Por Fabio Araújo
Já perceberam que, quando fazemos referência a atletas de elite como LeBron James, Roger Federer ou Cristiano Ronaldo, a palavra “gênio” é quase sempre mencionada? É como se cada um desses atletas nascesse com dom especial que os tornam capazes de feitos sobre-humanos, passíveis de serem realizados apenas por pessoas dotadas de qualidades especiais. Na verdade, o que observamos a cada taça de Grand Slam levantada, a cada título da NBA conquistado, ou a cada triunfo na Champions League, é apenas uma pequena parte da história profissional do atleta. Ao presenciarmos os momentos de consagração esportiva, nunca levamos em consideração os caminhos percorridos pelo atleta, desde os primeiros contatos com o esporte até o êxito internacional. Supomos que o indivíduo nasceu com talentos extraordinários, o que os fazem naturalmente destinados a ter sucesso.
A maneira como avaliamos a capacidade do atleta em transformar-se no “próximo grande jogador de futebol” está vinculada ao desempenho em campo durante uma “peneira”, um torneio ou partida. Quando avaliados por equipes interessadas, o que realmente conta é o que o jovem atleta faz com a bola no pé, seu toque refinado, sua visão de jogo, o posicionamento em campo. Em outras, palavras, busca-se o jogador talentoso, genial. Observa-se o desempenho pretérito e momentâneo do atleta com a bola nos pés. Para fins de seleção de jovens jogadores, o potencial de desenvolvimento do atleta não é devidamente observado e, com frequência, são totalmente descartados ou ficam relegados a segundo plano.
Nesse contexto, busca-se a qualidade individual que julgamos natural e a qual nos referimos como “talento” ou “genialidade”. E essa incessante obsessão pelo talento de jovens jogadores, cujo desenvolvimento físico e mental estão distantes de defini-los como pessoas e atletas é inata ao ser humano. Para Nietzsche, a nossa tendência de adoração da genialidade serve ao propósito psicológico que nos permite viver uma vida medíocre, conformados com nossas derrotas quando nos empenhamos em busca de um objetivo grandioso.[1] Se genialidade é dom natural, a futura estrela já nasce com o talento necessário para brilhar e não há nada que trabalho árduo, paixão e persistência possam fazer para que uma pessoa sem aptidão natural consiga um dia fazer parte de uma elite que domina o esporte.
O que se defende é que abordagem utilizada para a identificação de jovens atletas deveria avaliar o potencial desenvolvimento do jogador, ou seja, a complexa variedade de qualidades que ajudam o indivíduo a aprender e reter o aprendizado, a esforçar-se para sobrepor obstáculos inevitáveis e que ajudam na adaptação, na capacitação e na contínua evolução técnica.[2]
E não é só no futebol que a abordagem de seleção de atletas desconsidera o potencial de crescimento do indivíduo. O sistema de drafts em esportes norte-americanos também leva em conta a performance de jovens atletas durante os anos de competições universitárias que, no caso do basquete e do futebol americano, são tão competitivas que muitos atletas já ingressam nas ligas profissionais com o status de superestrelas e prontos para encarar todos desafios profissionais da carreira. Ou assim pensam os diretores esportivos e olheiros.
Caso a lógica do talento natural sobrepusesse outros aspectos que potencializam o desenvolvimento do atleta, os jogadores de basquete escolhidos nas primeiras posições dos drafts avançariam nas suas carreiras sem maiores percalços. O fenômeno dos fracassos e das surpresas advindas do sistema de escolhas de atletas da NBA resultaram em estudo chamado de redraft, a avaliação não oficial que utiliza métricas e análises da performance profissional dos jogadores que atuaram na NBA nos últimos 20 anos para reclassificá-los de acordo com suas atuações durante a carreira na liga[3]. Se as escolhas do draft fossem perfeitas, as posições da escolha inicial coincidiriam com o ranking do redraft. Não é isso que é observado. As análises demonstram que atletas são subavaliados e supervalorizados com muita frequência. As investigações mostram que a única constância comprovada é que os escolhidos nas últimas posições do segundo round provavelmente mereceram a pouca confiança atribuída pelas equipes em suas habilidades. O caso mais famoso diz respeito à escolha de Darko Milicic em segundo lugar geral pelo Detroit Pistons. Preterido apenas por LeBron James no draft de 2002, Milicic foi selecionado antes de jogadores consagrados como Dwyane Wade, Carmelo Anthony e Chris Bosh. Darko acabou por ter uma carreira sem qualquer destaque na NBA, fazendo com que, no redraft, o jogador sérvio fosse selecionado em 24º lugar. Darko Milicic jogou durante 10 anos na NBA, com médias de 6.0 pontos, 4.2 rebotes e 0.9 assistências por jogo. No outro espectro da avaliação, Kobe Bryant, um dos maiores jogadores de basquete de todos os tempos, foi preterido por 12 times antes de ser draftado em 13º lugar pelos Hornets e, depois, cedido aos Lakers em 1996.
