O Kansas City Chiefs dominou o Buffalo Bills e vai enfrentar Tampa Bay Buccaneers, de Tom Brady, na grande final do futebol americano, o Super Bowl. Um dos destaques do jogo foi Patrick Mahones, que por pouco não ficou fora do jogo.
Mahomes era dúvida após ter levado uma pancada na cabeça que o tirou no terceiro quarto da semifinal contra os Browns. Ele passou por todas as fases do protocolo de concussão da NFL e foi liberado para entrar em campo.
A concussão é problema sério no esporte, e o protocolo do futebol está muito atrás de outros esportes na proteção do atleta.
O protocolo da NFL só mudou e passou a ser mais eficiente depois de uma longa batalha de um médico nigeriano, que comprou uma briga gigante com os chefões da Liga. E venceu.
Um nigeriano venceu a Liga mais poderosa do mundo.
O Super Bowl é a grande final do futebol americano da NFL, a maior e mais rentável liga esportiva do planeta. Ela movimenta bilhões de dólares e faz com que mais de cem milhões de americanos parem para ver o que vai acontecer em campo. Nestes dias que antecedem a decisão, será o assunto mais comentado nos Estados Unidos.
Mesmo assim, um nigeriano, médico legista que vivia e trabalhava em Pittsburgh havia 30 anos, não sabia nada do jogo, nem do tamanho do negócio que ele movimentava.
Isso até Dr. Bennet Omalu se “encontrar” com Mike Webster, num sábado, em setembro de 2002. O detalhe importante é que um dos maiores nomes do esporte americano estava morto. Nesse momento, a NFL se deparou com um problema que não conseguiria vencer.
Antes de falar desse encontro, da pesquisa que provocou a ira dos chefões da Liga e das consequências para o jogo, é importante reforçar algo sobre o Direito Esportivo e esta seção.
O professor Wladimyr Camargos escreveu um texto sobre os fundamentos do Direito Esportivo, destacando a Lex Sportiva não pode ser confundida com a Lei do Esporte. Afinal, esse sistema transacional ultrapassa os limites jurídicos, abrangendo também sociologia, cultura e diálogos, nem sempre tranquilos.
Vamos falar hoje justamente disso. De um diálogo provocado por um médico africano, com cidadania americana, que incomodou os comandantes da NFL, que se negaram a conversar. Mesmo assim, desse quase monólogo surgiram mudanças importantíssimas para a segurança do esporte, muito embora a Liga não admita isso de forma transparente. Tem conversa, tem questionamento às regras, tem conflito, tem mudança.
Ao caso. Resumidamente. Em 2002 o médico Bennet Omalu, legista, se deparou com Mike Webster, um ídolo do futebol americano que acabara de morrer com apenas 50 anos. Omalu costumava repetir que se preocupava não com a forma como as pessoas viviam, mas sim como morriam. A hipótese de ataque cardíaco, como se suspeitava, nunca foi recebida por Omalu. Até porque o ex-atleta apresentava um quadro de demência surpreendente nos últimos anos de vida. Ele precisava entender aquela morte.
“Iron Mike” era um “center”, a mais violenta das posições do esporte. Ele sofreu uma tempestade incansável de golpes ao logo da carreira. Segundo estimativas, foram mais de 25 mil colisões em campo. Na autópsia, Omalu não abriu mão de analisar o cérebro de Mike, mesmo com a oposição de muita gente. No exame, encontrou uma série de pequenas lesões. O mesmo aconteceu com outras autópsias feitas com ex-jogadores de futebol americano.
O médico concluiu que a doença degenerativa, chamada ETC (encefalopatia traumática crônica), havia sido causada pelos golpes que os atletas receberam na cabeça ao longo da carreira. Ele então passou a apresentar os estudos à NFL, que negou que os danos eram fruto da prática do futebol americano.
A indústria do esporte sempre fez de tudo para manter o ídolo ativo. Fitas, injeções, Vicodin, lidocaína, a lista é longa. O espetáculo precisava continuar. E um “médico legista africano”, que “mal conhecia o esporte”, que “nem nos Estados Unidos havia nascido”, ousava questionar os procedimentos desse esporte americano, que movimentava fortunas, empregava milhares e investia em projetos sociais. Os executivos do esporte não podiam admitir que o esporte que era empolgante, bonito, apaixonante e rentável poderia ser também perigoso.
Omalu sofreu ameaças, preconceito. Nem sequer conseguia se encontrar com os poderosos da Liga. Mas a NFL se deparou com a pessoa errada a ter descoberto algo tão avassalador. Sabe por quê? Porque Bennet Omalu aprendeu desde sempre, em Nnokwa, no sudeste da Nigéria, onde nasceu, em setembro de 1968, a lutar pelo que acreditava. Seu sobrenome, Omalu, é uma abreviação de “Onyemalukwube”, que significa que “se um homem sabe algo, ele deve falar”.
Ele não ficaria quieto, apesar de todo o risco.
Para uma publicação científica, três casos seriam suficientes. Ele e seu grupo já tinham quatro. Omalu tinha certeza: “Isso já é muito maior do que a NFL”.
Outros estudos deram ainda mais força à tese de Omalu. Em 2014 uma pesquisa da Universidade de Boston identificou que, nas autópsias feitas com 79 jogadores de futebol americano, 76 apresentavam doenças degenerativas causadas por situações de jogo. Outro estudo, de 2015, indicava que um jogador de futebol profissional sofre em média entre 1.000 e 1.500 colisões com outros jogadores ou quedas no campo a cada temporada, algumas chegando a atingir forças sobre o corpo equivalente a levar uma pancada de um carro circulando a 55 km/h.
