A nova série da Netflix sobre Ayrton Senna promete recontar a trajetória do piloto que se tornou símbolo nacional, mas o que entrega é mais uma vez a reciclagem de um mito cuidadosamente fabricado para atender às necessidades de um país em crise.
Não se trata apenas de uma homenagem ao piloto, mas de uma tentativa explícita de reforçar uma narrativa que, ao longo das décadas, construiu um herói sob bases frágeis e, muitas vezes, ilusórias.
Senna não foi, sequer, o melhor piloto de sua época. Se olharmos com objetividade, sua carreira foi marcada por polêmicas que incluíram até mesmo uma manobra ilegal para conquistar o campeonato de 1990, episódio amplamente documentado e discutido na Fórmula 1. Mais do que isso, Senna era fruto de um sistema em que dinheiro e influência abriram caminhos.
Diferentemente da imagem de “jovem batalhador” que muitos gostam de associar a ele, Senna veio de uma família privilegiada. Seu pai, Milton da Silva, era um bem-sucedido empresário do ramo de autopeças, e não houve necessidade de vender qualquer bem para financiar a carreira do filho. Senna foi, de fato, um “nepoboy”, alguém que teve acesso a oportunidades exclusivas desde cedo, moldado para o sucesso com a ajuda de assessores e estrategistas.
A série falha em abordar esses pontos de forma honesta. Ao contrário, busca reforçar o arquétipo do “herói humilde” que nunca existiu. Não é difícil entender o motivo. Na década de 1980, o Brasil estava devastado pela hiperinflação, saindo de uma ditadura militar e vivendo a frustração de décadas sem conquistas na Copa do Mundo. Precisávamos de um símbolo nacional, e Senna foi moldado para preencher esse vazio. O marketing ao seu redor foi tão eficiente que ele não era apenas um piloto; era uma narrativa de superação para um país sedento por heróis.
A tentativa da série de romantizar ainda mais a figura de Senna chega a distorcer fatos de sua vida pessoal. Um dos exemplos mais gritantes é o apagamento de Adriane Galisteu, uma modelo jovem e humilde que esteve ao seu lado nos últimos anos de sua vida. Em vez disso, a produção eleva Xuxa Meneghel, rica, famosa e influente, a um protagonismo que nunca teve nesse contexto. Essa escolha não é apenas uma afronta à realidade, mas revela uma vontade quase desesperada de associar Senna ao glamour e ao poder, apagando qualquer traço que possa desviar do mito “perfeito”.
O resultado é uma obra tão artificial quanto a imagem de Senna. A série não é sobre Ayrton Senna, o ser humano; é sobre perpetuar Ayrton Senna, o produto. Um herói fabricado para tempos difíceis, mas que, à luz da verdade, não sustenta o peso do pedestal em que foi colocado.
E talvez esse seja o maior problema: ao optar por manter a lenda, a Netflix perde a oportunidade de humanizar Senna, de mostrar suas contradições e complexidades. No fim, o que temos é mais uma narrativa idealizada, um eco de um Brasil que preferiu acreditar em mitos a enfrentar sua realidade.
Crédito imagem: Netflix/Divulgação
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