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TMS 10 anos parte 3: A equivocada “vilanização” dos intermediários

Atualmente, um dos assuntos mais controversos do futebol é a atuação dos intermediários no mercado. Ao longo dos anos, as críticas e até uma certa “marginalização” da profissão, impulsionada pelas notícias que circulam na imprensa sobre as negociações contratuais, vêm aumentando bastante, chegando ao público consumidor do espetáculo, ou seja, aos torcedores. Da mesma forma, são capazes de repercutir nas medidas já impostas e as que ainda estão sendo estudadas pela FIFA.

No mês passado, com a publicação do relatório de 10 anos do TMS (Transfer Matching System)[1], uma plataforma idealizada pela entidade suíça para o armazenamento de dados das transferências internacionais de jogadores de futebol, o tema dos intermediários voltou ao debate nos principais veículos de comunicação ao redor do mundo e será o objeto principal desse terceiro artigo[2].

Com efeito, nesse documento, foi divulgado o valor das comissões pagas pelos clubes aos agentes, que saiu de 131,1 milhões de dólares em 2011 para 483,5 milhões de dólares em 2020. Um considerável recuo, devido a pandemia, com relação ao ano de 2019, que teve o recorde de 640,5 milhões de dólares. Nesses 10 anos, foram gastos 48,6 bilhões de dólares em transferências internacionais de jogadores e 3,5 bilhões de dólares com os representantes, aproximadamente 7% do valor total.

Por outro lado, as associações em que os clubes desembolsaram mais com comissões aos intermediários são as que pertencem ao seleto grupo das 6 principais ligas: Inglaterra (919,5 milhões), Itália (761,9 milhões), Alemanha (375,7 milhões), Portugal (375,6 milhões), Espanha (263,8 milhões) e França (189,7 milhões), todos os valores em dólares.

Se pode extrair desses números que um maior gasto com agentes está diretamente atrelado ao sucesso esportivo e ao nível técnico das competições, pois, com a presença de jogadores de maior qualidade, as ligas conseguem vender e internacionalizar o produto, aumentando, assim, as receitas.

Outrossim, a FIFA também divulga um relatório anual, mais detalhado, sobre a atividade dos intermediários no mercado. No ano recorde de 2019[3], foram feitas 17.896 transferências internacionais, em 3.558 (19,9%) delas houve a atuação de ao menos um intermediário. No total, 490 dos 4.161 clubes envolvidos e 2.490 dos 15.366 jogadores transferidos foram representados por pelo menos um agente.

Sobre o valor das transferências, se nota que, quanto mais alto é o preço da operação, maior é a participação dos intermediários que representam o futebolista: 48,8% nas transações de valor acima de 5 milhões de dólares e 36,4% entre um milhão e 5 milhões. O percentual aumenta um pouco quando representam o clube comprador, perfazendo 53,6% nas transações de valor acima de 5 milhões de dólares e 36,8% entre um milhão e 5 milhões. Por último, 36,8% nas transações de valor acima de 5 milhões de dólares quando representam o clube que está vendendo o jogador.

Por conseguinte, através desses dados, conclui-se que o trabalho dos agentes é primordial para uma negociação de grande porte e, consequentemente, para obtenção de melhores condições no contrato de trabalho para os atletas representados e de valores compatíveis com o interesse dos clubes.

Nesse contexto, em comparação com os números do primeiro relatório divulgado pela FIFA, em 2016[4], a participação dos intermediários aumentou porque a quantidade de transferências internacionais aumentou. Contudo, se mantiveram estáveis os percentuais e as características acima mencionados, como, por exemplo, a participação de pelo menos um intermediário em 19,7% das transferências internacionais.

Com o advento da Circular 1519[5] FIFA, de 2016, que estabeleceu a obrigatoriedade da publicação, por parte das federações nacionais, de relatórios anuais sobre atividade dos intermediários em seus respectivos países, passou-se a ter uma noção exata sobre o cenário nacional.

