Nas últimas semanas, esse espaço do Lei em Campo abordou o contexto jurídico em que surgiram a sociedade desportiva na Itália e França.
No ordenamento jurídico espanhol, o surgimento da Sociedade Anônima Desportiva representa uma medida para buscar maior respaldo jurídico e econômico aos clubes e as respectivas competições oficiais. Novamente, verifica-se alterações na regulamentação, desencadeada pelo movimento interno no setor, que diante das tensões, buscou mecanismos para solucionar as falhas na gestão e a precária situação financeira dos clubes.
Com isso, a Lei 10/1990 revogou a Lei 13/1980, passando a exigir a constituição em sociedade anônima desportiva, aos clubes que se encontrassem com o saldo patrimonial líquido negativo em qualquer dos últimos cinco anos desde a temporada de 1985/86, como requisito para participação em competição oficial. O objeto social da sociedade anônima desportiva restringia para a “participação em competições desportivas profissionais e à promoção e desenvolvimento das atividades desportivas conexas”.
A previsão legal estabeleceu como formas para a aludida transformação societária: i) por criação originária; ii) por “destaque”, que corresponde à segregação do setor profissional (modalidade sui generis de cisão). O capital social mínimo dessas sociedades seria estabelecido pela capacidade financeira e critérios desportivos, sendo integralizados em sua totalidade em espécie.
Aos clubes que, obrigados a se constituírem em SAD, não o fizessem, referida legislação determinou a exclusão do Plano de Saneamento do Futebol Profissional, criado em 1989 como solução para a dívida milionária adquirida pelos clubes em face ao Estado.
Quanto aos clubes superavitários, a despeito de não se obrigar a constituição em SAD, passou-se a exigir destes a adoção de enquadramento jurídico específico, como meio de promover “gestão transparente e responsável”. Em vista disso, determinou-se aos clubes com quadro financeiro positivo a adoção de um regime especial, o qual: i) obrigou a aprovação do orçamento anual pela assembleia geral, o qual deveria ser precedido da análise pela Liga, sob pena de nulidade da respectiva deliberação; ii) passou a recair sob os dirigentes a responsabilidade por eventual saldo negativo obtido no período de exercício da gestão, em até 15% das despesas do orçamento anual, sendo competente para ajuizar referida ação de responsabilidade tanto a Liga, como o Conselho Superior do Desporto; iii) instaurou a possibilidade de auditoria para fiscalizar as contas dos clubes, a ser realizada pela Liga e pelo Conselho Superior do Desporto.
Atribui-se às sociedades desportivas na Espanha as características de “transparência econômica” e “intervenção estatal”. Essa última, marcada pela exigência de ratificação da Liga Profissional, do Conselho Superior do Desporto e das “Comisione Mixta”.
A Liga Profissional possui controle de autorregulação, sendo responsável pela gestão e funcionamento interno da SAD, mediante apresentação dos atos praticados pelos acionistas que abrangesse as ações representativas do respectivo capital social, assim como atos de nomeação e destituição de administradores, alterações estatutárias, aumento ou redução do capital, transformação, cisão, fusão e dissolução da sociedade. Além disso, compete à Liga auditar o orçamento, ratificar alienação de instalação desportiva, fiscalizar o cumprimento do plano de saneamento do futebol perante o Conselho Superior do Desporto, possuindo legitimidade, ainda, para pugnar judicialmente acordos sociais contrários à lei ou lesivos para a sociedade, por meio de ação de responsabilidade em face de acionistas da SAD por eventuais atos lesivos.
Ao Conselho Superior do Desporto compete a autorização da inscrição da SAD no “Registro de Asociaciones Deportivas”.
Por sua vez, a responsabilidade para coordenar e fiscalizar o processo de constituição da SAD, seja por transformação ou destaque, atribuía-se a “Comisione Mixta”, órgão responsável por fixar o capital social mínimo de cada sociedade, e emitir parecer de natureza administrativa sobre o projeto previamente apresentado pelo clube. Nesse contexto, as entidades públicas contavam com o direito de preferência na hipótese de alienação de bens da entidade desportiva.
Além das disposições da legislação geral das sociedades anônimas, o regime especial das sociedades desportivas instituiu regras para assegurar a transparência econômica, tal como a já mencionada integralização do capital social em dinheiro, além de regras para composição do capital social, a proibição de vantagens a determinados acionistas, a limitação de poderes de administração, e a constituição de reserva legal antes da distribuição de lucros, permitida somente quando o clube obtivesse resultados positivos obtidos no ano anterior. Mencionada reserva legal era composta por, no mínimo, a metade da média de custos dos últimos três exercícios.
Em atenção e respaldo ao equilíbrio competitivo, o regime jurídico estabeleceu determinadas responsabilidades aos administradores das sociedades anônimas desportivas e dos clubes que participassem de competições oficiais organizadas ela Liga de Futebol Profissional, exigindo que os acionistas detivessem a nacionalidade espanhola, e, nos casos de participação coletiva, que os estrangeiros não excedessem o limite de 25% da composição total, além da vedação de vínculo de um sócio que possua vínculo laboral com outra sociedade, e a restrição da participação do sócio que detivesse mais de 1% de cotas no capital social de uma SAD em outra sociedade desportiva integrante da mesma categoria. Ainda, determinou-se que, caso a constituição tenha se dado por separação do setor profissional, o clube não poderia deter participação acima de 10%, sob pena de restringir o direito de voto, além da imposição ao acionista de alienar os títulos correspondentes excedentes. Para tanto, impôs-se ações nominativas, como medida de corresponder à obrigação trimestral de apresentar para a Liga a composição de acionistas.
Vale mencionar as inserções contidas no regime especial que excediam os preceitos gerais, notadamente quanto à responsabilidade dos administradores. Além da capacidade técnica exigida para o exercício do cargo de gestão, exigia-se a apresentação de caução em percentual relativo a despesas do orçamento anual, o qual permanecia depositado na Liga por até quatro anos após o encerramento do exercício das funções, para fins de eventual ressarcimento por atos lesivos à sociedade.
Entre outras exigências aos administradores, constava também a ausência de antecedentes criminais por crimes dolosos ou sanções administrativas, além da já citada restrição para exercer funções em mais de uma SAD disputante da mesma competição.
Assim como se observa em outros ordenamentos jurídicos, as modificações dos clubes associativos em sociedades desportivas advieram com medidas de governança. Na legislação espanhola, os aspectos de governança caracterizavam-se pela exigência de autorização da assembleia geral para atos que onerem o imóvel da SAD, em mais de 10% do imobilizado, devendo obter a maioria dos votos dos acionistas detentores do total do capital social, e a mesma regra para assinar contratos de trabalho com atletas cujo valor ultrapassem o orçamento.
Os desdobramentos das alterações legislativas na Espanha se assemelham aos demais ordenamentos citados, e outros que poderão ser abordados. Desde a origem, incitadas pela insuficiência na gestão e pelo desajuste financeiro, norteadas pela imposição de regras de governança e medidas que submetessem as agremiações desportivas em um cenário de profissionalismo. Os resultados práticos podem ser observados, demonstrando que não há outro caminho senão o de inserir a modalidade em um ambiente arquiteto para as singularidades que o compõem e a dimensão financeira que este alcança.
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Ref. Bibliográfica:
CANDEIAS, Ricardo. Personalização de Equipa e Transformação de Clube em Sociedade Anónima Desportiva (Contributo para um estudo das sociedades desportivas). Coimbra. Coimbra Editora. 2000.