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TMS 10 anos parte 2: O aumento do uso das cláusulas sell-on e a jurisprudência do Tribunal Arbitral do Esporte

Após 10 anos da implementação do sistema de transferências (Transfer Matching System – TMS) pela FIFA, foi emitido um relatório que analisou, de maneira exaustiva e detalhada, o mercado dessa modalidade durante todo esse tempo[1]. Nesse segundo artigo da série TMS 10 anos, o tema abordado será o aumento da utilização das cláusulas sell-on nos contratos de transferências entre clubes de futebol, expondo a jurisprudência do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS) e as problemáticas enfrentadas pelos membros do esporte.

Primeiramente, é necessário discorrer sobre o conceito de cláusula sell-on. Essa disposição contratual permite que o clube A (vendedor), ao ceder um jogador ao clube B (comprador), possa receber uma quantidade futura no caso de uma transferência do jogador do clube B a uma terceira equipe (clube C), sem prejuízo da contraprestação econômica fixa acordada no contrato de transferência.

Normalmente, essa participação consiste em uma porcentagem sobre o valor total de uma futura venda ou sobre a mais valia obtida pelo clube B. Em outras palavras, quando esta equipe consegue o resultado de lucro entre a diferença do preço da venda dos direitos econômicos do jogador ao clube C e o de aquisição do mesmo futebolista junto ao clube A.

Com efeito, essa prática é utilizada principalmente com jovens promessas e teve um aumento considerável nos últimos anos. Em resumo, o clube cedente deixa de cobrar um valor fixo mais alto, acreditando que, no clube cessionário, o jogador possa evoluir tecnicamente e se valorizar, sendo futuramente vendido por um preço mais alto.

É uma estratégia que agrada ambas as partes, já que o clube originário possivelmente se beneficiará da transferência subsequente, enquanto a nova equipe inicialmente terá que pagar um valor menor e só será obrigado a pagar parte do valor da transferência se o jogador for adquirido por um terceiro clube. De certo modo, pode significar uma minoração do risco do negócio para o clube comprador, já que as partes passam a compartilhá-lo.

Apesar de o registro desse tipo de cláusula na plataforma do TMS ter se tornado obrigatório somente em 2015, o relatório trouxe números muito importantes para avaliação do mercado. Nas transferências onerosas, durante os 5 anos dessa obrigação, o percentual de contratos com cláusulas sell-on foi de 44,2%, enquanto o percentual em transferências não onerosas foi de 2,5%.

Em detalhe, de acordo com relatório do TMS de 2020[2], foram feitos 1.580 contratos (9,2% do total das transferências) com esse tipo de cláusula, estando presentes em 48,6% das transferências onerosas e 2,8% das não onerosas. Os percentuais mais comuns convencionados entre as partes eram de: menores que 10% (459), entre 10 e 20% (546) e entre 20 e 30% (256).

Por outro lado, em 2019[3], o documento apontou que a quantidade de contratos com a cláusula sell-on foi de 1.704 (9,4% do total das transferências), ligeiramente superior ao de 2020, presentes em 47,9% das transferências onerosas e 2,7% das transferências não onerosas. Os percentuais mais comuns acordados entre as partes eram de: menores que 10% (438), entre 10 e 20% (663) e entre 20 e 30% (314).

O perfil dos jogadores envolvidos nessa cláusula é quase unânime, praticamente são todos jovens. Entre os menores de 18 anos, o percentual de uso da cláusula sell-on nos contratos de transferências foi de 24,2%, baixando um pouco o recorde de 29,6%, alcançado em 2018. Por sua vez, entre os jovens de 18 e 23 anos, o percentual se manteve estável, saiu de 16% (recorde) em 2019 para 15,9%, em 2020.

Como não poderia deixar de ser, os litígios oriundos desse termo contratual proporcionalmente acompanharam o crescimento de sua utilização. Nesse sentido, a FIFA e o TAS já se pronunciaram, muitas vezes de maneira divergente, sobre a validade de certas cláusulas sell-on, bem como a obrigação de pagamento de alguns clubes em situações específicas, adaptadas à legislação do país e ao caso concreto.