Na NFL, além do tradicional draft, o processo de identificação e seleção de jogadores segue protocolo ainda mais passível de críticas. As equipes utilizam os resultados do NFL Scouting Combine como uma das referências para a seleção de rookies. A bateria de intensos testes físicos e mentais, avaliações médicas e entrevistas dura cerca de uma semana. As análises enfatizam os atributos físicos dos atletas convidados em provas como tiros de 40 jardas, pulos verticais e supino. Para medir o desempenho de atletas e que serão posteriormente compilados para utilização das equipes, os scouts assistem a milhares de horas de vídeo e os mais avançados instrumentos tecnológicos de medição de performance são utilizados. Porém, dos 40 atletas mais bem classificados no Scouting Combine nos últimos quatro anos, apenas a metade continua na NFL e nenhum deles conseguiu destacar-se no esporte.
Os exemplos de “promessas” de atletas no futebol que simplesmente não conseguem repetir no profissional o desempenho nas categorias de base são tão numerosos que citá-los poderia por em risco o propósito deste artigo. Por outro lado, outros atletas, apesar de não serem considerados como “apostas certas” em um primeiro momento conseguem desenvolver aspectos técnicos, físicos e mentais e transformam-se em atletas de prestígio. Cafu, um dos mais premiados jogadores do futebol brasileiro foi rejeitado em 12 peneiras até conseguir uma oportunidade no Itaquaquecetuba Atlético Clube. Tom Brady, considerado por muitos o melhor QB da história do futebol americano, foi selecionado pelo Patriots apenas no sexto round do draft de 200, em 199º lugar no geral. O que, portanto, possuiriam esses atletas que têm a capacidade de superar as expectativas de analistas e alcançar níveis técnicos de atletas de elite? Se é certo que muitos fatores externos à vontade do indivíduo podem afetar a performance e o desenvolvimento do atleta, é igualmente verdadeiro que a capacidade de manter a busca do sucesso, mesmo quando adversidades parecem intransponíveis, vai determinar quais atletas são propensos a alcançar a glória profissional e justificar o investimento feito por equipes esportivas no seu desenvolvimento.
Equívocos na observação e seleção de jovens atletas são comuns, já que não existem ferramentas exatas para determinar com o avanço técnico a ser conquistado pelo indivíduo durante sua carreira profissional. Porém, os métodos de observação e escolhas de atletas de base aplicados hoje em dia na maioria das organizações esportivas deixam de levar em consideração certos aspectos úteis no contexto em tela e que não podem ser medidos com cronômetros, fitas métricas e outros tipos de análise de dados.
Quais são esses aspectos que diferenciam os atletas com capacidade de superar expectativas e atingir níveis técnicos de elite das promessas talentosas que fracassam no decorrer de suas carreiras profissionais?
A psicóloga americana Angela Duckworth, argumenta que “garra” é a característica pessoal indispensável para obter sucesso em qualquer domínio profissional. Duckworth define o termo como sendo “a perseverança e paixão por objetivos de longo prazo. Garra implica trabalhar arduamente para encarar desafios, mantendo esforço e interesse constantes durante anos, apesar de derrotas, adversidades e obstáculos que dificultam o progresso. O indivíduo de garra encara a conquista como uma maratona; a sua principal vantagem é a persistência. Enquanto decepções ou monotonia sinalizam a outros que é tempo de mudar a trajetória e limitar as perdas, o indivíduo de garra dá continuidade ao objetivo traçado”.[4] A teoria desenvolvida por Angela Duckworth resultou em três trabalhos de pesquisa em 2007, 2015 e em 2016 e um best-seller em 2017. Segundo a psicóloga, garra consegue prever sucesso em qualquer domínio profissional com mais precisão do que qualquer outro atributo, notadamente talento e experiência.
