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Tempos que não voltam? Parte 1: Mundo Árabe e África

Nos últimos anos, a ordem do futebol tradicional foi desafiada. A lógica que antes apontava para jogadores de qualidade, equipes imbatíveis e duelos previsíveis em competições internacionais para somente poucos centros passou a ser quebrada com uma certa frequência. O que era raro, virou usual. Afinal, como podemos explicar essa mudança de paradigma?

A última surpresa foi a eliminação de um clube no Mundial que, recentemente, é hegemônico na América do Sul com 3 finais continentais e inúmeros títulos nacionais e internacionais, para um time da Arábia Saudita. O que era inimaginável, seguindo automaticamente um roteiro para europeus e sul-americanos, vem ocorrendo normalmente.

O exemplo do Flamengo, derrotado diante do Al Hilal, foi replicado diversas vezes somente nos últimos 10 anos. O Internacional (Mazembe – Congo), Atlético Mineiro (Raja Casablanca- Marrocos), River Plate (Al Ain – Emirados Árabes) e Palmeiras (Tigres – México) demonstram há vida fora do eixo tradicional em que o futebol se acostumou a se mover.

Além disso, no âmbito das seleções, a Copa do Mundo do Catar nos trouxe várias surpresas, como, por exemplo, Marrocos eliminando seleções favoritas e, pela primeira vez, uma seleção africana chegou em uma semifinal. Brasil perdeu para Camarões, a campeã Argentina perdeu para a Arábia Saudita, Gana classificou em um grupo no lugar do Uruguai, Japão classificou em primeiro em uma chave com Espanha e Alemanha. Itália, atual campeã europeia e tetracampeã mundial, já não participa de uma Copa do Mundo desde 2014.

Com efeito, podemos explicar parte desse fenômeno através da globalização, inevitável na sociedade, devido a diminuição das fronteiras, crescimento dos fluxos migratórios e da relação entre pessoas de diferentes origens, o que traz resultados também dentro de campo, com jogadores com múltiplas nacionalidades. O que era segredo, genética, história e cultura de um país ou de um povo passou a ter um pedaço e uma parcela em outro povo, em outro país, disseminando, assim, o talento. Isso inclui o futebol.

Evidentemente, no movimento do esporte, como também no Direito Público, podemos citar mudanças que estreitaram ainda mais as fronteiras entre países e continentes. Nesse contexto, a apreciação do caso Jean-Marc Bosman[1], antigo futebolista belga em face do seu anterior clube, o RFC Liége, além da Federação Belga e da UEFA, é imprescindível.

Naquela época, o regulamento belga e o da UEFA consideravam estrangeiros os jogadores nascidos em outro membro da União Europeia, como também impunham uma limitação ao número de futebolistas estrangeiros. Outrossim, permitiam que houvesse o direito de retenção. Em outras palavras, obrigavam o pagamento de uma compensação financeira, por parte do novo clube, ao antigo clube, mesmo que o contrato entre este último e o atleta tivesse expirado, para que se pudesse liberar o futebolista.

O jogador, com proposta para atuar em um clube francês, que acabou não se concretizando devido ao alto e desproporcional valor fixado pela equipe belga para sua liberação, alegando violação ao artigo 48 do Tratado de Roma[2], que dispunha sobre a livre circulação de trabalhadores no território europeu, resolveu buscar seus direitos através da prestação jurisdicional.

Ato contínuo, depois de uma longa batalha jurídica, o caso chegou ao Tribunal Europeu, que reconheceu o direito do jogador. A decisão estabeleceu que um futebolista tem de ser encarado como um trabalhador comum, pelo que, uma vez terminado o seu contrato, cessam as suas obrigações jurídicas e deverá ficar livre para assinar por outra equipe, declarando ilegal a compensação financeira ao antigo clube, até então permitida pela normativa. Ademais, impôs fim ao limite à inscrição de jogadores comunitários em competições realizadas dentro da União Europeia.

Essa decisão ficou marcada como a libertação dos futebolistas e teve repercussões mundiais, dando azo ao boom do mercado de jogadores. Com isso, a FIFA e UEFA uniram esforços para chegar a um acordo com as autoridades europeias sobre um sistema de transferências internacionais, que pudesse estabilizar as relações entre jogadores e clubes, especialmente sob o ponto de vista contratual e que, ao mesmo tempo, pudesse proteger os clubes formadores, celeiros de grandes desportistas.

