Criada em 1950 com a união de seis Grandes Prêmios europeus (Reino Unido, Mônaco, Suíça, Bélgica, França e Itália), a Fórmula 1 é a categoria de automobilismo mais popular do mundo.
O primeiro brasileiro na modalidade foi o paulista Chico Lando, em 1951, mas o interesse dos brasileiros pela modalidade iniciou-se em 1972, com o primeiro título do país, conquistado por Emerson Fittipaldi. Desde então, o Brasil conquistou mais sete campeonatos, 1974 com Fittipaldi, 1981, 1983 e 1987 com Nelson Piquet e 1988,1990 e 1991 com Ayrton Senna.
A popularidade da Fórmula 1 no Brasil é tamanha que dela emerge aquele que para muitos é um dos maiores mitos da história, Ayrton Senna, tricampeão mundial, morto em acidente ocorrido no circuito de Imola, na Itália, em 1994.
Passadas décadas de sua morte, Senna segue sendo considerado por muitos o maior piloto de todos os tempos. Há quem defenda se tratar de um dos maiores brasileiros da história ou o maior atleta brasileiro.
Mas o que faz Senna, tricampeão como Piquet e contemporâneo do tetracampeão Alan Prost (seu maior rival), ser considerado um mito? Imprescindível compreender o contexto histórico do Brasil naquela época.
Após vencer as Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970, de mostrar ao mundo certa superioridade que um país de terceiro mundo poderia conseguia ter, a seleção brasileira passava por longo período sem conseguir conquistar a Copa.
Quando Ayrton Senna estreia na Fórmula 1, em 1984, a seleção brasileira estava havia 14 anos sem ganhar uma Copa. O Brasil estava havia 20 anos sob uma ditadura militar. Somente em 1985 aconteceriam as primeiras eleições presidenciais diretas, depois de duas décadas.
Para a Presidência, Tancredo Neves foi eleito indiretamente, mas não chegou a tomar posse, morreu em 15 de março de 1985. A inflação estava galopante. O país, como nunca em sua história, precisava de ídolos e referenciais.
O futebol não triunfava, a economia estava em gravíssima recessão, e a política brasileira também não ia bem. O povo brasileiro sentiu a morte de Tancredo Neves, e a crise de representatividade se instalou no país.
Então, Ayrton Senna da Silva, recém-chegado à Fórmula 1, desponta como personalidade capaz de preencher a lacuna de ídolos do povo brasileiro.
Inclusive, desde as categorias de base, Senna já contava com forte esquema de divulgação e clipping, e até visitava redações de jornais, o que não era usual então.
Já na Fórmula 1, foi o primeiro piloto a organizar coletivas nos autódromos de modo a não conceder intermináveis entrevistas e, ao mesmo tempo, ter controle sobre o que dizia, para não ser mal interpretado. Nessas coletivas, ficou famoso pelas longas pausas que fazia para que ele medisse as palavras.
Quando Senna chega à Fórmula 1, a modalidade já era muito popular, devido aos feitos dos brasileiros Emerson Fittipaldi, bicampeão mundial, e Nelson Piquet, primeiro piloto brasileiro a ganhar título de tricampeão mundial.
As transmissões de Fórmula 1 para a TV só começaram a ser feitas exatamente na estreia de Emerson Fittipaldi na Fórmula 1, no Grande Prêmio da Grã-Bretanha, em Brands Hatch, no dia 18 de julho de 1970, pela Rede Record. A Globo passou a exibir a Fórmula 1 somente no Grande Prêmio da Argentina de 1972.
No início dos anos 80, surge Nelson Piquet, até hoje reconhecido como um dos maiores pilotos de todos os tempos, tricampeão mundial, que com expertise e didática em assuntos mecânicos chamou a atenção da mídia nacional e internacional.
Então, por que Nelson Piquet não se tornou o grande herói nacional?
Ao contrário de Senna, Piquet não fazia questão de relacionar-se com a imprensa ou de se fazer simpático para o público.
Diante de todo o contexto, a maneira encontrada pela mídia para alavancar a audiência e fazer o brasileiro se apaixonar pela Fórmula 1 foi consolidar um mito.
Assim, o talento e carisma de Ayrton Senna aliados, somados aos interesses da Rede Globo e da mídia em geral, foram fundamentais na construção do mito.
