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Sobre o movimento esportivo, Putin com a Rússia

Por Ana Mizutori e Diogo Medeiros

Importante iniciar estes comentários relacionados aos últimos eventos de geopolítica internacional e alguns desdobramentos dentro do movimento esportivo, com um breve contexto histórico sobre a disputa territorial entre Ucrânia e Rússia.

A disputa entre esses países poderia remontar aos momentos precedentes da Segunda Guerra Mundial, num período conhecido como A Grande Fome, ou a Fome-Terror, foi um período de fome na Ucrânia Soviética de 1932 a 1933 que causou a morte de milhões de ucranianos, afetou as principais áreas produtoras de cereais do país, milhões de habitantes soviéticos, a maioria dos quais eram de etnia ucraniana, morreram de fome numa catástrofe sem precedentes na história da Ucrânia em tempo de paz. Uma declaração conjunta das Nações Unidas, assinada por 25 países em 2003, declarou que 7-10 milhões pereceram.

Desde 2006, o Holodomor é reconhecido pela Ucrânia e outros 15 países como um genocídio do povo ucraniano levado a cabo pelo governo soviético.  Alguns académicos acreditam que a fome foi planejada por Joseph Stalin para eliminar um movimento de independência ucraniano. Outros sugerem que foi uma consequência da industrialização soviética. O termo Holodomor enfatiza os aspectos artificiais e intencionais da fome, tais como a rejeição da ajuda externa, o confisco de todos os alimentos domésticos e a restrição do movimento populacional.[1]

As disputas começaram a se intensificar, basicamente, quando a Ucrânia conseguiu sua independência da União Soviética nos anos 90. Durante a Guerra Fria, a terceira maior potência nuclear do planeta não era o Reino Unido, a França ou a China, mas sim a Ucrânia. E com o colapso da União Soviética (URSS) em 1991, a nação recém-independente herdaria cerca de 3.000 armas nucleares deixadas por Moscou em seu território, a Ucrânia decidiu renunciar às armas nucleares deixadas em seu território em troca de segurança e reconhecimento como país independente. Tudo foi acordado por meio do Memorando de Budapeste, um acordo assinado entre o governo ucraniano, a Rússia, o Reino Unido e os Estados Unidos após o fim da URSS. No acordo assinado em 1994 na capital da Hungria, a Ucrânia se comprometia a aderir ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e a devolver para Moscou as ogivas deixadas em seu território.[2]

As tensões históricas entre os países foram variando a intensidade de acordo com a maior ou menor proximidade entre os seus Presidentes. Em 2014 a ucrânia possuía um presidente mais pró-Rússia Viktor Yanukovych, que foi deposto após meses de protestos contra o seu governo, no que ficou conhecido por “Euromaidan”, também chamado de Primavera Ucraniana, foi uma onda de manifestações e de agitação civil na Ucrânia no período de 2013 a 2014, exigindo uma maior integração europeia e providencias sobre a ameaça de sanções russas e sobre a corrupção do governo. Putin irritado anexou a Criméia, manteve uma guerra de baixa intensidade até agora, quando declarou considerar as regiões separatistas de Donetsk e Luhansk como independentes da Ucrânia, infringindo princípios, direitos e tratados internacionais. Sem falarmos no maior deles: os Direitos Humanos.

Diante desse cenário de tensão bélica e disputas históricas entre esses dois países, todas as demais nações estão convocadas a deliberar os caminhos da solução pacífica para este imbróglio diplomático catastrófico, e diversas sanções indiretas estão à mesa de negociações na esperança de que essas pressões externas tornem viável o fim da disputa e o alcance da paz.

Desde a antiguidade e primórdios esportivos dos jogos olímpicos, a humanidade já se preocupava em evitar a guerra e buscar a paz, facilmente demonstrando pelo “Período de Trégua Olímpica”. Período este que se evidencia a importância do cumprimento às regras, a união dos povos, em uma espécie de armistício, com a abstenção do uso de armas e consequentemente um cessar da guerra, na prática uma verdadeira proclamação da paz.

Instituída esta desde o ano 776 a.c. quando à época as Cidades-Estados gregas viviam em constante guerra, e os Reis de Elis, de Sparta, e de Pisa, assinaram um tratado de longa duração por via do qual se instituiu então a Ekecheiria, que ficou conhecida por “Trégua Olímpica” ou “Trégua Sagrada”. Esta trégua consistia numa proclamação formal da inviolabilidade das regiões nas quais se desenrolavam as festas religiosas e as competições desportivas.[3] E assim, três meses antes e três meses depois de finalizadas as competições as armas descansavam para que outro tipo de disputa ocorresse. A trégua olímpica, como foi chamada, era de fato uma oportunidade não apenas para cessar embates, mas também um momento de celebração, reflexão e reconhecimento dos possíveis campos de batalha e dos adversários.[4]

Se entendido como uma metáfora de tantos jogos sociais o esporte também oferece a oportunidade para a reflexão sobre os ataques, as tréguas e os recuos necessários em diferentes contextos. Toda competição esportiva envolve mais do que habilidade motora. Atletas estudam-se mutuamente para elaborar a estratégia apropriada para cada etapa classificatória até a chegada ao pódio. Força, velocidade, agilidade somam-se à espera ativa, ao reconhecimento do jogo adversário, a comparação entre forças competitivas. Essa é talvez uma das razões que leva as manifestações esportivas a ocupar espaço privilegiado nos meios de comunicação em diferentes momentos do dia ou mesmo em canais específicos onde a programação de todo o dia é dedicada a diferentes modalidades.[5] Ainda hoje alguns símbolos perpetuam a ideia e imperatividade da busca pela paz no ambiente esportivo, e um deles é a bandeira da ONU representativamente hasteada ao lado da bandeira do Comitê Olímpico Internacional, da Grécia (como berço dos jogos antigos), e do país sede daquele ciclo.