Isso porque, apesar de não ser considerada ilegal em si, dependendo das imposições extraídas da sua redação, pode contribuir para que a entidade máxima do futebol avalie como uma violação ao artigo 18bis do Regulamento sobre o Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[4], já que poderia ser entendida como uma influência indevida no contrato de trabalho e nas transferências dos jogadores.

Nesse contexto, um dos casos recentes mais emblemáticos foi o CAS 2020/A/7158 Real Madrid CF v. FIFA[5]. O objeto da discussão jurídica foi o acordo do clube espanhol com o Manchester City, especificamente sobre uma cláusula sell-on, que fixava que o Real Madrid deveria pagar o valor 15% sobre uma futura venda do jogador Brahím Díaz ao clube inglês, porém esse valor aumentaria para 40% da mais-valia se o jogador fosse cedido ao outro time de Manchester. Essa cláusula foi considerada ilegal pela FIFA, que sancionou o clube espanhol.

Em sede recursal, o Painel acatou a argumentação do apelante, deixando sem efeito a sanção imposta pela FIFA, fundamentando que a cláusula não representava um risco à integridade da competição e à independência e autonomia dos clubes, objetivos principais que a introdução do artigo 18bis buscava proteger.

A propósito, a Espanha vem sendo um dos países com mais disputas originadas pela cláusula sell-on, devido a sua legislação, que possui muitas particularidades, como a impossibilidade de submeter os conflitos laborais à arbitragem e à normativa privada, tal como a da FIFA, não importando a nacionalidade do jogador.

 Esse corpo normativo, pouco usual em outros países, através do Real Decreto 1006/1985[6], que regula as relações trabalhistas dos desportistas profissionais, nos seus artigos 13 e 16, estabelece uma hipótese de extinção do contrato de trabalho por vontade exclusiva do atleta. Ou seja, quando o clube não deu causa à rescisão contratual.

Por conseguinte, o Real Decreto 1006/1985 institui que deve ser paga uma indenização ao clube, que, na ausência de pacto entre as partes, pode ser fixada pela Jurisdição Laboral. Se o jogador, no prazo de um ano da data de extinção do contrato, for contratado por uma outra entidade, esta será responsável subsidiária pelo adimplemento dessa obrigação pecuniária.

O exercício dessa cláusula é muito comum nesse país, inclusive em casos de jogadores brasileiros, como Neymar e Ronaldo. Contudo, ultimamente, há muitas discussões jurídicas sobre a natureza dessa cláusula, também conhecida, em alguns lugares, como cláusula buy-out, e se seria aplicada a cláusula sell-on quando ela fosse ativada pelo futebolista.

Para uma melhor compreensão da discussão jurídica, é fundamental examinar uma das decisões mais importantes do CAS, que fixou os parâmetros para identificar uma operação como transferência, mesmo que, no caso concreto, fosse para decidir sobre a incidência de mecanismo de solidariedade.

Na demanda CAS 2011/A/2356 SS Lazio S.p.A. v. CA Vélez Sarsfield e FIFA[7], o jogador argentino Mauro Zárate, formado pelo Vélez, foi contratado em 2007 pelo clube Al Sadd, do Catar. No contrato, foi estabelecida a cláusula buy-out no valor de 20 milhões de euros. Ato contínuo, o jogador foi cedido ao clube italiano e após uma temporada atuando na equipe da capital, decidiu comunicar ao clube do Catar que exerceria a cláusula buy-out, paga integralmente pela Lazio. Ao tomar conhecimento, o Vélez reivindicou os valores relativos ao mecanismo de solidariedade, impostos pelo artigo 21 e anexo 5 do RSTJ FIFA.

O clube romano alegou que se tratava de rescisão contratual unilateral por parte do jogador, sem o consentimento do Al Sadd e que, portanto, não poderia ser considerado como uma transferência, o que lhe eximiria da obrigação de pagar o mecanismo de solidariedade.

A formação arbitral fixou o entendimento de que para ser considerada uma transferência, era necessário a presença de quatro requisitos: i) o consentimento do clube anterior para a terminação antecipada do contrato, ii) o consentimento e vontade do novo clube em contar com os serviços do jogador, iii) o consentimento do jogador para mudar de clube, e iv) o preço da transação.

