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Tendão de Aquiles

O estalo aconteceu no campo, mas ouviu até quem andava do outro lado da rua, no bairro de onde ficava o centro de treinamento do clube. Primeiro, veio correndo o supervisor, que naquele dia passava mais de horas pintava e repintava os muros que davam pra calçada, e que a torcida tinha pichado de cima abaixo depois de uma rodada de derrota.

Quando ouviu o barulho, largou a lata de tinta, esqueceu os impropérios metade escritos e metade apagados, e correu até a beira do gramado, pra ver o que tinha acontecido. Lá de longe, mais parecendo uma minhoca, o sujeito estirado no chão, gritando de dor.

Parece exagero, mas quem já presenciou o rompimento de um tendão sabe do que eu estou falando. Parece um tiro de pólvora, o barulho que resulta da separação daqueles filamentozinhos que calçam o pé. Localizado na parte posterior da perna, o tendão de Aquiles tem como função conectar os músculos da panturrilha com o calcanhar, mas, apesar da importância, um só se dá conta da sua existência quando algo vai mal. Ali, algo ia muito mal.

Depois de muito perguntar o que aconteceu pra resultar em tamanha tragédia, e receber resposta nenhuma que não fossem os resmungos agonizantes do sujeito estropiado, chamaram o doutor.

O que tinha sucedido? Perguntaram. Em alguns minutos de investigação, e finalmente com a colaboração do acidentado, veio o veredito: acontecer, acontecer, não tinha acontecido nada. O jogador vinha correndo devagarinho com a bola, e de repente já estava no chão. “Foi a gota d’água”. Disse o homem do jaleco – que nessa ocasião usava só o agasalho do clube, já que jaleco é coisa de hospital e em CT ninguém quer clima de hospital.

“O tendão se rompeu”. Mas sozinho? Perguntaram. Que jogador sofre falta dura em campo que às vezes resulta em dois meses de departamento médico, todo mundo já sabia. Mas cair sozinho!? “Isso é coisa do esporte”, continuou o médico. E completou, com ar de quem sabe do que estava falando. “O corpo é igual a um copo d’água, e o que a gente faz treino após treino, jogo após jogo, é ir enchendo ele até a boca. Se encher demais, o caldo entorna, e o resultado é esse aí. Tem gente que chama de ‘lesão por estresse’”.

Mas não dá pra fazer nada!? O supervisor já indicava querer buscar um culpado pro ocorrido. Era só o que faltava, ver atleta caindo duro de fadiga sem poder ajudar o time em campo. “Dar, dá”. O médico agora parecia ter encontrado a chance de se consagrar. “Aqui no clube mesmo, a gente queria reformular as coisas. Melhorar a periodização e diminuir o volume do trabalho físico. Deixar mais inteligente. Dar menos treino, respeitar o repouso, mapear a necessidade de cada um”. E emendava: “Tudo muito bom no livro, e na ideia. Mas na prática…”.

O resto, não foi preciso nem falar. O supervisor já sabia. Primeiro, tinha o problema do calendário. Como dar folga se era jogo, jogo, jogo, jogo? Segundo, se o time vinha de derrota, como é que o presidente ia explicar isso pra torcida? O rival treinando, e o clube dando repouso pra jogador? E mais. Isso tudo sem contar que na comissão que decidia a programação da semana, tinha gente que ainda mandava muito (mas sabia pouco), e que apesar de não estudar mais, não acreditava nessas coisas que a modernidade tinha trazido. Pro conhecedor do futebol raiz, o jogador tem que treinar e aguentar. Se acontecesse da água entornar, vinha outro no lugar.

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