Citado por Angela Duckworth, Dan Chambliss, sociólogo norte-americano, passou 6 anos entrevistando e observando nadadores e técnicos de diversos níveis competitivos – de clubes locais a uma equipe formada por atletas olímpicos – para determinar exatamente o que significa ter talento e como o atributo influencia na performance dentro das piscinas. Chambliss, afirma que, talvez, “talento” seja a explicação mais superficial que exista para explicar o sucesso de um atleta. Ele observou que o sucesso advém de uma série de pequenos fatores que a maioria das pessoas podem realizar. Porém, indica que os nadadores mais bem-sucedidos geralmente possuem pais que demonstram interesse no esporte, têm fácil acesso a piscinas, dinheiro suficiente para contratar um bom técnico e, mais importante, passam milhares de horas praticando durante anos a fio para refinar os elementos individuais, cujo somatório criam o nadador perfeito[5].
Duckworth teoriza que, embora não seja falso que certas pessoas carregam a predisposição genética/psicológica que contribui para a excelência profissional, se enfatizarmos demais o talento, subestimamos todo o arcabouço de fatores que influenciam para que o indivíduo alcance níveis técnicos de elite. Assim, o talento natural corresponderia a apenas metade das qualidades necessária para atingir o sucesso. O esforço depreendido para conquistar determinado objetivo “vale o dobro” da caminhada. A psicóloga americana desenvolveu uma teoria representada pela função abaixo:
Talento x Esforço = Habilidade
Habilidade x Esforço = Sucesso[6]
Na equação acima, “talento” seria a rapidez com a qual as habilidades individuais são aprimoradas quando se investe em “esforço”. Por sua vez, o sucesso ocorreria quando as habilidades adquiridas são utilizadas com esforço. Isso quer dizer que, de nada adiantam as vantagens físicas e mentais naturais do atleta, se este não tem determinação de imprimir esforço, tanto para aprimorar suas habilidades, quanto para atingir nível técnico de um atleta de elite.
Qualquer tipo de esforço estaria associado à melhoria das habilidades técnicas e ao sucesso profissional? O psicólogo cognitivo Anders Ericsson afirma que não. Para ele, a “prática deliberada”, a atividade altamente estruturada que demanda esforço, cujas recompensas não são imediatas e que devem ser mantidas por um longo período para obter níveis de performance superiores, representa o “esforço” necessário para aprimorar habilidades e conquistar o status de elite profissional. Em famoso estudo sobre o tema, o psicólogo afirma que profissionais de elite praticam seus domínios de maneira deliberada para melhorar seus atributos técnicos. O segredo não está no número de horas dedicadas ao treino, mas no tipo de treinamento empregado com vistas a melhorar a performance individual. Para Ericsson, o expert concentra-se em melhorar fraquezas específicas e procura conquistar metas ainda não alcançadas.[7] Ao contrário de práticas de treinamento com as quais o atleta tem maior afinidade ou prazer em realizar, a prática deliberada demanda esforço extra do indivíduo. Exatamente por representar atividade não necessariamente prazerosa, de resultados não observáveis no curto prazo, o empenho constante em práticas deliberadas pressupõe capacidade de persistência em transpor obstáculos e manter intacto o objetivo traçado, apesar das dificuldades. Ericsson conclui que o volume de prática deliberada investido pelo atleta está associado com a excelência técnica alcançada pelo indivíduo.
Embora os estudos de Duckworth não estejam relacionados diretamente à prática de esporte, atletas de elite são reconhecidos como pessoas que, ao longo do tempo, dedicam-se incansavelmente para alcançar a glória esportiva. É fácil ter em mente grandes atletas de destaque que são reconhecidamente experts em seus esportes e cuja garra e dedicação ao treinamento são famosas. De LeBron James a Cristiano Ronaldo, passando pro Tom Brady e Roger Federer, atletas de destaque são descritos como incansáveis indivíduos com mentalidade vencedora e rotina de treinamentos impecáveis, o que, além de melhorar aspectos técnicos, prolongam o período de ápice desportivo.