Seguramente, independentemente do marketing e da mídia, Senna seria um grande ídolo, pelo seu talento e carisma. Mas sem o relacionamento midiático com a Xuxa, sem as narrações icônicas de Galvão Bueno e o trabalho de marketing feito pela emissora em cima do piloto, durante a vida e, também, após a morte, o ídolo dificilmente se tornaria um mito.
Atitudes como carregar a bandeira após as vitórias e, principalmente, dar voltas carregando a bandeira brasileira no GP da França de 1986, após a seleção de futebol ser eliminada da Copa pelos franceses, davam ao piloto o estereótipo do Brasil que dava certo quando tudo no país (até o futebol) insistia em dar errado.
As corridas vencidas por Senna eram especiais para os brasileiros, como uma vitória do país. “Ayrton Senna do Brasil!”, gritava sempre o narrador e amigo do piloto Galvão Bueno nas manhãs de domingo. Além da bandeira brasileira e do capacete com as cores verde, amarelo e azul, Senna ficou marcado pelo “Tema da Vitória”, que toca nas vitórias brasileiras na Fórmula 1.
O marketing midiático que fez de Senna um herói mítico era de grande interesse de seus patrocinadores. Havia grande interesse da mídia de que o piloto fosse visto como o mais próximo possível de um mito, pois a exploração de sua imagem contribuía para o maior interesse pela Fórmula 1 e pelos altíssimos índices de audiência que Senna acumulava nas manhãs de domingo, que eram importantes para manter a TV Globo, a emissora oficial das transmissões, atenta para o sucesso de Ayrton.
Senna era o filho ou o genro que todo mundo queria ter: bonito, educado, evangélico e conservador. Além de tudo, bem-sucedido, tricampeão mundial, dono de recordes impressionantes, de feitos marcantes. Responsável por levar o nome do Brasil para o mundo todo. Além dos feitos na pista, tinha o carisma de um líder, a competitividade e a raça de um herói e o discurso religioso que o aproximou do povo brasileiro. O mito é visto como um ser sobrenatural, de atividade criadora e sacralizante, realizando sempre modelos exemplares das atividades humanas.
Ayrton morreu no auge da vida e da carreira em uma transmissão ao vivo para todo o mundo. Todo brasileiro sabe onde estava e o que estava fazendo no momento de sua morte. Naquele momento, o herói passou ao limiar humano e tornou-se divino.
Estimulado pela mídia, nos dias seguintes o Brasil parou para acompanhar o funeral do ídolo. Houve verdadeira santificação do piloto. O mito estava consolidado.
A junção de todos esses fatores transforma em praticamente um herege quem ouse emitir a opinião de que Senna não foi o melhor de todos os tempos. Invariavelmente, a Globo, detentora dos direitos de transmissão da Fórmula 1, relembra os feitos de Ayrton Senna.
De nada adiantaram os recordes quebrados por Schumacher, o piloto mais vencedor de todos os tempos, ou os títulos de Prost e de Hamilton, eis que, para a mídia brasileira, Senna foi o melhor de sempre. Suas derrotas são justificadas como sendo resultados de “roubos” assombrosos ou de superioridade absoluta e esmagadora da equipe vencedora.
Atualmente, jovens adultos que muito provavelmente nunca assistiram de fato a uma corrida de Fórmula 1 já absorveram o inconsciente coletivo de que o mito santificado Ayrton Senna é o maior de todos os tempos.
Segundo o jornalista Edvaldo Pereira Lima, doutor em Comunicação Social pela USP:
“Ayrton Senna da Silva é, no jogo dramático da consciência coletiva brasileira neste final de século, a pessoa que – pelo alcance massivo de sua imagem e pelas circunstâncias de vida e morte – deu a contribuição mais valorosa para a mudança do padrão de autopercepção do brasileiro. Mais do que uma contribuição simbólica, seu desaparecimento desencadeou um processo energético extraordinário, evidenciando uma potencialidade que está imanente no povo. Filho do Brasil, carregava em si qualidades originais dessa terra, potencializadas a partir das sementes latentes em muito de nós. Com sua vida personificou um momento coletivo de abertura para a mutação de todos nós”.
