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Tic-Tac

Por Cáscio Cardoso

No início do mês de julho uma manifestação conjunta de atletas profissionais de futebol das principais divisões nacionais do Brasil chamou a atenção. Em protesto contra mudanças na Lei Geral do Esporte, por entenderem que perderam direitos trabalhistas com o novo texto, os jogadores, unidos, ficaram por quase um minuto paralisados dentro de campo, com uma das mãos levadas à boca, logo após o árbitro do jogo dar início à partida. Todos se mantiveram em seus lugares iniciais e a bola sequer foi tocada. Parecia um minuto de silêncio, mas era quase um minuto de protesto. Aqui, não vou me aprofundar no debate sobre as reivindicações dos jogadores que motivaram esses episódios, e sim destacar que alguma coisa os fizeram agir em conjunto e em absoluta consonância. No caso específico do protesto, essa coisa foi um risco ao próprio bolso. Corta cena, diretor.

A violência associada ao futebol no Brasil não é algo novo. Eu tinha apenas 14 anos quando assisti pela TV, em um campeonato de divisão de base, torcedores de São Paulo e Palmeiras transformarem o gramado do saudoso Pacaembu em um campo de batalha. Armados com pedras, paus, pedaços de materiais de construção, provocaram a morte de uma pessoa e ferimentos em centenas. Lembro de uma oportunidade em que parte da torcida do Vasco em São Januário espremeu a torcida do Santos na área reservada aos visitantes. Lembro de parte da torcida do Bahia surpreendendo a torcida do Fluminense, na Fonte Nova, invadindo o setor destinado aos visitantes pelos corredores do estádio. E assim, pelo Brasil todo, envolvendo torcedores de praticamente todos os clubes, cenas de violência se acumularam nos últimos anos. Eventos violentos que acontecem também fora dos estádios, nas ruas, estações de metrô, de transbordo, bairros, em encontros que são, inclusive, programados nas agendas das redes sociais.  No último domingo, dia 17, um grupo de torcedores com camisa da organizada do Vitória espancou um cidadão que passava na região do Barradão com uma camisa azul e branca (cores que lembravam a do time adversário do dia, Paysandu). O cidadão só não morreu porque estava de capacete. Sua moto foi destruída e ele ficou escoriado, salvo por duas mulheres que o abrigaram abrindo a porta de sua casa. Detalhe sórdido: o cidadão, de nome Reinaldo, torce (já não sei se o tempo verbal é correto) para o Vitória. A camisa que ele vestia, exibida como troféu pelos irracionais que o agrediram, era de uma torcida de uma seleção municipal da cidade de Itamaraju. Nenhuma relação com futebol profissional e clubes tradicionais.

Como o futebol vem reagindo a essa violência entre torcedores? Com medidas ineficazes. Aplicando punições e fabricando os vilões sem rosto, como signos, faixas e bandeiras e deixando os indivíduos responsáveis pelas mortes e ferimentos absurdos circulando livremente nos eventos esportivos, de forma periférica ou não. Enquanto o CPF continua limpo, o CNPJ que abrange centenas e até milhares de pessoas, é, convenientemente, responsabilizado. O exemplo clássico é o das restrições e até extinções impostas a algumas torcidas organizadas. Camisas, nomes, símbolos são impedidos de entrar nos estádios. Os indivíduos, não.

Em conjunto, federações, alguns clubes e autoridades civis concordaram com a brilhante ideia (desculpe a ironia) de implementar a torcida única, não só em clássicos, como também em jogos interestaduais de times com muita torcida, a exemplo de Palmeiras x Flamengo, para tentar diminuir os episódios de violência, usando a lógica de que se “você não sai de casa, o risco de ser roubado é menor, então, não saia de casa.”. O lema dessa decisão deveria ser: “Para o torcedor não morrer, que morra o futebol.”

A medida, sem surpresa, se mostra ineficaz. E a violência continua presente no dia-a-dia dos jogos. Pior, em franca evolução.

A falta de medidas mais eficazes contra atitudes agressivas no futebol vem estimulando as pessoas violentas a testarem os limites da complacência do ecossistema do futebol, até porque os limites da impunidade no Brasil, de maneira ampla, se mostram elastecidos não é de hoje. Pois bem. Se antes, se matava a paus, pedras, tiros e socos torcedores, sejam eles violentos ou pacíficos, os alvos agora passaram a ser, também, os próprios atores do espetáculo. Me apegando apenas a situações recentes, que são devastadoras, sobe trilha, é hora do clipe:

