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Superliga Europeia: Uma avalanche de dúvidas e o Direito em sua essência

Por João Paulo Di Carlo Conde Perez

Há cerca de dois meses, através de uma nota de imprensa, alguns dos 12 clubes de futebol mais ricos e influentes do planeta causaram um dos maiores impactos esportivos já vistos ao anunciarem a criação de uma Superliga Europeia de Futebol.

Desde as primeiras horas, já se sabia que o assunto era bastante abrangente e que envolveria diversas controvérsias. Era, portanto, um terreno fértil para debates ricos e que, consequentemente, abarcaria muitos temas jurídicos em torno desse projeto que prometia revolucionar o mundo do futebol.

O objetivo desse artigo será expor alguns dos argumentos utilizados por cada uma das partes envolvidas e trazer à baila algumas dúvidas acerca das possíveis sanções, entrevistas e decisões que movimentaram os meios de comunicação nos últimos dias, sempre em conformidade com os regulamentos das entidades envolvidas e à luz das legislações nacionais e europeias aplicáveis, sem tecer qualquer juízo de valor sobre o posicionamento das partes.

Não se pode olvidar que o projeto da Superliga está longe de ser uma novidade. Ao longo dos anos, já se falou, em diversas oportunidades, sobre a sua criação; uma delas, inclusive, capitaneada pelo ex-presidente do Associazione Calcio Milan, Silvio Berlusconi[1], no início anos 90, que deu azo à mudança do formato da Liga dos Campeões naquela época.

Era um gigante adormecido. Hoje, diante da crise gerada pela pandemia da Covid-19, e da queda brutal nas receitas dos grandes clubes, o gigante acordou, e, desta vez, com a promessa de solucionar, a curto prazo, os problemas financeiros dos clubes através de grandes investimentos oriundos de um dos maiores bancos do mundo e de uma entrada de capital muito superior àquela recebida nas competições europeias.

Não era, contudo, apenas financeira a motivação dos clubes; eles pleiteavam, há anos, por uma maior participação e um maior poder decisório na UEFA (União das Associações Europeias de Futebol), e queriam mudanças no formato da Liga dos Campeões e na distribuição dos direitos televisivos. O objetivo era claro: tornar a Liga dos Campeões mais atrativa ao público e, com isso, forçar mudanças nos campeonatos nacionais, cujas audiências despencaram ao longo dos últimos anos.

Florentino Perez, o líder do movimento, argumentava, ainda, que o futebol estava perdendo espaço com o público jovem, que, hoje, possui interesse nos e-sports e nas plataformas de streamings.

Some-se a isso o fato de que esses clubes, inicialmente, pretendiam executá-lo dentro do sistema piramidal do esporte, mas que, mesmo que não fossem autorizados para tanto, continuariam com o plano da nova competição. Para evitar uma revolução dos clubes não participantes, os criadores da Superliga se comprometeram, ainda, a auxiliar os demais clubes com a distribuição ainda maior de mecanismos de solidariedade, e garantiram que não deixariam de participar das competições nacionais.

Imediatamente, os clubes não participantes, a Associação de Clubes Europeus, as Federações Nacionais, as Ligas Nacionais, a UEFA e a FIFA se posicionaram veementemente contra a ideia de criação da Superliga, defendendo que, com isso, o mérito desportivo estaria sendo violado.

Em um segundo momento, a UEFA e FIFA ameaçaram impor sanções aos clubes e aos jogadores que participassem da Superliga Europeia. Para evitar qualquer punição e garantir a execução do projeto, a European Superleague Company SL, sociedade limitada criada para a organização da competição e composta por todos os 12 times e com sede em Madrid, apresentou uma demanda a um Julgado Mercantil de Madrid[2], que concedeu medida cautelar inaudita altera parte, mediante prestação de caução pelo demandante, para que, principalmente, a FIFA e UEFA se abstivessem de tomar qualquer ação que pudesse impedir ou dificultar a criação e o desenvolvimento da Superliga.

É válido mencionar, que, em outros esportes, o Tribunal Europeu já se posicionou a favor da criação e participação de atletas em competições fora do sistema piramidal do esporte. Como ocorreu com a Euroliga de Basquete e, em caso recente, com a Patinação, considerou-se que a sanção aplicada aos atletas interessados em atuar em outras competições era desproporcional e que, nos termos dos artigos 101, 102 do Tratado de Funcionamento da União Europeia[3], eles poderiam atuar fora do guarda-chuva das Federações, privilegiando a livre concorrência, e impedindo-se que a Federação utilizasse de forma abusiva sua posição dominante.

