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Surya Bonaly: a consciência e o poder de estar à frente de seu tempo

Surya Bonaly é uma atleta que ousou desafiar as bases de um esporte. E pagou caro por isso. O conservador e elitista ambiente da patinação artística dos anos 1990 era escancarado todas as vezes em que a destemida atleta negra entrava no ringue de patinação.

Filha adotiva de um casal de entusiastas esportivos, Surya desde cedo praticou, com habilidade, diversos esportes. Na ginástica olímpica, chegou a ser campeã mundial júnior no trampolim. Em todo colégio, parece haver aquela pessoa que é boa em todos os esportes que pratica. Surya era essa pessoa.

No entanto, a maior paixão da multiatleta sempre foi a patinação, e com o apoio de seus pais se mudou ainda com 11 anos para Paris em busca do sonho de se tornar uma patinadora olímpica. A carreira de Surya deslanchou rapidamente. Dona de invejável consciência corporal e de alta preparação física, cunhadas em anos de ginástica, Surya chamou a atenção do então treinador da seleção francesa adulta, Didier Gailhaguet, e aos 12 anos já estava treinando com a seleção nacional.

Os resultados expressivos logo apareceram. No início da década de 1990, começou a figurar entre as principais patinadoras do mundo. Em 1991, com apenas 18 anos, já era tricampeã nacional, campeã europeia e campeã mundial júnior. Era o momento de Surya enfrentar desafios maiores e a Olimpíada de Albertville, na França, no ano seguinte parecia ser a oportunidade da consagração. Porém, diante da pressão de milhares de compatriotas, Surya acabou em quinto lugar, mesmo concluindo o então inédito salto quádruplo.

Apesar da carreira vitoriosa, as contestadas derrotas de Surya parecem ter ecoado mais alto, em função não só das elevadas expectativas criadas, mas também, principalmente, por terem exposto o ambiente conservador da patinação artística.

A história de Surya é retratada no episódio “Julgamento” da série “Losers”, lançada neste ano pela Netflix. A série propõe uma reflexão sobre a derrota no esporte e como alguns atletas fizeram dessas derrotas trunfos para construírem grandes histórias dentro e fora do esporte.

No mundo da patinação artística, especialmente naquela época, era constante a expectativa do estereótipo da princesa do gelo que deveria ser correspondido pela patinadora. Graciosa e suave eram os dois principais adjetivos utilizados pela mídia, pelos críticos e principalmente pelos juízes para qualificaram uma boa apresentação. Surya parecia não corresponder a esse estereótipo.

Surya era indiscutivelmente a patinadora com a melhor capacidade física e com a maior ousadia, o que a levava a arriscar saltos nunca antes realizados. Porém, as apresentações não atendiam aos “padrões de feminilidade” esperados. Era comum a utilização de linguagem específica para “exaltar” os feitos de Surya. Exótica, misteriosa e incomum eram adjetivos com os quais ela estava acostumada.

Surya utilizava essa atmosfera para aprimorar ainda mais a sua técnica apurada. Ciente de que uma atleta negra não seria vista pelos juízes como a princesa do gelo que eles buscavam, Surya evoluía cada vez mais, e suas apresentações levavam o público ao delírio com a extrema dificuldade de seus movimentos.

Porém, parecia que, por melhor que fosse a apresentação, ainda não era compatível com o que esperavam os juízes. Na segunda Olimpíada, em 1994, a frustração veio em forma de quarto lugar. Já no campeonato mundial ocorrido no Japão naquele mesmo ano, Surya, que havia patinado com extrema perfeição e liderava até o final, perdeu a medalha de ouro para a japonesa Yuka Sato, que, além de exímia patinadora, se enquadrava no estereótipo de princesa graciosa do gelo.

Naquele mundial, a imagem de Surya se recusando a subir ao segundo lugar do pódio correu o mundo, e a sua revolta com o sistema da patinação ficou evidente. Porém, a cruzada de Surya no esporte ainda não estava concluída, e, contrariando os rumores de aposentadoria, ela ainda disputou a Olimpíada de Nagano, em 1998.

Em Nagano, Surya bateu de frente com o sistema. Competindo depois de uma grave lesão e realizando uma apresentação com alguns erros, Surya decidiu ousar. Ignorando a regra oficial que proibia tal movimento, realizou um mortal para trás caindo com apenas um pé, para êxtase da multidão. Penalizada pelos juízes, ela terminou na décima colocação.

Até hoje nenhuma mulher e nenhum homem conseguiram executar esse mesmo salto.

Depois de anos desafiando os limites da patinação olímpica, Surya acabou migrando do esporte olímpico para o esporte profissional de apresentações, libertando-se das regras que proibiam seus arriscados movimentos e, principalmente, dos julgamentos enviesados dos juízes oficiais. Surya hoje é treinadora e ativista por direitos civis nos Estados Unidos.

Em um esporte subjetivo como a patinação artística, a vitória não é concedida àquele que chega antes, que marca mais pontos ou que salta mais alto. A exigência está em corresponder aos critérios e às expectativas das pessoas designadas para julgar.

Tais juízes buscam uma imagem calcada em padrões já estabelecidos de forma deliberada ou velada. A atleta negra com tônus musculares proeminentes usava a plena consciência que tinha disso para desafiar o sistema vigente.

Quando Surya concluiu o salto mortal para trás na Olimpíada de 1998, ela disse que gostaria de deixar uma marca para o esporte. Para além do incrível salto, a marca de Surya foi ter tido a consciência de que estava à frente de seu tempo e não ter se curvado aos padrões impostos. Ter buscado sempre a melhor versão de si mesma.

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