Desse modo, o Painel considerou que a mera introdução da cláusula buy-out no contrato já demonstra o consentimento antecipado e admissão para que, se exercida, o jogador possa terminar a relação. Além disso, estimou que todos os outros elementos estavam presentes, o que, segundo o TAS, configurou-se como transferência, logo, passível de mecanismo de solidariedade.

Posto isso, passemos a analisar dois casos bem interessantes decididos pelo TAS, em que o Sevilla Fútbol Club esteve envolvido, com resultados distintos em virtude das diferentes redações da cláusula sell-on. Em ambos, foi executado o direito de terminação contratual por vontade de dois jogadores, que, coincidentemente, tiveram como destino o Fútbol Club Barcelona.

  • CAS 2010/A/2098 Sevilla FC v. RC Lens[8]

Em 2007, o clube andaluz contratou o jogador Keita junto ao Lens, da França. Ficou estabelecido uma cláusula sell-on em caso de uma futura revenda (revente, em francês) do jogador, na faixa de 10% sobre a mais valia se ele fosse vendido com o preço entre 4 e 8 milhões de euros e 15% se fosse superior a 8 milhões de euros.

Em 2009, o jogador exerceu seu direito de resolver o contrato amparado na legislação espanhola e se transferiu ao Barcelona, com o pagamento da quantia de 14 milhões de euros pelo clube catalão. Consequentemente, o clube francês reclamou a quantia referente à cláusula sell-on por entender que estaria caracterizada a transferência. A FIFA condenou o clube espanhol ao pagamento, que, em seguida, recorreu ao TAS.

O Sevilla argumentava que não teria consentido com a terminação do contrato, através do exercício da cláusula pelo futebolista, pois isso era uma obrigação e um direito garantido pela legislação espanhola, conforme já demonstrado. Logo, sem o consentimento do Sevilla, não poderia ser considerado revenda e, automaticamente, não estaria obrigado a pagar a cláusula sell-on ao clube francês.

A formação arbitral acolheu a tese da apelante, sustentando que, com a ausência de consentimento, não poderia caracterizar como venda ou revenda, de acordo com a redação do contrato, reformando, assim, a decisão de primeira instância da entidade suíça.

  • CAS 2019/A/6525 Sevilla FC v. AS Nancy Lorraine[9]

Em 2017, o defensor Lenglet foi contratado pelo Sevilla junto ao Nancy, da França, por 5 milhões de euros. Outrossim, foi inserida a cláusula sell-on para determinar que o clube francês teria direito a 12% sobre a mais valia de uma futura transferência definitiva.

No ano seguinte, tal como o ocorrido no caso anterior, Lenglet exerceu a cláusula garantida pelo Direito espanhol e foi ao Barcelona, que depositou a quantia de 35 milhões de euros na Liga Nacional de Fútbol Profesional (LaLiga). Após a negativa do Sevilla, que se baseou no precedente favorável de Keita, o Nancy acionou a FIFA, reclamando da quantia relativa à cláusula sell-on.

Assim como na demanda anterior, a FIFA condenou o clube andaluz ao pagamento da cláusula e, em sede recursal, os argumentos de ambas as partes foram quase idênticos aos utilizados no litígio Keita. No entanto, a decisão do TAS não seguiu o mesmo caminho.

O Painel interpretou que, sob a ótica do princípio do pacta sunt servanda, a diferença entre os termos revenda (caso Keita) e transferência definitiva em que houvesse ganho de capital pelo clube espanhol (caso Lenglet) era determinante para o não acolhimento da apelação do Sevilla. Em outras palavras, a intenção real e comum das partes ao fixar o termo transferência definitiva com ganho de capital configurava o consentimento e, uma vez presente a mais valia, deveriam ser pagos os 12% pactuados.

A cláusula sell-on também despertou outras discussões jurídicas interessantes como, por exemplo, a incidência de mecanismo de solidariedade sobre essa disposição. O caso CAS 2019/A/6196 Sport Club Corinthians Paulista v. Clube de Regatas do Flamengo[10] teve como protagonista o jogador Renato Augusto, que saiu do clube carioca ao Bayer Leverkusen em 2008.

