Não é novidade para ninguém que a veia negocial se faz presente no futebol há muito tempo. Alguns países adotaram esse modelo profissional antes de outros, que, mesmo tardiamente, passam a despertar para o mundo, como é o caso do Brasil. Contudo, não somente de metas financeiras sobrevive uma empresa e esse cenário foi sendo mudado ao longo dos anos.
Com efeito, o conceito de função social de uma empresa emergiu no ambiente dos negócios. Antes, por essência exclusiva, a organização tinha o lucro como escopo único e principal. Com o surgimento e aumento de força da função social, a empresa passou a ter que se dedicar diretamente para a sociedade a que se destina, constituindo-se em um poder-dever, no sentido de harmonizar as atividades empresariais com os interesses da sociedade, mediante a obediência de certos deveres positivos e negativos.
Atualmente, com a evolução das gerações, das novas tecnologias e de tudo aquilo que tem o poder de interferir no cotidiano, esse poder-dever antes mencionado passou a ser também para influenciar e melhorar a vida da sociedade. Nasceu, então, o conceito de responsabilidade social, que nada mais é do que as práticas e esforços que uma empresa faz, baseados no propósito de melhorar o mundo.
Sendo assim, a organização passa a contribuir para o desenvolvimento sustentável, pautado em diversas diretrizes, como as de direitos humanos e meio ambiente, por exemplo, adquirindo o papel de protagonista da transformação em temas variados, conforme o impacto que deseja causar. Desse modo, foi criada uma série de valores em comum para a atividade de algumas empresas, como os princípios éticos.
Igualmente, ao longo das décadas, foi necessário se adequar com perfeição a todas as leis e regulamentos, internos e externos, vigentes, pautados nas boas práticas comerciais, de governança, institucionais e também econômicas. Em outras palavras, resumidamente, essa é a definição de Compliance, que nos remete ao dever de conformidade das organizações, privadas e públicas, com suas obrigações, sejam elas fiscais, trabalhistas, penais, administrativas, previdenciárias, ambientais ou éticas, por exemplo.
Nesse contexto, evidentemente, devido a importância, relevância e representatividade econômica e social do esporte, era inevitável a introdução de todas as premissas já relatadas, em algum momento, nas mais diferentes instituições, sejam Comitês Olímpicos, Federações Nacionais e Internacionais, clubes, atletas e funcionários.
Posto isso, parte-se para a apresentação do caso concreto. Na semana passada, um dos maiores escândalos recentes no futebol espanhol veio à tona através de uma reportagem do jornal El Confidencial[1]. O periódico espanhol teve acesso a documentos e informações privadas por meio uma fonte anônima, provavelmente em razão dos ataques cibernéticos ao sistema de informática da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), denunciados um dia antes.
Entre elas, conversações privadas, do ano de 2019, entre Luis Rubiales, presidente da RFEF, e o defensor do Barcelona Gerard Piqué, atuando em representação da própria empresa, em que negociavam um contrato para a realização da Supercopa da Espanha, de organização da RFEF, na Arábia Saudita. Essa proposta incluía a mudança do formato da competição, que passaria a contar com 4 equipes e prometia ser muito mais vantajosa financeiramente para todos.
Entretanto, é válido lembrar que Piqué é fundador da holding Kosmos[2], atuante na área do esporte, com braços no futebol, tênis e no entretenimento/jogos eletrônicos. Nos últimos anos, conseguiram diversificar o leque de apostas: angariaram a organização da Copa Davis de Tênis, introduzindo um novo formato, a compra de um clube filiado a RFEF (FC. Andorra)[3], investiram na área de retransmissão de competições, em parceria com o Ibai Llanos, no canal Twich, na Copa América, além de produzirem vários documentários.
Ocorre que, todavia, durante as tratativas, foram abordados muitos temas, como negociação de comissões – estima-se que a empresa de Piqué tenha ganho 4 milhões de euros por cada ano de competição no território saudita -, conversas para tentar convencer os outros clubes a aprovarem o novo formato, incluindo uma tática para a escolha da sede da final do torneio (potestade da RFEF) como forma de constranger o Real Madrid a aceitar a proposta.
Ademais, se teria que convencer a Associação de Futebolistas Espanhóis (AFE), espécie de sindicato dos jogadores, para que aprovasse a mudança do calendário de maneira a encaixar as datas da nova Supercopa. Para isso, os capitães e ícones das principais equipes, como Messi e Sérgio Ramos, teriam que intervir para colaborar com o andamento da iniciativa. A propósito, durante os áudios vazados, cogitou-se até um possível envolvimento do Rei Emérito da Espanha[4][5].