No relatório referente ao ano de 2016[6], divulgado pela CBF, foram registradas 536 operações com a atuação de intermediários, com pagamentos de comissões que alcançaram o valor de R$ 24.134.776, sendo que R$ 3.004.099 foram pagos aos representantes dos atletas e R$ 21.130.677 aos representantes dos clubes.

Simultaneamente com o cenário mundial, o ano de 2019, publicado no relatório em 2020[7], também manifestou uma alta recorde no número de operações registradas (1775), porém com uma ligeira queda em relação ao relatório do ano anterior[8], no que diz respeito ao valor gasto: de R$ 205.894.250 (R$ 202.002.019,24 pagos aos representantes dos clubes e R$ 3.892.230,76 pagos aos representantes dos atletas) para R$ 200.521.596,31  (R$ 192.671.383,80 pagos aos representantes dos clubes e R$ 7.850.212,51 pagos aos representantes dos atletas).

No entanto, essa evolução da participação e da importância da figura do agente para o meio do futebol não podem ser contadas apenas mediante os números. O crescimento e a especialização dos intermediários sucederam apesar das mudanças promovidas pela FIFA, que dificultaram o exercício da profissão e, em até certo ponto, precarizaram as condições de trabalho.

Em primeiro lugar, é necessário desmiuçar as mudanças no corpo normativo da entidade máxima do futebol, referentes à atividade desse membro tão importante para os protagonistas do esporte (clubes e jogadores). Desde 2015, a FIFA decidiu excluir a figura do agente e passou a chamá-los de intermediários.

Ocorre que, entretanto, esse termo não é o mais correto para explicar a profissão, uma vez que a palavra intermediário implica em um entendimento um pouco raso e pontual sobre a atuação desempenhada. Essa profissão requer alto conhecimento do mercado, um acompanhamento profundo do rendimento esportivo e do estado econômico dos clubes, além do assessoramento diário esportivo, publicitário, econômico e até familiar para os atletas. Portanto, vai muito além de uma momentânea intermediação de uma transferência.

Igualmente, deve-se descontruir a errônea premissa de que o agente pode ser proprietário dos direitos econômicos do jogador ou que seu pagamento seja condicionado ao recebimento desses direitos, o que configuraria um conflito de interesses prejudicial ao esporte, pois essa proibição constava no Regulamento FIFA já no ano de 2008[9].

Esse Regulamento impunha que, entre outros pontos, um agente não poderia representar mais de uma parte envolvida no negócio, bem como exigia uma prova de admissão para o exercício da profissão. O candidato deveria demonstrar conhecimento dos Regulamentos internos da federação e da FIFA, assim como conceitos básicos da legislação civil e das obrigações contratuais.

Além disso, essa normativa era centralizadora, posto que atraía para a FIFA a competência para resolver todos os conflitos internacionais com o envolvimento de agentes, como, por exemplo, por falta de pagamento. Ressalte-se que, em casos de transações nacionais, mas com presença de agentes inscritos em federações distintas, também cabia à FIFA solucionar o litígio e, se fosse necessário, impor sanções.

A versão de 2015[10], apresentou uma inovação considerável com a inclusão da possibilidade de o agente representar mais de uma parte envolvida no negócio, desde que houvesse o consentimento de todos os representados.

Demonstrando em números a amplitude da utilização, no ano recorde de 2019, foram 92 operações em que o mesmo intermediário prestou serviço para os dois clubes, 469 transações em que o clube contratante e o jogador foram representados pela mesma pessoa, 92 transferências com a participação pelo clube vendedor e o jogador e, por fim, 74 em que houve um mesmo agente atuando pelas três partes.

Inegavelmente, essa medida aumentou o valor das comissões, ainda que restrita a um certo grupo de agentes, detentores de muita confiança do mercado, porém, se comparado ao número total de operações com a presença de intermediários, a dupla/tripla representação ainda simboliza uma pequena parcela do mercado. Todavia, apesar do evidente benefício aportado por essa nova regra, as desvantagens produzidas pelo Regulamento de 2015 tiveram um destaque infinitamente superior.

