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TMS 10 anos parte 1: O abuso do uso das transferências temporárias pelos clubes

No ano de 2010, após amplos debates no meio desportivo, a FIFA implementou seu sistema de transferências (Transfer Matching System – TMS), uma plataforma para armazenamento de dados das transferências internacionais de jogadores de futebol. Naquele momento, a entidade máxima do futebol buscava aumentar a transparência e a credibilidade, ajudando na proteção dos jogadores menores de idade e garantindo que ela dispusesse de mais informações sobre todas as transações internacionais.

Com 10 anos de seu aperfeiçoamento e uso exponencial pelos membros do esporte, a entidade suíça emitiu um relatório completo[1], com detalhes sobre o mercado do futebol durante todo esse período. Começarei a escrever uma série de artigos com os principais destaques desse importante documento e as discussões jurídicas envolvidas. O primeiro tema escolhido é o abuso do uso das transferências temporárias (empréstimos) por alguns clubes.

Com efeito, em 2011, a porcentagem de cessões temporárias de jogadores em relação ao restante das operações era de 13,5%, superior ao de cessões permanentes, e, atualmente, motivado pela crise econômica gerada pela pandemia, saltou para 17,8%. Destaca-se que, entre os jogadores com menos de 24 anos, chega a representar 21,6% das transferências internacionais.

Em números gerais, a quantidade de jogadores transferidos de maneira temporária saiu de 1.488, em 2011, para 2.763, em 2020. Sobre a natureza das cessões: 68,2% foram feitas de modo gratuito e 31,8% de modo oneroso. Contudo, essa estatística ganha ainda mais relevância quando aplicada a uma certa lista de clubes.

Nesse sentido, entre os 30 clubes que mais liberaram jogadores em cessões temporárias, estão presentes equipes como Manchester City Football Club, Udinese Calcio, Watford Football Club, Granada Club de Fútbol, Chelsea Football Club, entre outros.

Por outro lado, o único clube nesse rol que não pertence a primeira divisão das federações nacionais de futebol é o Tombense FC, de Minas Gerais, que joga a terceira divisão. Ao longo desses 10 anos, foram exatamente 73 empréstimos. Em 2019, o clube chegou a ter 38 jogadores cedidos temporariamente para outros equipes, do Brasil e do exterior.[2]

Ainda sobre a lista apresentada no relatório, o que esses clubes europeus têm em comum, além de alto poder aquisitivo, é que a maioria pertence à conglomerados detentores de diversos clubes (multi-club ownership), como, por exemplo, o City Football Club, a Red Bull e a família Pozzo.

Essa nova modalidade de clubes vem crescendo muito[3]. Nos últimos 5 anos, nas 15 principais ligas do continente europeu, o número saiu de 20 para 40 clubes. Para entender um pouco mais desse fenômeno, é necessário voltar ao ano de 2015, para a introdução do artigo 18ter ao Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[4], que proibiu a propriedade de direitos econômicos dos jogadores por terceiros, conceito em que se enquadram os grandes empresários e os fundos de investimento.

Na prática, a FIFA acreditava que essa medida permitiria que os terceiros passassem a investir mais nos clubes, revestidos de uma estrutura societária favorável, o que, segundo a entidade, aumentaria a transparência e manteria a integridade do esporte, uma vez que reduziria a influência de terceiros e o conflito de interesses, evitando-se, assim, uma possível manipulação de resultados.

Uma parte da previsão se mostrou acertada e os terceiros passaram a investir diretamente na aquisição de clubes, expandindo-se e criando um negócio muito lucrativo, com equipes em diversos continentes. Ocorre que, entretanto, a FIFA não alcançou o objetivo desejado no que diz respeito ao aumento de transparência, redução da influência e dos conflitos de interesses.

Isso porque, os terceiros se valeram da estrutura societária dos clubes para manter a propriedade dos direitos econômicos dos jogadores, de modo que continuassem a obter lucro. Para tanto, foi criado um sistema complexo, com diversos mecanismos, entre eles, o uso excessivo das cessões temporárias.