Com efeito, esses dois artigos foram utilizados pelo Julgado Mercantil para fundamentar a decisão. Contudo, evidente que a decisão sobre a Patinação deveria ser mitigada e interpretada de forma distinta, tendo em vista que o futebol é o esporte mais popular do planeta e o que move as maiores cifras, o que poderia gerar consequências mais severas ao esporte e criar perigosos precedentes, alterando tudo aquilo que se já viu de estrutura do esporte até hoje.

Contudo, sobre essa decisão da Justiça Espanhola surgem algumas dúvidas quanto (i) à validade da decisão contra duas entidades suíças de direito privado, (ii) à validade da decisão em todo continente europeu, e (iii) à caracterização da urgência, que, como se sabe, é requisito fundamental para a concessão de medida liminar, uma vez que não havia nada concreto, até então, em termos de calendário, data de início, participação de outros clubes, negociação de direitos televisivos, entre outros.

Por outro lado, muito se falou que esta decisão fosse ser replicada por outras jurisdições europeias, ensejando uma verdadeira enxurrada de ações por todo o continente. Todavia, teria a Justiça Italiana competência para decidir um litigio entre uma sociedade limitada espanhola e duas entidades suíças que valeria em todo o âmbito europeu?

O Convenio de Lugano[4], firmado entre os Estados membros da Comunidade europeia e outros países, como a Suíça, para reconhecimento e execução das decisões judiciais em matéria civil e mercantil, estabelece que as pessoas domiciliadas nos Estados vinculados ao convenio podem ser demandados em outro Estado vinculado ao convenio e, em seu artigo 33, que as decisões tomadas por Estado vinculado serão reconhecidas nos demais Estados contratante, sem que fosse necessário procedimento algum.

No entanto, a repercussão geral foi muito negativa, principalmente pela maioria dos torcedores das equipes dissidentes, dos patrocinadores e pela queda do valor de ação na Bolsa de Valores. Rapidamente, a maioria dos clubes desistiu do projeto. A UEFA, contudo, continuou a subir o tom ameaçando punir os clubes que ainda não haviam desistido da Superliga e chegou a abrir um procedimento sancionador.

A dúvida que fica é: há algum impedimento, por meio dos Estatutos da UEFA e FIFA, para a criação da competição dissidente? Os clubes poderiam ser sancionados, inclusive com exclusão de uma competição em andamento?

No Estatuto FIFA[5], no artigo 2, onde estão presentes os objetivos da entidade, destaca-se a responsabilidade de promover a integridade, o comportamento ético e a desportividade, devendo-se adotar todas as medidas adequadas para evitar a violação dos Estatutos e regramentos emitidos pela entidade. Da mesma forma, o artigo 20 estabelece que clubes, ligas e outras entidades afiliadas a uma federação membro estarão subordinadas à Federação e só poderão existir com o consentimento da mesma. Por sua vez, o artículo 22 estabelece que as confederações, no caso, a UEFA, têm a obrigação de garantir que as ligas internacionais e outras organizações análogas de clubes ou ligas não se constituam sem o consentimento ou aprovação da FIFA.

Todavia, no Código Disciplinar da FIFA[6], não há uma tipificação prevista específica para condutas tomadas pelos clubes. O que mais se aproxima, mas ainda longe de ser específico, é o artigo 12, que diz que todos os membros, sejam jogadores, clubes, ligas e federações devem agir com lealdade e respeitar os regulamentos e estatutos da entidade e que poderá impor sanções para uma conduta que desprestigie o futebol ou a FIFA.

O Estatuto da UEFA[7] parece ser mais protetivo quanto à criação da Superliga, entretanto, o Código Disciplinar[8] ainda é falho quanto à tipificação da conduta para aplicações de sanções. O artigo 2 do Estatuto descreve os objetivos da entidade, entre eles, os de assegurar que os valores desportivos possam prevalecer sobre os interesses comerciais e o de organizar e realizar competições a nível europeu. No artigo 51bis, está presente parte do conceito de mérito esportivo que seria a existência de ascensos e descensos de clubes, o que não ocorreria com a Superliga, uma vez que os 12 clubes teriam vaga cativa na competição, sem importar os resultados obtidos nos respectivos campeonatos nacionais.