A FIFA reduziu o número de artigos para menos da metade e delegou às federações nacionais o controle e imposição de regras mais exaustivas, desde que em conformidade com as premissas mínimas da entidade suíça contidas no Regulamento. Essa nova normativa aboliu a prova de admissão, antes obrigatória, passando a não ter uma exigência de conhecimento mínimo na maioria dos processos de inscrição dos intermediários, o que pode ter facilitado o acesso de pessoas menos preparadas.

Essa descentralização excluiu a competência da FIFA para resolver os litígios envolvendo intermediários. Atualmente, cada agente deve ser registrado na Federação Nacional em que se concretizar o negócio para poder receber sua comissão. A inovação aumentou o custo dos profissionais, pois cada inscrição, em cada país, supõe, em certos casos, um pagamento de uma taxa de admissão, anuidade e contratação de seguro.

Além disso, é evidente a criação de uma insegurança jurídica, uma vez que, com a exclusão da competência da FIFA para resolução dos conflitos, os agentes passaram a ter que se submeter às legislações nacionais, aos órgãos de arbitragem das Federações Nacionais ou ao Poder Judiciário nos mais diferentes países, com hábitos, legislações, culturas e idiomas completamente distintos.

Paralelamente, a entidade máxima do futebol já demonstrava uma intenção de limitar o valor das comissões. A princípio, a título de recomendação, impôs o percentual máximo de 3% da remuneração bruta correspondente ao período de vigência contratual dos jogadores como pagamento dos representantes e, no caso de representantes dos clubes, incluiu a base de 3% sobre o valor da transferência.

Nesse sentido, com as pressões midiáticas em virtude de casos isolados de elevadas comissões e o reconhecimento de que a atual normativa não satisfez as partes envolvidas, se discute a possibilidade de um novo regulamento de intermediários, que deverá entrar em vigor em 2022[11][12] para tentar consertar os erros acima explicitados. Algumas mudanças devem ocorrer, dentre elas:

  1. a limitação das comissões (não mais recomendação) em 3% do valor da remuneração bruta do jogador ou do montante da transferência
  2. a volta da competência da FIFA para a resolução dos litígios.
  3. criação de uma Câmara de Compensação (Clearing House) para dar transparência e publicidade ao recebimento das comissões.
  4. volta da prova de admissão
  5. criação de um pagamento de anuidade única direcionado à FIFA.
  6. licença por tempo indeterminado, com a criação de cursos de atualização anuais.
  7. a volta da denominação agente, em detrimento da palavra intermediário
  8. exclusão da possibilidade de tripla representação (somente a dupla representação, de jogador e clube adquirente será permitida)
  9. imposição de sanções aos agentes que tentem captar jogadores que estejam sob contrato com outro profissional

Algumas inovações já foram postas em prática pela FIFA, com a entrada em vigor do novo Regulamento sobre Procedimento do Tribunal do Futebol[13], que, além das tradicionais Câmara de Resolução de Disputas e da Câmara do Estatuto do Jogador, passará a contar com a Câmara de Agentes. Contudo, o início do funcionamento da Câmara dos Agentes depende da aprovação do novo regulamento dos agentes pelo Conselho da FIFA.

Sobre isso, uma das questões mais polêmicas promete ser a limitação do valor das comissões, já que qualquer teto na remuneração de uma profissão ou tentativa de impor um preço máximo a um serviço é bastante discutível. Ademais, seria proporcional, razoável e justificável uma medida para regular uma quantidade inferior a um quinto do mercado e que afetaria principalmente os agentes de pequeno e médio porte (os que menos recebem)?