Finalmente, em 2001, houve a criação do Regulamento sobre o Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTP), documento fundamental e aprimorado até os dias de hoje, que trouxe diversas inovações, como, por exemplo, a criação do mecanismo de solidariedade, da indenização por formação e regras para a proteção dos atletas menores.

Do mesmo modo, através da normativa pública também foram criadas algumas exceções aos estrangeiros, mesmo aqueles que não eram considerados cidadãos europeus. Nessa esteira, podemos citar o Tratado de Cotonu[3], acordo de parceria que regeu as relações entre União Europeia UE com os 79 países da África, das Caribe e do Pacífico (ACP) e ficou válido até meados de 2021.

O acordo visava reforçar a capacidade da UE e dos países ACP para responderem em conjunto aos desafios mundiais, como, por exemplo: a democracia e os direitos humanos, o desenvolvimento e crescimento econômico sustentável, as alterações climáticas, o desenvolvimento humano e social, a paz e a segurança e, por último, a migração e a mobilidade.

Igualmente, outros acordos internacionais foram celebrados, como o de Argélia com a União Europeia[4], em que podemos destacar um trecho interessante contido no artigo 67, contraindo a seguinte obrigação: cada Estado-Membro deveria conceder aos trabalhadores de nacionalidade argelina empregados no seu território um regime caracterizado pela ausência de qualquer forma de discriminação em relação aos seus próprios nacionais, em razão da nacionalidade no que diz respeito às condições de trabalho, remuneração e despedimento.

Sendo assim, com base nesses dois acordos celebrados, diversos jogadores africanos, seja por solicitação dos clubes junto às Ligas/Federações ou mediante decisões judiciais, passaram a não ser contabilizados a título de estrangeiros nos elencos das equipes. Essa troca de cultura, experiência, tática e técnica de jogadores atuando nas principais ligas da Europa, foi fundamental para o desenvolvimento do esporte em lugares até então pouco conhecidos ou explorados pelo mundo da bola.

Ademais, houve um intercâmbio inverso bem importante, pois nem todos os jogadores africanos ou árabes possuíam, naquela época, condições técnicas para atuar em um grande nível no Velho Continente. Para tanto, diversos treinadores estrangeiros, incluindo brasileiros, fizeram parte da construção de um modelo de futebol local.

Some-se a isso, o fato de o lugar ser atrativo economicamente para os atletas que, interessados pelos altos salários, rumavam em busca de sua independência financeira, uma vez que a maioria dos clubes brasileiros se encontrava em sérias dificuldades financeiras e rotineiros atrasos de salário.

Enfrentado o modelo histórico e o arcabouço de fatos jurídicos que ensejaram o desenvolvimento dos pequenos centros, o que justifica a maior quantidade, qualidade, e, consequentemente, a competitividade de jogadores, clubes e seleções de países sem tradição futebolística, passamos a análise de mercado. Ainda temos a hegemonia econômica que nos obriga a sustentar toda aquela diferença de outrora? O futebol é feito, acima de tudo, com receitas e potencial para investimento.

Uma das maiores referências da área de negócios do futebol, Rodrigo Capello[5] trouxe dados muito importantes para analisar que essa diferença não existe mais no plano econômico. A Primeira divisão Saudita teve R$ 3,9 bilhões em faturamento no ano fiscal encerrado em 30 de junho de 2022. O Al Ahli, um dos mais tradicionais e ricos, foi o único dos 16 integrantes da elite a não publicar seus números. Com este clube, sem dúvidas, a somatória seria maior e passaria facilmente dos R$ 4 bilhões.

Sem embargo, a competição é marcada por profunda desigualdade financeira entre os clubes. Enquanto o Al Hilal se aproxima de R$ 1 bilhão em faturamento, chegando próximo a Palmeiras e Flamengo (clubes que mais arrecadam no Brasil) e superando outros gigantes brasileiros, a maioria dos árabes opera com arrecadações inferiores a R$ 170 milhões por ano. Em termos de comparação, a primeira divisão brasileira costuma arrecadar em torno de 7 bilhões ao ano.

Por sua vez, enquanto a maioria dos recursos dos clubes brasileiros vem com a venda dos direitos de transmissão, patrocínio e venda de direitos econômicos dos atletas, na Arábia Saudita, os clubes contam com um forte suporte estatal, que financia a atividade, além dos contratos de patrocínio, muito das vezes disfarçado de investimentos dos próprios proprietários.