Além disso, o artículo 51 do Estatuto ainda é impreciso quando diz que não poderão ser formadas alianças ou combinações entre ligas e clubes membros da UEFA sem a autorização da UEFA. Não há, entretanto, uma definição exata sobre o que seria a relação proibida.

O que se nota é que, de acordo com o princípio da legalidade, norteador das relações jurídicas, a imposição de sanções não se sustenta pela literalidade do ordenamento dos Códigos Disciplinares de ambas entidades organizadoras e pelas federações nacionais, portanto, qualquer sanção aplicada, como a proibição de que os jogadores participassem de sua seleção nacional ou exclusão de clubes de competições em curso, não seriam sustentadas pelos regulamentos atuais.

A criação da competição é legal. É o que defende uma das maiores vozes do Direito Desportivo Internacional, Juan de Dios Crespo.[9]

Paralelamente, algumas federações nacionais já planejam mudar seus estatutos para fazer constar a proibição de participação de seus membros em competições organizadas fora do sistema piramidal desportivo[10], como a Italiana[11], que já colocou em ação novas medidas.

Do mesmo modo, representantes dos Estados dos países dos clubes participantes, como Boris Johnson[12], dispondo de todo o aparato estatal, também passaram a ameaçar mudanças nas leis dos próprios países para proibir a criação da Superliga, o que poderia afetar os clubes e também os proprietários.

Haveria interesse público geral ao editar tal dispositivo ou se poderia afirmar que essa norma emitida pelo Estado e as novas regras das federações não violariam o direito da livre concorrência? Qualquer retaliação aos proprietários não se configuraria em uma transgressão aos princípios da administração pública, como o da impessoalidade?

Outro tema muito debatido e que preocupou muito os jogadores que estavam sob contrato nos clubes dissidentes foi sobre as consequências da Superliga nos contratos trabalhistas em vigor.

Em um contrato que estabelece que o jogador deve atuar em certas competições, inclusive com a fixação de premiações por metas atingidas, o que sucederia se o clube saísse do sistema desportivo e não disputasse mais as competições descritas? O contrato perderia o objeto e, logo, seria causa de resolução? Seriam considerados os jogadores da Superliga profissionais à luz das legislações internas? Teriam que ser elaborados novos convênios coletivos para regular as relações entre a Superliga e os jogadores?

Na Itália, por exemplo, na lei 91 de 23 de março de 1981[13], que no artigo 2º institui que seriam profissionais os que atuam a título oneroso de maneira contínua no âmbito das disciplinas do regulamento do Comitê Olímpico Italiano (CONI) e que consigam a qualificação emanada pelas Federações Nacionais, segundo as normas das mesmas.

Como seria a regulamentação da Superliga, a resolução de litígios, o regulamento de transferências de jogadores, a transferência de menores, a segurança jurídica já tão consolidada através da normativa FIFA? Existiria conflito de interesses que os mesmos clubes possam negociar os direitos televisivos, organizar o torneio, impor sanções, criar os regulamentos e, ao mesmo tempo, jogar o torneio?

O tema Superliga está longe de acabar, até porque a Sociedade Limitada constituída na Espanha ainda não foi dissolvida e todos os fundadores e sócios ainda estão no contrato social.

Até o presente momento, nove dos 12 clubes anunciaram oficialmente a desistência da Superliga e chegaram a um acordo com a UEFA[14], em que ficou pactuado, entre outras coisas, que as equipes terão de pagar 15 milhões de euros que serão utilizados no fomento ao esporte, concordância com a retenção de 5% de todas as receitas recebidas oriundas de competições organizadas pela UEFA, que serão redistribuídas entre todos os participantes, que os clubes serão reintegrados a Associação Europeia de Clubes e que assumem compromisso com os Estatutos e Regulamentos da entidade, encerrando definitivamente a ideia da Superliga. A Premier League também multou os seis clubes ingleses que tinham participado do projeto da Superliga em 22 milhões de libras.[15]

Se criou um precedente que promete ter consequências mundiais. Contudo, no âmbito da América do Sul, o Estatuto da Conmebol[16] proíbe a criação de uma Superliga? Esse projeto poderia ser replicado aqui caso os clubes estejam insatisfeitos com a Confederação? O artigo 66 dispõe que a Conmebol tem a faculdade exclusiva para criar, aprovar, reconhecer, modificar, eliminar, organizar e dirigir as partidas, competições e torneios internacionais na América do Sul, que participem as seleções das Associações membros e seus clubes. Outrossim, a celebração de qualquer torneio, partida ou competição internacional deverá ter autorização da Conmebol, e que, sem essa permissão, a Confederação pode tomar as medidas corretivas e disciplinares que considere pertinentes ao caso. O Estatuto da Confederação parece ser mais protetivo sobre a possibilidade de uma competição dissidente.