Do mesmo modo, a transparência e publicidade dos pagamentos, com a divulgação dos valores de todas as comissões e nomes dos intermediários, causa bastante insegurança aos profissionais da área, que perderiam sua privacidade. Afinal, que funcionário ordinário de uma empresa ou qualquer pessoa que não exerça um cargo público gostaria de ter sua remuneração divulgada e discutida em todos os meios de comunicação? Essa medida seria saudável e necessária ao mercado?

Certamente, os agentes levarão até as últimas instâncias dos Tribunais Europeus, podendo alegar violação à liberdade de movimentação de capitais (art.63 do Tratado de Funcionamento da União Europeia – TFUE[14]), à livre prestação de serviços (art.56 do TFUE), à liberdade de circulação de trabalhadores (art.45 do TFUE) e restrição à livre concorrência devido ao uso de posição dominante no mercado (arts. 101 e 102 do TFUE).

Na semana passada, o presidente da FIFA voltou a atacar os agentes, especialmente a grande diferença entre valor das comissões em relação aos valores de mecanismo de solidariedade/indenização por formação.[15] Dessa forma, o que se nota é que a questão dos agentes está longe de ser pacificada.

Contudo, indubitavelmente não se pode questionar sobre a contribuição da classe ao esporte, sua importância na descoberta de novos talentos, sobre a expertise de mercado, principalmente no gerenciamento de carreiras dos principais protagonistas do espetáculo.

Uma atuação nos bastidores que ainda é pouco valorizada e reparada por muitos, porém é fundamental para o crescimento e profissionalização da modalidade. Uma classe que soube se aprimorar, mesmo com todas as adversidades, como demonstram os números analisados por este artigo. Não há vilão no futebol. O esporte necessita de uma solução rápida, pacífica e eficaz no tratamento dos agentes para poder seguir na estrada do desenvolvimento.

……….

[1] Relatório de 10 anos do TMS –  FIFA-Ten-Years-International-Transfers-Report.pdf – última consulta: 12.11.2021

[2] Gasto com transferências internacionais de jogadores quase triplicou em 10 anos, diz Fifa (yahoo.com) – última consulta: 12.11.2021

[3] Relatório FIFA sobre os Intermediários de 2019 – skxho7ouynkh1axpcu0a-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 12.11.2021

[4] Relatório FIFA sobre Intermediários 2016 – aghsuzxuk9n77qw0tivw-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 13.11.2021

[5] Circular 1519 FIFA  dr9ehgyllqymejffbf51-pdf.pdf (fifa.com) – – última consulta: 13.11.2021

[6] Relatório de participação dos intermediários 16/17 – Confederação Brasileira de Futebol (cbf.com.br) – última consulta: 13.11.2021

[7] Relatório de participação dos intermediários em 2020 – 20200630174633_38.pdf (cbf.com.br) – última consulta: 13.11.2021

[8] Relatório de participação dos intermediários em 2019 – 20190329172740_456.pdf (cbf.com.br) – última consulta: 13.11.2021

[9] Regulamento de Agentes FIFA 2007/2008 – Reglamento de Agentes de Jugadores Circular.pdf (epronova.es) – última consulta: 13.11.2021

[10] Regulamento de Intermediários FIFA 2015 – Regulations on Working with Intermediaries.indd (fifa.com) – última consulta: 13.11.2021

[11] La FIFA ultima la gran reforma de la normativa sobre los agentes | IUSPORT: EL OTRO LADO DEL DEPORTE – última consulta: 13.11.21

[12] La FIFA, a punto de finalizar su nuevo reglamento de agentes (sport.es) última consulta: 14.11.21

[13] Regulamento sobre o Procedimento do Tribunal do Futebol: Reglamento-de-procedimiento-del-Tribunal-del-Futbol-octubre-de-2021.pdf (fifa.com) última consulta: 14.11.2021

[14] Tratado de Funcionamento da União Europeia – Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (versão consolidada) (europa.eu) – última consulta: 15.11.2021

[15] A BOLA – Gianni Infantino pede «mais transparência» nas transferências (FIFA) – última consulta: 15.11.2021

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