Os jogadores eram adquiridos e rapidamente cedidos, de maneira temporária, a outro clube pertencente ao mesmo grupo, já que, em um primeiro momento, não encontrariam espaço no elenco principal. É bastante comum que, sem sequer ter jogado pela equipe mais importante do conglomerado, o futebolista seja revendido a um outro time interessado, não pertencente ao mesmo grupo.

A operação é bastante simples e normalmente é replicada por todos. Cada conglomerado possui seu clube principal, que é “alimentado” por equipes de um nível inferior, de uma liga menos competitiva, onde o jogador, geralmente um jovem, tem a tranquilidade e o tempo necessário para amadurecer, se adaptar e se desenvolver, sem a exigência dos grandes mercados/clubes.

Uma vez estabelecido o conceito dos conglomerados de clubes e seu modus operandi, retorna-se, então, ao cerne da discussão jurídica deste artigo. Esses conglomerados de clubes vêm fazendo uma reserva de mercado, comumente com jovens promissores, com menos de 24 anos, para garantir com que esses jogadores possam se valorizar e gerar lucro, abusando do uso das cessões temporárias.

Um profundo estudo sobre as transferências dessa natureza somente entre as cinco principais ligas europeias na última década, realizado pelo CIES Football Observatory Monthly Report[5], em 2019, trouxe dados muito relevantes para analisar como essa figura jurídica vem sendo utilizada.

A investigação apontou que a Udinese Calcio, da família Pozzo, foi o clube que mais cedeu jogadores para equipes das 5 grandes ligas na última década, com 62 jogadores, entre eles, 20 jogadores ao Granada (maior cifra europeia), que, até então, pertencia ao mesmo proprietário.

Igualmente, a Udinese recebeu 6 jogadores do Watford, que também pertence ao mesmo grupo. O Manchester City também é um dos líderes nas transferências temporárias, com 41 cessões, entre elas, 6 jogadores ao Girona, do mesmo conglomerado. Atlético de Madrid (35), Mônaco (33), Internazionale de Milano (53) – todos clubes multipropriedade – e o Chelsea (57) também estiveram em evidência. A propósito, em 2018, o Chelsea chegou a manter 40 jogadores cedidos temporariamente a outros clubes ao redor do mundo.[6]

Nesse contexto, diante da impossibilidade de contar com todos os futebolistas ao mesmo tempo, é evidente que o clube comprador, futuro clube cedente, não possui finalidade desportiva em todos os jogadores adquiridos. Sendo assim, o objetivo é que eles possam ser vendidos por um preço maior, a uma outra equipe ou ao próprio clube cessionário, em virtude de suas atuações futebolísticas, o que asseguraria um ganho de capital ao clube comprador/cedente.

É justamente isso que aponta o estudo. Somente 29,6% dos jogadores retornam da cessão temporária, enquanto em 27% dos casos o jogador é cedido novamente a um outro clube e, em 29,5% das vezes, o clube cedente recebe um valor econômico referente à transferência definitiva do jogador, dentre os quais 15,7% são oriundos do clube cessionário e 13,8% oriundos de um terceiro clube.

Essa relação contratual entre clube cedente e cessionário é capaz de causar muita polêmica, principalmente no que diz respeito ao artigo 18bis do RSTJ, já que, em muitas cláusulas, o clube cedente tende a exercer uma influência indevida aos olhos da FIFA.

Algumas disposições contratuais merecem maior destaque, como, por exemplo, a “cláusula do medo”, disposição que os clubes cedentes incluem no contrato para evitar que o jogador os enfrente, que é proibida em muitos países[7], e as cláusulas que obriguem ou assegurem a escalação de jogadores cedidos.

O uso excessivo das transferências temporárias foi alvo de debate pela FIFA, que, em 2019[8], já estudava alguns mecanismos para impedir a reserva de mercado de jogadores e garantir que os empréstimos tivessem uma finalidade desportiva, válida para o desenvolvimento dos jovens, principais afetados pelo abuso desse tipo de cessão.