Duas recentes pesquisas procuraram estabelecer um elo de ligação direta entre garra e performance esportiva. Na primeira delas, procurou-se entender a potencial influência desse traço de personalidade com o desenvolvimento de atletas.[8] Os pesquisadores procuraram estudar a relação da garra com a prática de atividade relacionadas ao futebol (treinamento e práticas não obrigatórias, como o tempo dedicado a assistir ao esporte e jogar partidas de rua) e habilidades cognitivas e de percepção do esporte. Paul Larkin, Donna O’Connor e A. Mark Williams reuniram 400 jovens jogadores entre 12 e 15 anos para a pesquisa. Os atletas preencheram um formulário elaborado por Duckworth para determinar o nível de garra de cada indivíduo e mantiveram diário no qual relatavam o engajamento em atividades ligadas ao futebol. Os atletas foram submetidos a testes, nos quais os estudiosos avaliaram aspectos de percepção e cognição específicos para o futebol. Os cientistas puderam comprovar que os atletas de melhor performance nos exames de percepção e cognição também demonstraram que passam mais horas praticando atividades relacionadas ao futebol e que cuja garra foi classificada como superior a dos demais companheiros. Os estudiosos concluíram que jovens atletas que possuem garra tendem a investir maior tempo em atividades diretamente ligadas ao futebol e, ainda, a trabalhar com maior intensidade em busca de seus objetivos esportivos do que companheiros nos quais esse traço de personalidade não é tão acentuado. Apesar da pesquisa classificá-los como “de elite”, a pouca idade dos atletas estudados não permite determinar com exatidão o papel da garra no desenvolvimento do atleta. Ademais, a pesquisa não levou em conta diferentes tipos de práticas deliberadas que são relacionadas ao acúmulo de expertise, como sugeriu Ericsson em sua pesquisa.[9]
O estudo mais recente reuniu 250 pessoas de várias modalidades esportivas (natação, hóquei sobre o gelo, tênis, atletismo e futebol) e diferentes idades (de 13 a 30 anos), classificados de acordo com o nível competitivo do atleta (local, municipal, regional, nacional e internacional). A pesquisa procurou desvendar exatamente a relação entre garra e prática deliberada, bem como a influência dessa relação no desenvolvimento do atleta de nível internacional. Os atletas que competem internacionalmente foram classificados como experts; os que participam em eventos nacionais, como avançados, e os demais como intermediários/básicos. Para fins da pesquisa, Rafael A. B. Tedesqui e Bradley W. Young utilizaram o conceito de prática deliberada (DP) de Ericsson e decidiram considerar a definição de garra proposto por Angela Duckwworth, em duas variáveis distintas: a) perseverança do esforço (PE) e b) constância de interesse (CI). Segundo Duckworth, CI sinaliza a direção, enquanto PE significa a duração dos esforços individuais para conquistar os objetivos delineados. Segundo os pesquisadores, seus achados corroboram as conclusões dos estudos sobre o relevante papel das variáveis da garra (PE e CI) no sucesso profissional dentro (Larkin et al., 2015) e fora (Duckworth et al., 2007, 2011) do escopo esportivo. O grau de PE está associado diretamente à quantidade de DP realizada pelo atleta. Tedesqui e Bradley identificaram que a perseverança está ligada não só a diferentes formas de prática (treinamento em equipe e treinamento sozinho), mas, também, ao contexto da prática (treino obrigatório e treino opcional). Isso significa dizer que atletas com maior grau de perseverança imprimem maior esforço para praticar atividades relacionadas ao esporte por iniciativa própria. Isso explicaria, em parte, porque atletas de nível internacional acumulam mais horas de DP do que aqueles que não alcançam o mesmo patamar competitivo. Em termos estatísticos, o estudo mostrou que os atletas classificados como experts e avançados possuem grau de PE significativamente maior que o evidenciado no grupo intermediário/básico. O fato explicaria a tese de que a capacidade de perseverar diante de desafios para conquistar objetivos de longo prazo recompensam aqueles que procuram atingir maiores níveis técnicos. Em relação à CI, a pesquisa teoriza que, apesar dessa variável não possuir indícios de conexão com a DP, atletas que demonstram ter garra tendem a manter o comprometimento com o esporte por longo tempo, ao contrário de indivíduos com baixa pontuação em CI, os quais são mais suscetíveis a desistir ou trocar de esportes.