Contudo, o principal ativo desse Campeonato, acaba de chegar: Cristiano Ronaldo. Como é sabido, seu nome promete alavancar as receitas do Campeonato e do próprio clube, trazendo mais público, audiência, venda de produtos, seguidores e patrocínios, assim como foi feito em todos os clubes ao longo de sua vitoriosa carreira.

Outros números bastante significativos são aqueles apresentados pela FIFA, retratando o mercado das transferências internacionais, através do relatório do TMS (Transfer Matching System), uma plataforma para armazenamento de dados das transferências internacionais de jogadores de futebol.

No relatório que retratou o ano de 2022[6], Confederação Africana de Futebol (CAF) exportou 2.698 jogadores, sendo 759 para Europa, enquanto Confederação Asiática de Futebol (AFC) exportou 1.885, sendo 505 para Europa, e importou 2.532 jogadores, sendo 751 da Europa, gastando 148,8 milhões de dólares (92,2 milhões entrando nos cofres europeus).

A Conmebol, ainda possui hegemonia em valores recebidos (620 milhões, quase 5 vezes o valor da AFC e CAF) e jogadores exportados (3.003, sendo 901 para Europa). Por outro lado, a Conmebol importou 2.584 jogadores, sendo 689 da UEFA. No entanto, os valores gastos em transferência, se aproximam bastante aos da AFC, 192,9 milhões, sendo 74 milhões pagos aos europeus.

Desses números, podemos extrair as seguintes percepções do mercado: i) que o continente africano transfere muitos jogadores, com valor total baixo, ao mercado europeu, fruto de campeonatos e moedas pouco valorizados; ii) os Asiáticos compram e gastam com mais jogadores vindo da Europa, bem como tem um perfil pouco exportador; iii) Os clubes sul-americanos gastam mais com os próprios sul-americanos, em detrimento dos europeus. iv) os jogadores vindos dos países da Conmebol ainda são mais valorizados do que os advindos da AFC e CAF.

Partindo para o mercado específico dos clubes, 5 clubes da Arábia Saudita estão entre os que mais gastaram em transferências internacionais no futebol masculino em seu continente. Os gastos internacionais beiram os 50 milhões de dólares, recebendo 7,3 milhões por cessões onerosas de direitos econômicos. Por seu turno, no Brasil gastou 107,9 milhões de dólares, o dobro dos sauditas, e recebeu 267,2 milhões.

Diante disso, se conclui que o mercado e o jogadores brasileiros ainda são mais atrativos e valorizados. O campeonato, como produto, ainda é mais equilibrado e valorizado do que os desses outros centros. Todavia, a capacidade de investimentos de certos clubes desses mercados se equiparou ou ultrapassa a maioria dos clubes no Brasil, maior centro da América do Sul.

O desafio dos árabes é tornar seu mercado mais autossustentável, menos dependente dos petrodólares e dos investimentos estatais, internacionalizando o campeonato, atraindo o público e grandes marcas. Já provaram ser capazes de evoluir o futebol local, que, em 2006, perdia com uma goleada histórica para a Alemanha em um Mundial. Hoje, ganham da campeã do mundo e, no âmbito dos clubes, de um dos maiores da América no momento.

Por fim, é inevitável a constatação de que a ordem do futebol foi desafiada. Podemos retornar ao status quo? Cabe aos clubes alavancarem suas receitas e aumentar a qualidade dos seus elencos, exprimindo todo o potencial do futebol brasileiro. A frase não tem mais bobo no futebol nunca fez tanto sentido, mas o correto deveria ser: não pode existir mais bobo no futebol. Tempos que não voltam? O próximo capítulo da série tratará da MLS, a liga em extrema ascensão.

Crédito imagem: Al Hilal

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[1] Caso Bosman – showPdf.jsf (europa.eu) – última consulta: 15.02.2023

[2] Tratado de Roma: TRATTATO che istituisce la Comunità Economica Europea e documenti allegati (europa.eu) – última consulta: 15.02.2023

[3] Acordo de Cotonu – Consilium (europa.eu) – última consulta: 15.02.2023

[4] EUR-Lex – 32005D0690 – EN – EUR-Lex (europa.eu) – última consulta: 15.02.2023

[5] De onde vem o dinheiro do futebol saudita? Entenda o negócio da liga que já fatura R$ 4 bilhões | negócios do esporte | ge (globo.com) – última consulta: 15.02.2023

[6] Relatório TMS 2022 – FIFA-Global-Transfer-Report-2022.pdf – última consulta: 15.02.2023

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