Retorna-se, então, ao cerne da discussão jurídica. Nos últimos dias, o Ministério da Justiça Suíço, após a remissão da questão prejudicial pelo Julgado Mercantil ao Tribunal de Justiça da União Europeia para esclarecer se a UEFA incorreu em abuso de posição dominante, ordenou que a UEFA e a FIFA não poderiam sancionar os três clubes dissidentes até a decisão da Corte Europeia[17]. Imediatamente, a UEFA suspendeu o procedimento sancionador aberto contra os clubes divergentes, que poderão competir a próxima Champions League[18]

Desse modo, por todo o exposto, pelo menos a princípio, o projeto de criação de uma Superliga e uma possível aplicação de sanções foram engavetados e prometem ter novos desdobramentos nos próximos dias quanto aos três clubes que ainda relutam em firmar o termo de compromisso com a UEFA.

Enquanto isso, novos fatos são trazidos à tona[19], de maneira que as dúvidas seguem crescendo e, tal como o direito, o futebol demonstra que evolui tão rápido, seja dentro de campo ou nos bastidores, que, a cada dia, pode disseminar novos desafios jurídicos.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


João Paulo Di Carlo Conde Perez é advogado, mestrando em Direito Desportivo pela Universidad Europea/Real Madrid e pós-graduando em Direito Empresarial pela PUC-RJ

[1] Silvio Berlusconi foi idealista da Superliga há 35 anos e composição política levou à atual Champions | blog do pvc | ge (globo.com)

[2] Decisão do 17º Julgado Mercantil de Madrid – 1618945012-auto-acuerd-m.pdf (ecestaticos.com)

[3] Tratado de Funcionamento da União Europeia: Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (versão consolidada) (europa.eu)

[4] Convenio de Lugano – BOE.es – DOUE-L-2007-82413 Decisión del Consejo, de 15 de octubre de 2007, relativa a la firma, en nombre de la Comunidad, del Convenio relativo a la competencia judicial, el reconocimiento y la ejecución de resoluciones judiciales en materia civil y mercantil.

[5] Estatuto da FIFA –  the-fifa-statutes-2018.pdf

[6] Código Disciplinar da FIFA – codigo-disciplinario-de-la-fifa-edicion-2019.pdf

[7] Estatuto da UEFA – 20210420_Regulations_UEFA_Statutes_ 2021_en.pdf • Visualizador • Documents UEFA

[8] Código Disciplinar UEFA – 20200626_UEFA_DR_2020_en.pdf • Visualizador • Documents UEFA

[9] Juan De Dios Crespo – Calma tensa en el fútbol europeo: Los clubes de la Superliga y la UEFA, obligados a entenderse para la supervivencia del deporte – Confilegal

[10] LaLiga estudia medidas “protectoras” para blindarse ante futuros intentos de la Superliga | Compañías | Cinco Días (elpais.com)

[11] Serie A: Italia ajusta su reglamento para evitar que sus clubes integren ‘Superligas’ | Marca

[12] Governo britânico disposto a qualquer medida para travar Superliga – Superliga Europeia – Jornal Record

[13] Lei 91, de 23 de março de 1981: LEGGE 23 marzo 1981, n. 91 – Normattiva

[14] UEFA aprova medidas de reintegração para nove clubes envolvidos na denominada “Superliga” | Por dentro da UEFA | UEFA.com

[15] Premier League multa os seis clubes ingleses que entraram na Superliga | Esporte | O Dia

[16] Estatutos-Conmebol-2020-esp.pdf

[17] Golpe de la Superliga a la UEFA – AS.com

[18] Champions League: La UEFA suspende los expedientes abiertos a Real Madrid, Barcelona y Juventus | Marca

[19] The Super League Thought It Had a Silent Partner: FIFA – The New York Times (nytimes.com)

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