Diversos outros fatores, porém, exercem acentuada influência no desenvolvimento do atleta, desde suas primeiras incursões no esporte até alcançar a glória profissional. Aspectos como a direta influência de pais, treinadores capacitados e, até mesmo, o ambiente no qual está inserido o atleta amador atuam na perseverança e na manutenção de interesse e são citados em todos os estudos mencionados como aspectos que podem fazer a diferença. Apesar de não encontrar estudos específicos que investiguem outros prismas do desenvolvimento técnico, o senso comum admite apontar o acesso a centros de treinamentos, à nutrição adequada e um ambiente familiar saudável como importantes referências para o amadurecimento profissional.
Hoje em dia, a maneira como a maioria dos clubes identifica e seleciona atletas para seus times, levando em consideração apenas fatores técnicos, ao observar, em apenas algumas horas, uma quantidade enorme de aspirantes, tem a mesma probabilidade de acertos de um jogo de dados, por exemplo. Organizações esportivas deveriam considerar alternativas mais abrangentes para selecionar e desenvolver atletas de base. O potencial de recompensas para os clubes é enorme. Dizer que as habilidades naturais para o futebol não importam na hora de selecionar o atleta na peneira seria impensável, porém, deve-se implementar ferramentas para identificar jogadores cujo potencial de desenvolvimento não pode ser medido em poucas horas de observação dentro de campo. Além de prevenir o desperdício de recursos investidos nas categorias de base para aprimorar o desportista ainda imaturo profissionalmente, qualquer instrumento que permita identificar com mais precisão o jogador com potencial de tornar-se bem-sucedido – ainda que a habilidade técnica não salte aos olhos em um primeiro momento – trará vantagens significativas ao clube dentro e fora de campo.
Assim, além da realização de testes para indicar o grau de “garra”, a manutenção de “diário futebolístico” pelos jogados de base no intuito de investigar o engajamento em atividades indiretas relacionadas ao futebol (peladas nas ruas em horas livres, tempo investido em assistir, discutir ou estudar o esporte) e o montante de treinamentos não obrigatório realizado no intuito de aprimorar aspectos técnicos devem ser encorajados por coordenadores de base nos clubes. O tempo investido nessas atividades, conforme os estudos citados, tem enorme influência na formação do atleta de elite.
No entanto, acredito que o formulário desenvolvido por Duckworth para identificar o grau de garra do indivíduo deve ser adaptado para a realidade do futebol e, principalmente, para a realidade social brasileira.
A pergunta que fica é: a garra representa uma característica nata do indivíduo ou há a possibilidade de ensiná-la ao atleta em desenvolvimento para que ascenda a níveis técnicos maiores? Embora a ciência ainda não tenha avançado significativamente na resposta da indagação, pode-se dizer, até com certa segurança, que a cultura inerente a determinadas equipes tem fortes efeitos nos traços de personalidade do atleta. Aqui, cultura pode ser definida como o conjunto de normas e valores que determinam comportamentos e decisões dentro de um grupo. É a maneira como – e por que – as coisas são feitas internamente no grupo. Citado por Duckworth, Dan Chabliss observou que, quando um nadador torna-se parte de uma equipe de garra, ele absorve os valores do grupo e passa a ter comportamento moldado pelas “normas internas” do time. Para o sociólogo, a tendência natural do ser humano em enquadrar-se a normas de grupo é prova de que é possível adquirir garra justamente por conta dos efeitos que a conformidade de grupo exerce sobre as pessoas. Ou seja, para adquirir esse traço de personalidade, basta que o atleta faça parte de uma equipe composta por indivíduos de garra.[10]
A influência da cultura na garra do atleta, no entanto, não está ligada somente aos efeitos de curto prazo da conformidade de grupo. Cultura é, na verdade, o guia que molda os valores de determinada pessoa e forma a base de nossa identidade individual em todos os aspectos. E cultura tem especial influência na garra. Os valores dos grupos acabam por se tornarem nossos valores, aqueles nos quais baseamos nossos comportamentos. Segundo Duckworth, os valores vão definir as decisões pessoais que determinam garra, como acordar cedo para treinar com os companheiros de equipe. Paixão e perseverança não surgiriam, portanto, de decisões baseadas em análises calculadas de custos e benefícios das nossas atitudes e, sim, da lógica representativa de nossas identidades. Quando agimos de acordo com os valores do grupo, pensamos na nossa identidade, em quem somos e no que faria uma pessoa como nós em situação semelhante.