Isso gerou uma série de processos. Recentemente, a Liga concordou em pagar US$ 1 bilhão em uma ação movida por um grande grupo de ex-jogadores aposentados que alegaram ter o problema diagnosticado por Omalu, devido à prática do esporte.
E mais, a NFL tem mudado regras de segurança no esporte. A autorregulação do esporte está deixando o jogo mais seguro. Ela criou o “Protocolo de Concussão”, investiu mais de 100 milhões de dólares para o desenvolvimento de tecnologias e apoio à investigação médica desses casos, ajudou a desenvolver um capacete tecnológico. O jogo tem tido menos colisões perigosas.
A história de Omalu virou filme, com Will Smith no papel do médico, “Um homem entre gigantes”. Não há no filme nenhuma batalha jurídica, como também essa não apareceu como de costume por aqui. Isso não tira a descoberta científica de Bennet Omalu do rol das transformações que o esporte sofre a partir das provocações que recebe.
As histórias transformadoras são sempre surpreendentes. Afinal, elas rompem a linha normal dos fatos, exigem um realinhamento cultural e jurídico, estabelecendo uma nova relação entre o esporte e seus operadores. Foi exatamente o que provocou a pesquisa médica de Bennet Omalu.
Futebol avança, mas ainda anda devagar.
Em dezembro de 2020, o futebol deu um importante passo para a evolução do seu protocolo. A Reunião Anual de Negócios (ABM) aprovou testes com substituições permanentes adicionais para casos de concussão real ou suspeita no futebol a partir de janeiro de 2021.
O protocolo do futebol está muito atrás de outros esportes. Ele não combate o problema da concussão de maneira efetiva. Outros esportes já apresentaram soluções mais comprometidas para o problema. Para isso, é preciso mudar regras. A substituição temporária, para uma melhor avaliação do atleta em choque, foi uma decisão importante. Mas ainda precisa evoluir.
Um médico independente para fazer a avaliação também se torna importante para não tornar a mudança de regra uma estratégia para técnicos.
Sobre o avanço. A International Football Association Board (IFAB) concordou com a implementação de protocolos que serão a base para os testes. Os membros concordaram que, em caso de uma concussão real ou suspeita, jogador em questão deverá ser retirado da partida para proteger a sua saúde. A equipe não poderá sofrer desvantagem numérica e a substituição não será descontada do número que cada uma tem direito por jogo.
O principal objetivo da medida é:
- Evitar que um jogador sofra outra concussão durante a partida;
- Enviar uma mensagem de que, em caso de dúvida, o jogador é retirado, mas não há desvantagem numérica ou tática, priorizando o bem-estar do atleta; e
- Reduzir a pressão sobre a equipe médica em realizar uma avaliação rápida e muitas vezes incompleta.
O anúncio feito em dezembro veio depois de um ano de consultas detalhadas com especialistas em concussão médica, médicos de equipes, representantes de jogadores, treinadores, organizadores de competições, arbitragem e especialistas na regra do jogo sobre o tema.
As confederações e associações que se interessarem em adotar a regra deverão ser inscrever junto à IFAB e Fifa. A Premier League anunciou que irá adotar. Os organizadores das competições deverão garantir que os protocolos oficiais sejam seguidos em sua totalidade e que um feedback seja enviado.
Concussão é um problema sério no esporte
A concussão cerebral é a perda de consciência num intervalo curto de tempo, e acontece logo após um traumatismo craniano.
De difícil diagnóstico, ela caracteriza-se por microlesões, que não são visíveis, mas que apresentam sintomas característicos. E como o diagnóstico é complicado, muitos atletas que sofrem concussão voltam ao jogo, o que é um problema sério.
São vários os exemplos no futebol. Álvaro Pereira na Copa de 2014, o goleiro Karius, do Liverpool, na final da Liga dos Campeões de 2018 e a lista é longa de jogadores que não poderiam voltar a campo se fosse colocado em prática um protocolo eficaz de combate à concussão.
O caso mais famoso de encefalopatia traumática crônica no futebol brasileiro é do ex-zagueiro Hideraldo Luís Bellini. O primeiro capitão a levantar a taça de campeão da Copa do Mundo pelo Brasil, em 1958, foi diagnosticado com o mal de Alzheimer.
Convencida pelo médico que cuidava dele, a família resolveu doar o cérebro de Bellini para estudos. Em setembro de 2014, saiu o resultado: ele sofria de encefalopatia traumática crônica por conta das seguidas lesões que sofrera durante os quase 20 anos de carreira no futebol.
Esporte vive em constante evolução
A decisão da IFAB e da FIFA de mudar as regras é um caminho para proteger a saúde dos atletas.
Assim como a vitória de Omalu foi para a saúde dos atletas da NFL.
Os estudos do nigeriano e outros recentes, mostram que não apenas choques de cabeça, mas como cabecear as bolas provocam pequenas lesões no cérebro que no longo prazo podem provocar ETC. Esses estudos podem trazer mudanças ainda mais profundas no jogo no longo prazo. .
Sempre importante reforçar que o esporte muda a partir de provocações. A provocação pode aparecer como forma de aprimorar o jogo, ou de melhorar a segurança de quem joga. E ela pode aparecer a partir de processos judiciais, de tragédias, mas também do entendimento científico e humano de que o esporte precisa proteger a saúde de quem pratica. Esse entendimento é fundamental para o jogo, e para o Direito Esportivo.
A NFL é uma prova disso. Mahomes é só mais um exemplo.
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