Em 2021, parte da torcida do Grêmio invadiu o gramado da Arena Grêmio, contra o Palmeiras, e promoveu uma correria desesperada de jogadores e profissionais de imprensa rumo a um lugar protegido. Fotógrafos e repórteres foram agredidos, tiveram equipamentos danificados. A cabine do VAR no campo foi destruída. Os alvos eram os atletas. Em janeiro, um torcedor armado com uma faca invadiu o campo em um jogo da Copa São Paulo, entre São Paulo e Palmeiras, tentando agredir um jogador do Palmeiras. Em fevereiro, uma bomba, arremessada por pessoas ligadas a uma torcida organizada do Bahia, explodiu dentro do ônibus do clube, quase cegando o goleiro Danilo Fernandes, que ficou fora de ação por dois meses. Outros jogadores se feriram, tudo isso antes de um jogo contra o Sampaio Corrêa na Fonte Nova. O jogo aconteceu. Na sequência de eventos, um ônibus do Grêmio foi atingido por uma pedra arremessada por um torcedor do Internacional. A pedra acertou a cabeça do jogador Villasanti, que precisou ser hospitalizado. Jogadores do Botafogo que se recuperavam de lesões foram surpreendidos dentro do departamento médico do próprio clube por membros de uma torcida organizada que foram fazer “cobranças fortes” pela falta de desempenho do time. (A gente tem noção do absurdo que é essa frase anterior?). Jogadores do Flamengo foram recepcionados com violência por um grupo de torcedores na porta do CT do clube, a ponto de alguns terem seus carros danificados pela forma truculenta dos torcedores se manifestarem. Zé Ricardo, então técnico do Vasco, foi violentamente ameaçado por alguns torcedores no aeroporto do Rio. Atletas do Fortaleza também passaram por uma situação assim. O zagueiro Marcelo Benevenuto, do clube cearense, foi cercado e teve que “dar explicações”, sob risco de apanhar, antes de embarcar num ônibus do clube. Em julho, após um clássico pela Copa do Brasil, na Vila Belmiro, o goleiro Cássio, do Corinthians, foi atacado pelas costas por um torcedor do Santos, que invadiu o gramado após a eliminação do clube e tentou dar uma voadora no goleiro do time rival. São inúmeros eventos violentos, que, caso fossem listados aqui, transformariam este texto em série de streaming de muitos capítulos. Uma série dramática.

Evidentemente, não espero que o futebol faça as vezes das autoridades responsáveis pela segurança pública, nem pela aplicação das leis e normas previstas na Constituição. Sei que vivemos em uma sociedade violenta e que o futebol precisa respeitar as decisões judiciais na esfera civil, mas eu não posso desconsiderar que alguns atores do esporte acabam contribuindo com essa impunidade que também marca o ambiente esportivo. A falta de mecanismos previstos tanto em clubes, federações e as próprias organizadas, para punir e impor restrições, individualmente, a figuras violentas, colocam o futebol como co-responsável pelo quadro. O Vasco chegou, recentemente, a divulgar uma ação do clube nas redes sociais com a foto de um torcedor acusado de agredir um outro jovem, torcedor do Fluminense que até hoje tem sequelas do episódio violento. O Vasco não tinha isso catalogado? Provavelmente não. Nem sabia, nem fazia ideia. E promoveu o cidadão. Apagou a postagem depois.

Por essas e outras que penso que os clubes e entidades esportivas também “sentam no pudim” e assistem tudo isso lavando as mãos e botando a responsabilidade no poder público, quando poderiam criar seus procedimentos específicos mais rigorosos, seus regulamentos, aprimorar a punição individual, mesmo que fosse ainda meramente esportiva. Não tem fórmula pronta, não penso que seja simples. Existem possibilidades como reconhecimento facial e restrição de acesso a estádios, exclusão de quadro de sócios, rigor no acesso a centros de treinamento, revisão de relação institucional com organizadas, por exemplo, mas não é a falta de uma solução pronta que mais me incomoda no momento, e sim a sensação de tudo está seguindo um curso normal, quando, evidentemente, não está normal. Não pode ser normal. É a falta de um estímulo, um movimento para tentar dar um freio de arrumação nessa situação que causa espanto. A falta de debates promovidos pelos responsáveis pelo futebol para encontrar soluções mais eficientes. O que vivemos hoje é um tic-tac para uma tragédia envolvendo um jogador, dirigente, árbitro ou profissional de imprensa. Para somarmos mais uma morte ao hall de perdas, só que com um holofote maior.

Por isso, volto ao início do texto: se dirigentes e players de fora do campo do futebol não conseguem dar uma solução, os jogadores precisam gritar. Se unir, como fizeram contra o texto novo da Lei Geral do Esporte, para cobrar providências de clubes e federações, para provocar a discussão e deixar claro que a escalada da violência não pode ser considerada normal. Os atletas são os principais atores desse espetáculo. E correm muito risco. Eles podem provocar o debate, podem fazer o assunto ir para a superfície e  ser discutido como prioridade. Se eles param, o futebol para. O dinheiro para de circular. E eles bem sabem que quando envolve prejuízos financeiros, as pessoas “se movem para resolver.” Enquanto isso, os dirigentes talvez não enxerguem o perigo para o próprio futebol em um ambiente concorrido como é o ecossistema do entretenimento. Eu, particularmente, tenho me perguntado se devo estimular meus filhos, ainda crianças, a viver essa paixão futebolística e esse ambiente violento. Como está hoje, está claro para mim que não vale a pena. Talvez outros pais e mães pensem o mesmo. Os próprios jovens pensem o mesmo. O futebol como um todo também corre um sério risco de perder engajamento e interesse como indústria em um futuro próximo se não tomar suas providências. O futebol também pode ser ferido de morte.

Crédito imagem: VAN CAMPOS/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

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Cáscio Cardoso é apresentador e comentarista esportivo da TV Aratu (SBT), da Rádio Sociedade da Bahia, do Podcast 45 Minutos e do Futebol S/A. Acredita em um futebol melhor a partir do aprofundamento das ideias e do equilíbrio na relação entre paixão e razão na condução do esporte mais encantador do mundo. É sócio do Futebol S/A.

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