Peter Carroll, técnico do Seattle Seahawks, afirma que ele busca, constantemente, incentivar em seus atletas a garra que ele acredita ser indispensável aos que trabalham sob seu comando. Em todas as equipes pela quais passou, Carroll procura implementar a cultura da garra, que, segundo ele, foi essencial para que suas equipes superassem os adversários por sete vezes na final nacional de futebol universitário com os Trojans da USC e na disputa do Super Bowl XLIX, com os Seahawks. O técnico relata que instiga seus jogados a serem grandes competidores, ensina-os a persistir nos objetivos e a deixar fluir suas aspirações. Fazer parte da equipe significa que a cultura Seahawk irá moldar o comportamento do grupo de tal forma que o jogador passará a ter atitudes condizentes com que se espera do atleta do time comandado por Carroll.
No entanto, a garra individual só trará benefícios a uma equipe se a técnica adquirida não mirar a glória individual. A cultura voltada para promover garra é primordial para moldar comportamentos de coletividade, porém não é suficiente para promover o sacrifício pessoal em nome da equipe. Outros valores de coletividade devem ser trabalhados para que os benefícios individuais da garra tragam resultados positivos dentro e fora de campo para a equipe. Fomentar valores de igualdade entre os atletas e de entrosamento pessoal (química coletiva) são indispensáveis nesse processo.
Ao fim, apesar de inúmeras pesquisas registrarem a importância de qualidades não cognitivas (garra, pensamento voltado para aprimoramento individual, autocontrole etc) para alcançar expertise, não se deve utilizá-los como elementos únicos para prever sucesso profissional a longo prazo. De nada adianta a garra do jovem amador se outros instrumentos de desenvolvimento não estejam presentes, como nutrição, apoio familiar e de treinadores, acesso a instalações técnicas de qualidade, atendimento médico compatível com a prática do esporte etc.). Ademais, uma vez adquirida a habilidade técnica objetivada pela garra, no futebol, é indispensável que o ambiente no qual o jovem esteja inserido priorize outros valores que vão colocar o talento individual em prol do coletivo. Não existe glória individual no futebol.
[1] Nietzsche, F., Hollingdale, R. J., & Schacht, R. (1996). Nietzsche: “Human, All Too Human”: “A Book for Free Spirits.”Cambridge: Cambridge University Press. Tradução livre do autor do artigo.
[2] HUGHES, D. (2019). BARCELONA WAY: How to create a high-performance culture. S.l.: MACMILLAN.
[3] https://pudding.cool/2017/03/redraft/
[4] Journal of Personality and Social Psychology 92(6):1087-101 · Julho 2007. Texto original: We define grit as perseverance and passion for long-term goals. Grit entails working strenuously toward challenges, maintaining effort and interest over years despite failure, adversity, and plateaus in progress. The gritty individual approaches achievement as a marathon; his or her advantage is stamina. Whereas disappointment or boredom signals to others that it is time to change trajectory and cut losses, the gritty individual stays the course.
[5] Duckworth, A. (2017). Grit: The power of passion and perseverance. New York: Scribner.
[6] Duckworth, A. (2017). Grit: The power of passion and perseverance. New York: Scribner.
[7] Ericsson, Karl & Krampe, Ralf & Tesch-Roemer, Clemens. (1993). The Role of Deliberate Practice in the Acquisition of Expert Performance. Psychological Review. 100. 363-406. 10.1037//0033-295X.100.3.363.
[8] Paul Larkin, Donna O’Connor & A. Mark Williams (2015): Does Grit Influence Sport-Specific
Engagement and Perceptual-Cognitive Expertise in Elite Youth Soccer?, Journal of Applied Sport Psychology, DOI:
10.1080/10413200.2015.1085922
[9] Ericsson, Karl & Krampe, Ralf & Tesch-Roemer, Clemens. (1993). The Role of Deliberate Practice in the Acquisition of Expert Performance. Psychological Review. 100. 363-406. 10.1037//0033-295X.100.3.363.
[10] Ob. Cit.
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Fabio Araujo é vice-cônsul do Consulado Geral do Brasil em Santa Cruz de la Sierra, mestre em Gestão Esportiva pela Columbia University (EUA), mestre em Direito Esportivo Internacional pelo Instituto Superior de Derecho y Economía (ESP).