Além disso, através da divulgação das negociações, não somente ficou claro que a competição só teria viabilidade com a presença de Real Madrid e Barcelona, como também se soube que se reduziria, por meio de contrato, o capital recebido pela RFEF se eles não participassem. Se nenhum dos dois gigantes disputassem, haveria uma queda de até 10 milhões de euros de receitas.[6]
Some-se a isso, a questão de que em um dos áudios, Rubiales trata com desdém de um clube como Atlético de Madrid, que se queixou da arbitragem justamente na semana onde teriam ocorrido as conversações. Tudo isso, acabou provocando a ira dos colchoneros e um início da desconfiança do público sobre a arbitragem e o real interesse econômico pela participação do Real Madrid e Barcelona na Supercopa.
Por fim, o teor completo ainda está sendo publicado gradualmente, mas, independentemente disso, convém aclarar que a competição acabou sendo benéfica economicamente para a RFEF e também aos clubes, que passaram a receber muito mais pela competição, tanto em direitos de transmissão, como pela própria “exportação” do torneio. O acordo total girou em torno dos 40 milhões de euros, que seriam divididos entre os clubes e a Federação, que investiria parte no futebol profissional e outra parte no fomento do esporte/futebol amador.
Por outro lado, muito embora tenha sido um acordo proveitoso para todas as partes, questionou-se muito a falta de transparência nas tratativas, um possível conflito de interesses na figura de Gerard Piqué nas negociações e o recebimento das comissões, pois era proprietário de um clube filiado a RFEF, além de ser um jogador em atividade do Barcelona, diretamente involucrado na Supercopa e, obviamente, filiado a Federação Espanhola.
Da mesma forma, da parte do presidente da RFEF, como também de sua Assembleia, houve diversos questionamentos sobre conflito de interesses e violação da integridade das competições. Isso porque, o recebimento da remuneração dos que possuem esses cargos contém aspectos variáveis, de acordo com as receitas obtidas pela Federação, além da parte fixa estabelecida. Portanto, seria de total interesse a mudança de sede para Arábia Saudita, bem como as presenças de Real Madrid e Barcelona, o que poderia influenciar até na arbitragem dos campeonatos.
Afinal, houve conflito de interesses do jogador e do alto comissariado da Federação Espanhola? Configurou-se em uma violação da ética profissional pelas as partes? A integridade das competições vigentes estaria afetada com todas aquelas informações divulgadas? Confiram os dispositivos dos regulamentos a seguir sobre esses temas.
O Código de Ética da RFEF[7], a qual todos os seus membros filiados estão sujeitos, determina, em seu artigo 22, que as pessoas submetidas a essa normativa não poderão preparar e participar na tomada de decisões em situações que possa haver conflito de interesses, capaz de afetar a sua atuação, seja esse um conflito real ou possível.
Na sequência, se estabelece o conceito de conflito de interesses: ele surge quando as pessoas sujeitas a este código têm, ou dão a impressão de ter, interesses secundários que possam influenciar o cumprimento independente, integral e objetivo de suas obrigações.
Logo, pela literalidade do artigo, basta dar a impressão de possuir interesses secundários que possam influenciar o cumprimento independente, completo e objetivo de suas obrigações, para que o conflito de interesses esteja caracterizado. Não há necessidade de um descumprimento independente, completo e objetivo das obrigações. Ao meu ver, essa dilatação exacerbada do conceito, com a fixação dos termos “dar impressão de ter”, é prejudicial no momento de impor um critério objetivo e racional.
Por seu turno, comparando com a realidade nacional, o sistema brasileiro parece ser mais objetivo. Os artigos 11 ao 13 do Código de Ética da CBF[8], determinam alguns parâmetros, impondo, inclusive, um rol meramente exemplificativo. Nesse contexto, entende-se por conflito de interesses, de particulares ou de terceiros com os da respectiva entidade, qualquer possível vantagem que resulte em benefício econômico próprio ou de terceiros.
Estipulam, como rol exemplificativo: i) possuir participação em direitos de atletas, clubes, empresas, ativos e bens que possam vir a sofrer valorização direta ou indireta pela atuação da respectiva entidade; ii) requisitar de patrocinadores e fornecedores qualquer vantagem pessoal ou solicitar qualquer demanda em nome da respectiva entidade que não conste explicitamente em contrato. O exemplo i) se encaixa perfeitamente na situação espanhola.
