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TMS 10 anos, parte 4

Não é surpresa para ninguém a capacidade e o potencial de surgimento de novos talentos no Brasil, conhecido como país do futebol, que revelou alguns dos maiores jogadores da história do esporte. O relatório de 10 anos do (Transfer Matching System – TMS)[1] da FIFA analisou profundamente o sistema de transferências internacionais e justamente consolidou a figura do país como o maior exportador de futebolistas do mundo na última década.

Nesse sentido, esse quarto e último artigo sobre esse documento terá como objetivo examinar o que pode ter contribuído para essa liderança e suas consequências para o esporte praticado no Brasil. Por fim, debaterá o que pode ser feito para que se consiga permanecer com os jovens talentos por mais tempo em nosso território.

Primeiramente, faz-se necessário apresentar os números trazidos pelo relatório, que apontam para uma posição de primeiro lugar bastante expressiva, em todos os aspectos. No último decênio, foram 15.128 transferências de jogadores brasileiros, o que representa 11,4% do mercado, mais do que o dobro do segundo lugar da lista (Argentina) e quase o triplo do terceiro (Reino Unido).

A quantidade de jogadores brasileiros transferidos vinha em um nível considerado baixo entre 2012 e 2015, porém, desde 2017, as cifras têm crescido bastante, superando os 1.500 jogadores por ano. Gerou-se o valor de 7,1 bilhões de dólares somente em transferências de desportistas brasileiros.

No total, 7.300 atletas deixaram o Brasil para atuar em outros países, número que cresce a cada ano. Os países que mais receberam jogadores brasileiros foram Portugal (1.556) e Japão (410). Ato contínuo, o relatório do TMS de 2016[2] informou que 806 jogadores saíram do país, já em 2019[3] foram 948, cenário muito semelhante aos dos outros países sul-americanos exportadores, como, por exemplo, Argentina, Colômbia e Uruguai.

O relatório divulgado pelo CIES Football Observatory[4], em 2020, confirmou a tendência acima mencionada. Em 2019, foram 1.600 jogadores brasileiros atuando no exterior, dentre os quais 74,6% jogavam as primeiras divisões de seus respectivos países.

Por sua vez, o mapa atualizado pela empresa, em maio de 2021, apontou que os países que mais possuem brasileiros são: Portugal (236), Japão (67), Itália e Espanha empatados com 55[5] e que, muito embora a quantidade de brasileiros atuando no exterior tenha caído para 1.287, a porcentagem de jogadores atuando nas primeiras divisões subiu para 82%.

Com efeito, o aumento da exportação dos jogadores pode ser explicado pela proibição da propriedade de direitos econômicos por terceiros (TPO – third-party ownership of players’ economic rights), geralmente representados pelas figuras dos fundos de investimento e dos empresários, através da introdução do artigo 18ter ao Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[6], em 2015. Essa prática era muito adotada pelo mercado sul-americano e principalmente o brasileiro.

Inicialmente, um dos objetivos da FIFA era diminuir o número de transferências de jogadores, especialmente os mais jovens, para que pudessem completar seu processo de formação em seus respectivos clubes de origem, sem interesses econômicos e influências de terceiros capazes de interferir no desenvolvimento esportivo.

Na prática, a entidade suíça acreditava que essa medida permitiria que os terceiros passassem a investir mais nos clubes, revestidos de uma estrutura societária favorável, o que, segundo a entidade, aumentaria a transparência e manteria a integridade do esporte, já que reduziria a influência de terceiros e o conflito de interesses, evitando-se, assim, uma possível manipulação de resultados.

Ocorre que, todavia, o efeito da proibição foi ao contrário do previsto, posto que o número de transferências não diminuiu e a cifra envolvendo jogadores jovens aumentou, inclusive a exportação de talentos sul-americanos. Ressalte-se que muitos clubes brasileiros se valiam da venda de direitos econômicos a terceiros para manter seus principais atletas, para contratar jogadores já renomados, para investir na estrutura do próprio clube e para o pagamento de dívidas a curto prazo.

Da mesma forma, o Brasil saiu ainda mais prejudicado que os demais com a proibição, uma vez que não possuía uma legislação que regulasse e estimulasse um clube a se tornar sociedade anônima, modalidade societária capaz de atrair investimentos oriundos dos grandes fundos e empresários, principalmente do exterior. A maioria dos clubes eram e ainda são entidades sem fins lucrativos. Essa lacuna jurídica foi primordial para que se sentisse ainda mais os efeitos da implementação do artigo 18ter.

Nesse contexto, a título de ilustração, um dos exemplos mais bem sucedidos da prática dos TPO foi o jogador Neymar, que na época atuava pelo Santos que, devido a aquisição dos direitos econômicos por um fundo de investimento, recusou propostas do exterior menos vantajosas[7] ao clube. Sendo assim, o futebolista pôde concluir seu processo de formação em solo brasileiro, contribuindo para o êxito desportivo de sua equipe.

A proibição dos TPO foi um dos fatores responsáveis por inviabilizar ainda mais a competição com o mercado europeu, asiático e do oriente médio. Por conseguinte, os nossos principais destaques são adquiridos, muitas vezes de maneira precoce, por esses mercados mais atrativos economicamente. Automaticamente, acabam enfraquecendo o nível técnico do futebol jogado no território verde e amarelo e desvalorizando o produto do campeonato brasileiro.