Para tal, a entidade máxima do futebol pretendia implementar, já a partir da temporada 2020/2021, uma limitação de entrada e saída de oito cessões temporárias internacionais, passando, gradativamente, para seis, até a temporada de 2022/2023, com um máximo de três cessões de entrada e saída de três entre os mesmos clubes, o que seria aplicável especialmente aos conglomerados de clubes.

Essa proposta foi aprovada pelo Conselho da FIFA e deveria ter entrado em vigor em julho de 2020. Entretanto, com a eclosão da pandemia e suas consequências devastadoras aos cofres dos clubes, a entidade suíça decidiu adiar a inclusão das limitações por tempo indeterminado.[9]

Pelo menos a princípio, o projeto de limitação das transferências temporárias parece ter sido deixado de lado até que os clubes recuperem sua saúde financeira. Ao longo prazo, será fundamental e necessário ter esse controle para que se possa criar um ambiente mais equilibrado e responsável, de acordo com os princípios da integridade e a desportividade, ambos tutelados pelo Estatuto FIFA[10], onde a finalidade desportiva e o desenvolvimento do esporte possam prevalecer sobre os interesses econômicos dos proprietários.

Do mesmo modo, sob o ponto de vista do mercado, com menos empréstimos, pode significar uma quantidade maior de jogadores disponíveis, o que poderia acabar reduzindo o valor das transações e aumentando o equilíbrio técnico entre as equipes.

Todavia, essa medida não deve ser aceita tão facilmente pelos clubes que costumam adotar essa prática como modelo de seus negócios, podendo questioná-la nos Tribunais Europeus, devido a uma possível violação à legislação europeia. Afinal, a FIFA estaria atuando como órgão interventor e regulador da atividade econômica, atingindo diretamente a política interna das entidades desportivas.

Eventualmente, poderão alegar violação aos artigos sobre a liberdade de movimentação de capitais (art.63 do Tratado de Funcionamento da União Europeia – TFUE[11]), liberdade de circulação de trabalhadores (art.45 do TFUE) e restrição à livre concorrência devido ao uso de posição dominante no mercado (arts. 101 e 102 do TFUE).

Portanto, a questão da limitação das cessões temporárias está longe de estar pacificada, seu efeito no mercado ainda é incerto e promete ter novos desdobramentos nos próximos anos, com possíveis pronunciamentos dos órgãos superiores do esporte e da União Europeia.

……….

[1] Relatório de 10 anos do TMS –  FIFA-Ten-Years-International-Transfers-Report.pdf – última consulta: 20.10.2021

[2] Movido por empresário, pequeno time é o que mais empresta jogadores no país – UOL Esporte – última consulta: 20.10.2021

[3] A nova ordem dos Multiclubes (globo.com) – última consulta: 21.10.2021

[4] Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA –  gqzmnznyg97hpw17e5pb-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 20.10.2021

[5] Informe CIES Football nº 48 – Monthly Report 48 (football-observatory.com) – ultima consulta: 20.10.2021

[6] 40 jugadores en préstamo: El sistema del Chelsea que la FIFA quiere acabar – LatinAmerican Post – última consulta 20.10.2021

[7] On Loan and Playing Against My Own: Safeguarding Integrity? – Lex Sportiva – Tiago Patrão Silva – última consulta 20.10.2021

[8] FIFA and football stakeholders recommend cap on agents’ commissions and limit on loans – última consulta: 20.10.2021

[9] COVID-19 Cuestiones regulatorias relativas al fútbol_07.04.2020_ES-2.pdf (fifa.com) – última consulta 20.10.2021

[10] Estatuto FIFA – FIFA-Estatutos-2021.pdf – última consulta 20.10.2021

[11] Tratado de Funcionamento da União Europeia – Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (versão consolidada) (europa.eu) – última consulta: 21.10.2021.

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