O movimento esportivo internacional tem suas bases fundadas no direito de livre associação, e a transnacionalidade das normas emanadas das suas principais entidades. A importância da autonomia do movimento esportivo se faz presente desde seu nascedouro com a Carta Olímpica, gênese de toda a estrutura de interligação da rede esportiva associativa internacional, devidamente caracterizada na abordagem própria que este o faz nas elaborações dos regramentos e regulamentos de cada modalidade, contratos de ligas, federações, associações desportivas, atletas, treinadores, patrocinadores, eventos propriamente ditos e demais partícipes desse movimento. Possui legitimidade diante da adesão voluntária destes ao movimento associativo internacional continua e permanentemente, aceitação e obediência às regras e sanções próprias. Mesmo que no plano internacional suas entidades e federações estejam sediadas em determinados Estados-Nação, mantêm sua independência e autonomia diante destes.[6]

A Lex Sportiva como é conhecido o emaranhado de regramentos e regulamentos das diversas modalidades esportivas, muitas vezes composto de normas não positivadas mas costumeira e reiteradamente julgadas. Numa espécie de “monopólio de regramento do esporte por entidades autônomas traduz-se em garantia da universalização e estandardização das normas de direito esportivo. Trata-se de fator essencial à construção de uma linguagem jurídico-desportiva única em todo mundo para cada uma das modalidades esportivas. A especificidade esportiva revela-se, neste caso, na designação de uma fonte única de emanação de normas para o respectivo esporte, sem interferências externas, inclusive estatais”, continua “a Lex Sportiva é um sistema transnacional que se diferenciou para manter unidade e coerência de comunicação e governo, sem a interferência estatal”, como salienta o Professor Dr. Wladimyr Camargos.[7]

Esses dois principais fatores: da transnacionalidade da Lex Sportiva e do direito associativo que envolve toda a cadeia internacional esportiva, atuam com legitimidade reconhecida entre seus pares e demais stakeholders do mercado, nas sanções sofridas pela Rússia em virtude da invasão/guerra contra Ucrânia, mesmo onde faltar positivação normativa.

Algumas das repercussões negativas para o esporte russo como: a final da Champions League que seria realizada no Gazprom Arena em São Petersburgo, será realizada em Paris; a FIFA proibiu a Rússia de jogar na repescagem da Copa do Catar 2022, logo, estão fora do mundial; os clubes russos estão suspensos de competições continentais sejam eles times masculinos, femininos, de campo, quadra ou areia; o GP de Sóchi de Fórmula 1 não será mais realizado; as etapas da Liga das Nações de Vôlei que teriam etapas na Rússia foram canceladas; a federação Internacional de Judô suspendeu a faixa preta do então presidente Vladimir Putin; a Federação Internacional de Tênis cancelou os torneios que aconteceriam na Rússia; o Comitê Olímpico Internacional pediu para que não sejam marcados eventos esportivos na Rússia e Belarus; assim como seus atletas suspensos de todos eventos esportivos internacionais; Presidente do Chelsea Roman Abramovich diante das pressões externas confirmou que vai vender o time de futebol inglês, etc.

E as repercussões continuam, e serão muito em breve objeto de julgamento, decididas e a valer como jurisprudência pelo Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), corte máxima das instâncias desportivas internacionais. Pois assim, “tendo em conta as constatações já realizadas pela doutrina, a lex sportiva se manifesta nos estatutos das federações internacionais e nos regramentos que adotam. As regras do Comitê Olímpico Internacional igualmente participam do fenômeno. Prima facie, todas essas normas estão em vigor a partir de poderes privados e se aplicam sem submissão às soberanias estatais. Também se enquadram na lex sportiva as normas emanadas da justiça privada internacional, e particularmente, os princípios jurídicos estabelecidos pelo Tribunal Arbitral do Esporte”.[8]

A neutralidade suíça histórica foi quebrada para manter acesos os valores do esporte como a dignidade humana, a união dos povos em confraternização, a melhoria da humanidade pela superação de recordes conquistados dentro das arenas esportivas, e principalmente, que a paz seja estampada e sempre celebrada pelos louros da vitória e ouro das medalhas. O ser humano é bom por natureza, como diria Nelson Mandela: “ninguém nasce aprendendo a odiar (…). Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto”, e que reste in fine a célebre frase do Barão Pierre de Coubertin “(…) que a tocha olímpica siga o seu curso através dos tempos para o bem da humanidade cada vez mais ardente, corajosa e pura”.

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[1] Holodomor – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

[2] Por que Ucrânia abriu mão de arsenal nuclear nos anos 1990 – BBC News Brasil

[3] MESTRE, Alexandre Migue. Direito e Jogos Olímpicos. Edições Almedina. Coimbra. 2008.

[4] Trégua olímpica – Jornal da USP

[5] Trégua olímpica – Jornal da USP

[6] SOUZA, Diogo Ferreira B Medeiros. Arbitragem desportiva internacional: um olhar entre o público e o privado. FINKELSTEIN, Cláudio. [org.] Arbitragem e Direito: estudos pós-graduados. Ed Belo Horizonte, São Paulo: D´Placodp, 2021.

[7] CAMARGOS, Wladimyr. Constituição e esporte no Brasil. Ed Kelps. Goiânia, 2017.

[8] LATTY, Franck. La lex sportiva – Recherche sur le droit transnational. Leiden / Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2007, p 41.

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