Na trajetória do mito Ayrton Senna, suas vitórias são triunfos, e suas derrotas, injustas. Poucos sabem, por exemplo, que em 1988 Prost foi o melhor piloto da temporada ao marcar 105 pontos, contra 94 de Ayrton. Mas Senna foi beneficiado pelo regulamento da época, que determinava o descarte dos piores resultados, e ao final o brasileiro foi campeão com 90 pontos contra 87 do francês.
Na temporada de 1989, Prost e Senna disputavam o título, mas o brasileiro precisava chegar na frente. O francês segurou a ponta perseguido por Senna por 46 voltas, até que Ayrton forçou uma ultrapassagem, Prost manteve a trajetória, e os dois bateram. Alan abandonou a prova, Ayrton pediu para ser empurrado pelos fiscais, voltou à corrida e venceu o GP.
Entretanto, foi desclassificado por um erro de principiante básico para qualquer piloto de kart – por cortar caminho na curva. Prost acabou campeão.
Em 1990, no segundo título de Senna, em Suzuka, Japão, para sagrar-se campeão por antecipação, bastava que o francês Alain Prost não pontuasse. Antes da largada, um repórter perguntou ao brasileiro sobre a possibilidade de forçar um acidente para retirar Prost da corrida. Ao responder, o piloto brasileiro ameaçou agredir o jornalista.
Minutos depois, na largada do GP do Japão de 1990, Senna forçou uma ultrapassagem sobre Prost na primeira curva, houve choque. Os dois pilotos ficaram fora da corrida. E Senna foi campeão.
Na rivalidade entre Senna e Prost, a Globo criou uma sátira em que colocava o piloto francês como Dick Vigarista, sendo que na verdade havia um grande embate de ambos os lados, com Senna dando o primeiro golpe. No GP de Portugal de 88, o piloto brasileiro espremeu acintosamente Prost contra o muro da reta principal.
A “guerra” foi declarada ali, e teve sua explosão no GP de Ímola do ano seguinte, quando Senna tomou a liderança da prova logo após a largada, apesar de haver pacto na equipe para que não houvesse disputa na primeira volta. Isso porque a McLaren era muito mais rápida do que os outros carros, e por isso Senna e Prost achavam melhor abrir vantagem primeiro e só depois disputar a liderança.
Até mesmo a façanha de Senna de dar show e vencer em Interlagos somente com uma marcha nas últimas dez voltas foi repetida. Schumacher repetiu o feito em 1994, no GP da Espanha, quando conduziu seu carro por 45 voltas apenas com a 5ª marcha e ainda fazendo dois pit stops em que parou e arrancou com uma única marcha.
Por todo o exposto, resta claro que, apesar de toda a genialidade e habilidade de Ayrton Senna, o piloto tornou-se uma figura mítica muito mais pelo marketing, pela necessidade do brasileiro de ter um herói naquele momento histórico e pela trágica morte diante das câmeras, do que pelos seus feitos e números como desportista.
REFERÊNCIAS
BATISTA. Tatiana Alencar. VELAZQUEZ. Carlos. Rede Globo e Ayrton Senna: o papel da Rede Globo na mitificação do piloto. Trabalho apresentado na IJ03 – Relações Públicas e Comunicação Organizacional do XX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, realizado de 5 a 7 de julho de 2018.
FRANÇA R. Ayrton Senna e o jornalismo esportivo. 2006. Tese (Mestrado em Ciências da comunicação). Escola de Comunicação e Artes. Universidade de São Paulo.
FRANÇA, Rodrigo. Ayrton Senna e a Mídia Esportiva. São Paulo: Automotor, 2010.
HELAL, R.; CATALDO, G. A Morte e o Mito: As narrativas da imprensa na cobertura jornalística da morte de Ayrton Senna. UERJ. Rio de Janeiro
HILTON, C. Ayrton Senna: A face do gênio. 1. ed. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1992
LIMA, E. P. Ayrton Senna: guerreiro de aquário. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995
SENNA, Ayrton. O reforço do mito “Ayrton Senna do Brasil” no discurso da Rede Globo: Primeiras reflexões. 2004. Trecho de entrevista veiculada na transmissão do dia 17 de março de 2014 do Jornal Nacional, Rede Globo.