitimação do Tribunal e uma tentativa de intimidação para casos futuros, afinal, desde a sua criação, os julgamentos têm sido marcados não apenas por um rigor técnico que surpreende muitos dos que estavam acostumados às canhestras decisões dos diversos órgãos da Justiça Desportiva Comum, mas também pela aplicação das penas conforme preceitua o CBA, mais severas do que aquelas aplicadas no passado, e sempre de acordo com as provas dos autos. Como já tive oportunidade de ouvir mais de uma vez, isso causa incômodo em muitas pessoas, pois o sistema de Justiça Desportiva Antidopagem não está mais na mão de alguns, estando fora do alcance de potenciais manipulações voltadas a atingir – ou não alcançar – um resultado desejado. Não deveria, mas isso causa surpresa àqueles que agora se deparam com decisões tecnicamente irrepreensíveis, bastante distintas, técnica e qualitativamente melhores – a exigirem maior capacidade técnica e esforço intelectual de quem atua –, daquelas emanadas da Justiça Desportiva Comum, marcada pelos escândalos de sucessivos tapetões, muitas delas fundadas não na lei, mas no ‘bom senso’ e/ou na mera vontade criativa do órgão judicante, e que levou o Estado brasileiro a agir quando da criação da JAD.  

Ao fim e ao cabo, a alegação de surpresa pelo que se diz ser um resultado inusitado parece uma estratégia que Schopenhauer ajuda a desvendar com seu Como vencer um debate sem precisar ter razão, em 38 estratagemas, no qual ele põe às claras os mecanismos usualmente empregados por quem carece de argumentos válidos ou robustos, os tais estratagemas. Dentre esses, uns merecem mais destaque do que outros, como o 38º – o apelo a argumentos ad personam, cujo objetivo, segundo ele, é deixar o objeto da discussão central completamente de lado e concentrar o ataque na pessoa do adversário, e a objeção se torna insolente, maldosa, ultrajante, grosseira[8] – ou o 29º, o velho e bom desvio, quando se começa a falar de algo totalmente diferente, como se fosse pertinente à questão e constituísse um argumento contra o adversário[9], opção usual de quem se vê na iminência de ser derrotado. Talvez seja uma forma de liberar as consciências – e tentar reduzir as responsabilidades, especialmente perante a torcida – de muitos dos envolvidos por sua eventual culpa, tanto in eligendo quanto in vigilando[10], pois, se olharmos para o comportamento do atleta nos últimos anos, dificilmente esse seria considerado um mero dia ruim, ou mau comportamento passageiro, mas mais uma demonstração de que Gabigol é um contumaz descumpridor de regras. A diferença é que, desta vez, diversamente do que ocorreu naquele 14 de março de 2021, não só faltou uma mesa sob a qual pudesse se esconder da fiscalização[11], como o sistema está mais preparado para fazer valer a máxima de que ninguém, nem mesmo o Gabigol cantado em versos no Maracanã como uma ameaça aos adversários, está acima da lei.

É preciso também que se averigue as razões que levaram à demora na gestão de resultados, sob responsabilidade da ABCD, e que deu ao agora condenado uma graça de quase um ano – baseada no CBA, esteja claro –, uma vez que isso prejudica o sistema como um todo, eis que, ao permitir que o culpado continue em atividade, vai de encontro ao princípio da paridade de armas em detrimento de todos aqueles que jogam limpo e cumprem as regras prescritas e a todos aplicáveis.

Mas, acima de tudo, é imprescindível que estejamos atentos e não vacilemos, pois a reação a essa decisão – que fortalece o trabalho da JAD e o sistema de combate à dopagem, especialmente porque recoloca as coisas em seus devidos lugares, em especial a autoridade dos agentes de controle, especialmente a partir da notificação para o exame antidopagem – pode não passar de mera bravata e uma tentativa de expiação, mas pode também mascarar mais um passo numa tentativa de desmonte do sistema criado em 2016 e que almeja o retorno ao status quo ante, empreitada que se iniciou com a Lei nº 14.597, de 2023, e que só não prosperou em razão de veto presidencial, que muitos querem ver derrubados e não por motivos republicanos. É hora de estar alerta e não permitir que, mais uma vez, se tente virar a mesa, até mesmo porque, em situações extremas, muitos ainda podem querer se esconder debaixo dela.

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[1] Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2024/03/27/auditor-do-tribunal-nega-perseguicao-a-gabigol-ninguem-inventou-a-pena.htm.

[2] Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rodrigo-mattos/2024/03/26/por-que-caso-de-suspensao-de-gabigol-e-visto-como-unico-por-especialistas.htm.

[3] SCHOPENHAUER, Arthur. Como vencer um debate sem precisar ter razão: em 38 estratagemas: (dialética erística). Rio de Janeiro, Topbooks, 1997. [(I)lícito tomados aqui não como contrários à lei, mas como contrários às regras da dialética que busca a verdade, que não comporta o uso de estratagemas, tais como, mas não exclusivamente, os apresentados por Schopenhauer nessa obra.]

[4] https://www.terra.com.br/esportes/automobilismo/piloto-da-stock-car-e-suspenso-por-dois-anos-por-caso-de-doping,ea41ea175c2ba310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html e https://www.hojeemdia.com.br/esportes/stock-car-tem-dois-pilotos-pegos-no-doping-mas-substancias-n-o-s-o-reveladas-1.345475.

[5] https://veja.abril.com.br/esporte/cesar-cielo-e-pego-em-exame-de-doping.

[6] Isso faz lembrar uma passagem d’Os ensaios, na qual Montaigne conta a história de três juízes romanos que atuavam no mercado e foram instados por um comerciante a resolverem um problema envolvendo uma venda. Os juízes o ouviram e pediram que voltasse mais tarde, para que pudessem avaliar a situação e dar sua decisão. Ele foi e voltou horas depois, quando os juízes então pediram que voltasse em 100 anos, quando já teriam então julgado um caso semelhante e estariam prontos para decidir o caso que ele apresentara.

[7] Publicado em https://leiemcampo.com.br/o-que-esta-em-jogo-o-caso-gabigol-e-o-processo-de-controle-de-dopagem/, em 14 de marco de 2024.

[8] SCHOPENHAUER, op. citada, p. 180-1.

[9] Idem, p. 160.

[10] O que também levanta as questões de se esse comportamento é esporádico ou algo corriqueiro durante os controles realizados pela CBF e que tipo de tratamento é dispensado a ele, Gabigol – ou outros atletas – a ponto de  deixá-lo tão contrariado por não recebê-lo dos oficiais enviados pela ABCD para o controle surpresa, circunstância que retira grande parte da validade do argumento que ele fez constar em sua nota à imprensa, no sentido de que mesmo submetido a dezenas de testes, todos sempre negativos, o que reforça meu compromisso com meu clube e com o torcedor brasileiro.

[11] Como quando flagrado num cassino clandestino durante o período da pandemia, período em que a circulação e reunião de pessoas estavam restritos por normas de saúde pública. Confira-se em https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2021/03/14/gabigol-estava-escondido-embaixo-de-uma-mesa-no-cassino-diz-delegado.htm,

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