Retornando ao caso concreto, não podemos olvidar que o jogador ainda está sujeito ao Código de Ética do FC Barcelona[9], que, no seu artigo 4.6 regula o conflito de interesses. Nesse sentido, impõe que, embora o clube reconheça e respeite a participação de funcionários em atividades financeiras e comerciais diferentes das realizadas pela entidade (desde que sejam legais, éticas e não conflitem com as responsabilidades para com o clube), devem ser evitadas, em qualquer momento, situações que possam implicar em um conflito entre interesses pessoais e do clube, ou que lhes permita usar sua posição no clube catalão para obter vantagens patrimoniais ou pessoais ou oportunidades de negócios. Resta claro, portanto, que houve violação ao código do clube.
Sobre o sistema de remuneração do presidente e dos membros do Conselho, que aprovaram a transferência do torneio e uma série de medidas, apesar de não ter havido nenhum prejuízo aos cofres da entidade e a prática de recebimento de variáveis ser recorrente no mundo corporativo, deve-se evitar, para os próximos anos, esse tipo de embate.
Decerto, o futebol possui suas peculiaridades, que, em certos momentos, não se adaptam totalmente às práticas corporativas usuais, esse é um exemplo perfeito disso. Os mesmos que decidem pelos rumos do futebol espanhol, tal como por uma competição fora do país e, ao mesmo tempo, comandem a arbitragem das competições, não podem ter suas remunerações atreladas à presença ou não de clubes, sob pena de deslegitimar todo um sistema.
Em sua defesa, o defensor espanhol afirmou que a Supercopa gerava 120.000 euros antes do acordo e que passou a valer 40 milhões de euros, com a transferência da Supercopa para a Arábia Saudita, que já recebe a Supercopa Italiana por uma quantia bem inferior[10]. Além disso, alegou que o pagamento da comissão partiu dos árabes e não dos cofres da Federação e que nada foi feito de maneira obscura. Segundo ele, não houve nenhum conflito de interesses.
O caso promete ainda ter mais reviravoltas e repercussão pública, pois um dos principais partidos políticos espanhóis quer convocar o presidente da RFEF e o do Conselho Superior de Esporte para darem explicações ao Congresso.[11]Estaremos acompanhando de perto os próximos desdobramentos.
Conforme o exposto, as práticas corporativas foram evoluindo ao longo do tempo e sendo aplicadas também no esporte, como a responsabilidade social, função social, compliance e práticas de boa governança. Hoje em dia, o caminho ainda é longo, mas, sem dúvidas, o ambiente é muito mais sustentável e saudável economicamente do que antes. Cada membro do esporte conseguiu perceber a sua importância e o seu papel perante a sociedade.
Em conclusão, atualmente, não basta ser correto, há de ser transparente em tudo e aparentar ser correto, em consonância com todas as normas, sejam privados ou públicas, que regulem a atividade.
Crédito imagem: Christof Stache/AFP
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[1] ‘El Confidencial’ desvela la comisión de 24 M€ entre Rubiales y Piqué por la Supercopa de Arabia – AS.com – – última consulta: 26.04.2022
[2] Quién hay detrás de Kosmos, la empresa de Piqué: los fundadores del holding y su objetivo (20minutos.es) – última consulta: 26.04.2022
[3] Perto de aposentadoria, Gerard Piqué compra clube da quinta divisão da Espanha | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 26.04.2022
[4] Piqué propuso a Rubiales contactar con Juan Carlos I para llevar la Supercopa a Arabia Saudí | Deportes | EL PAÍS (elpais.com) – última consulta: 26.04.2022
[5] Atlético de Madrid: La frase de Rubiales que indigna a los atléticos: “Dice Tomás que LaLiga la va ganar el Atlético… pobrecito” | Marca – última consulta: 26.04.2022
[6] Las multas a la RFEF si no juegan Real Madrid y Barça la Supercopa: penalizados con millones de euros (20minutos.es) – última consulta: 27.04.2022
[7] Código de Ética da RFEF – Microsoft Word – Código Ético RFEF_28_05_21_VF – última consulta: 27.04.2022
[8] Código de Ética da CBF – cbf-cefb-CodigoEticaConduta-04.indd – última consulta: 27.04.2022
[9] Código Ético do FC Barcelona – C-digo-tico-FC-Barcelona_ES.pdf (fcbarcelona.com) – última consulta: 27.04.2022
[10] Piqué, sobre la Supercopa: “Sé separar un acuerdo comercial de jugar al fútbol” | IUSPORT: EL OTRO LADO DEL DEPORTE – última consulta: 27.04.2022
[11] El PP pide que Luis Rubiales y el CSD expliquen la Supercopa en el Congreso | IUSPORT: EL OTRO LADO DEL DEPORTE