Anos depois, o jogador foi adquirido pelo Corinthians, que celebrou o contrato com o clube alemão com a cláusula sell-on sobre uma futura transferência, determinando que o Bayern ficaria com 50% do valor que ultrapassasse a quantia de 3 milhões de euros e, se fosse inferior, seria devido aos bávaros a totalidade da importância.

Em 2016, o futebolista foi adquirido pelo Beijing Guon FC, da China. Ficou acordado que o clube alemão receberia do clube chinês, em nome do Corinthians, o valor 3 milhões de euros e o clube paulista receberia 5 milhões de euros. Além disso, os chineses seriam responsáveis pelo pagamento do mecanismo de solidariedade ao Flamengo.

Ocorre que, todavia, o clube carioca entendia que eram duas compensações distintas e que deveria receber o mecanismo de solidariedade em ambas. Para isso, sustentava que o mecanismo incidiria sobre o valor total de 8 milhões de euros (do Beijing a favor do Corinthians) e da cláusula sell-on de 3 milhões de euros (paga pelos chineses, em nome do clube paulista, diretamente ao Bayern).

O Tribunal avaliou que a tese sobre a cláusula sell-on não era correta, atentando-se ao princípio do no bis in idem, pois um único evento não poderia gerar dois pagamentos de mecanismo de solidariedade e que o Flamengo já teria recebido a quantidade que lhe era devida sobre o montante total de 8 milhões de euros.

Outro episódio curioso foi o CAS 2014/A/3701 Genoa Cricket and Football Club S.p.A. v. AC Sparta Praha[11], em que se discutiu a interpretação do termo transferência definitiva, inserida na cláusula sell-on. O clube da República Tcheca reclamou a quantidade devida referente à já mencionada disposição contratual do clube italiano. Por sua vez, o Genoa alegava que não havia cedido a totalidade dos direitos econômicos do jogador e que, portanto, não poderia ser considerado uma transferência permanente.

A formação arbitral avaliou que não estava escrito nada sobre 100% dos direitos econômicos, portanto, qualquer transferência onerosa, ainda se fosse uma cessão parcial dos direitos econômicos, seria devido o pagamento dos valores pactuados na cláusula sell-on.

Conforme o exposto, as discussões jurídicas envolvendo esse tipo de cláusula contém diversas variáveis, porém é nítida a importância de uma redação clara e precisa dessa disposição contratual e a interpretação do CAS no sentido de priorizar a verdadeira vontade das partes no momento da celebração do contrato.

Certamente, as cláusulas sell-on seguirão sendo muito utilizadas por todos os membros do esporte, ainda mais em épocas de crises econômicas, e a jurisprudência do Tribunal Arbitral do Esporte deve se atualizar ao longo dos próximos anos.

……….

[1] Relatório de 10 anos do TMS –  FIFA-Ten-Years-International-Transfers-Report.pdf – última consulta: 25.10.2021

[2] Relatório do TMS 2020 –  ijiz9rtpkfnbhxwbqr70-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 25.10.2021

[3] Relatório do TMS 2019 – x2wrqjstwjoailnncnod-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 25.10.2021

[4] Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA –  gqzmnznyg97hpw17e5pb-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 25.10.2021

[5] CAS 2020/A/7158 Real Madrid CF v. FIFA – tas-2020-a-7158-real-madrid-cf-c-fifa.pdf – última consulta: 25.10.2021

[6] Real Decreto 1006/1985   BOE.es – BOE-A-1985-12313 Real Decreto 1006/1985, de 26 de junio, por el que se regula la relación laboral especial de los deportistas profesionales. – última consulta: 25.10.2021

[7] CAS 2011/A/2356 SS Lazio S.p.A. v. CA Vélez Sarsfield e FIFA – TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 26.10.2021

[8] CAS 2010/A/2098 Sevilla FC v. RC Lens TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 26.10.2021

[9] CAS 2019/A/6525 Sevilla FC v. AS Nancy Lorraine –  TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 26.10.2021

[10] CAS 2019/A/6196 Sport Club Corinthians Paulista v. Clube de Regatas do Flamengo – TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 26.10.2021

[11] CAS 2014/A/3701 Genoa Cricket and Football Club S.p.A. v. AC Sparta Praha – TAS xxx (tas-cas.org) – – última consulta: 26.10.2021

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