Por outro lado, apesar de demonstrar um contexto exclusivamente internacional, é importante destacar que 7 clubes brasileiros estão na lista dos 30 clubes que obtiveram balanço positivo mais alto entre a venda e aquisição de jogadores ao longo desses 10 anos. De uma maneira geral, o balanço positivo de todos os clubes brasileiros foi de 2,002 bilhões de dólares. O país é o 7º da lista em valores recebidos pelos clubes em transferências internacionais, com 2,8 bilhões de dólares.

Sob este viés, conforme os parâmetros acima expostos, como que os clubes, que apresentaram um balanço positivo nas transferências internacionais, não conseguiram traduzi-lo em competitividade e manutenção do nível técnico do esporte? O endividamento é a palavra correta para definir o motivo da não conversão desse capital em prol do desenvolvimento dos clubes.

Isso porque, muitas equipes possuem dívidas astronômicas, fruto de gestões temerárias e irresponsáveis, que, quase sempre, são impagáveis. Esse rol de passivos é bem extenso. Inclui dívidas tributárias, trabalhistas, com empresas privadas, intermediários, bancos e até pessoas físicas, que concedem empréstimos financeiros.

Diante disso, as entidades não tem saída ao vender seus principais ativos, ou seja, os jogadores, muitas vezes por um valor menos favorável, para tentar quitar parte do passivo. É válido enfatizar que é muito comum que as equipes estipulem certo valor com venda dos atletas, algo totalmente imprevisível, em seu orçamento anual.

Nesse sentido, essa instituição de uma certa obrigatoriedade de venda dos futebolistas explica o porquê somos o país que mais exporta atletas, os mesmos que movimentam a maior cifra do mercado e, simultaneamente, somos o 7º país em valor recebido. Vendemos muito, porém vendemos mal.

Nessa direção, no ranking das 70 maiores transferências do futebol internacional na última década consta somente uma transferência de um jogador vindo do Brasil. Entretanto, ao mesmo tempo, mais de dez brasileiros estão nessa lista. Portanto, comprova que o brasileiro é valorizado, todavia, o futebol jogado no Brasil não o é.

Essa administração errônea do produto do Campeonato Brasileiro, capitaneada pela má gestão dos clubes, repercute diretamente no valor de mercado do Brasileirão. Atualmente, segundo os números apresentados pelo Transfermarkt[8], o Campeonato Nacional vale 1,08 bilhões de euros, ocupando a 7ª posição no ranking mundial, acompanhado de perto pela MLS (EUA) e pelo Campeonato Russo.

Evidentemente, o Brasil sempre será um celeiro de bons jogadores e, decerto, um mercado tipicamente exportador de talentos para o mundo, sem embargo, é fundamental trazer à baila a questão do nível técnico do futebol praticado no Brasil, que deixou de ser uma das principais ligas do mundo há muito tempo.

A mudança do esporte no país deve ser endógena. Em outras palavras, a restruturação deve partir de dentro dos próprios clubes, para depois melhorar o cenário interno de uma maneira geral, que, obviamente, repercutirá no âmbito internacional.

A aprovação da Lei 14.193/21, conhecida como lei das Sociedades Anônimas do Futebol (SAF), é um excelente ponto de partida no que diz respeito à viabilização do funcionamento dos clubes, devido a possibilidade captação de novos mecanismos de financiamento, atraindo e trazendo mais segurança jurídica ao investidor estrangeiro.

Além disso, é importante citar a inclusão da previsão da centralização das execuções, já utilizada por muitos clubes que não são sociedades anônimas[9], e da responsabilização dos dirigentes, que, por sua vez, já havia sofrido importantes mudanças com a Lei nº 14.073, de 2020, incluindo o artigo 18-B na Lei Pelé. São importantes inovações que possibilitam um novo aceno à profissionalização.

No entanto, esse marco temporal deve ser acompanhado da implementação de medidas de boa governança e de controle financeiro, inspirado nas grandes ligas europeias. Do mesmo modo, a necessidade de profissionalização dos dirigentes de futebol é primordial para a adoção de boas decisões, capazes de conduzir o clube ao caminho do êxito esportivo e econômico.

Criando-se um cenário de estabilidade financeira e com arcabouço jurídico favorável, aumenta-se, consequentemente, a credibilidade no mercado. As entidades passarão a atrair mais investidores, mais patrocínios, diminuindo a necessidade de venda dos principais ativos, que ficarão em solo brasileiro por mais tempo. Automaticamente, o nível técnico se manterá alto, aumentando a audiência, a competitividade e, consequentemente, valorizando o produto, de uma maneira geral.

Ante todo o exposto, é difícil imaginar que o Brasil deixe de ser um país tipicamente exportador a curto prazo, ainda mais com o valor do câmbio atual, pois a valorização do futebol praticado em seu território depende de uma série de fatores, que ainda estão em etapas iniciais.

Igualmente, não há uma pretensão ufanista de poder ultrapassar ou igualar as principais ligas do mundo (Premier League, Série A e Laliga), que já detém uma vantagem econômica, histórica e estrutural difíceis de serem equiparadas. A competição deve ser pela sobrevivência do esporte e pela melhora da qualidade do espetáculo. Para esse objetivo ser alcançado não há nenhum concorrente.

……….

[1] Relatório de 10 anos do TMS –  FIFA-Ten-Years-International-Transfers-Report.pdf – última consulta: 17.11.2021

[2] Relatório TMS 2016 –  global-transfer-market-report-2016-men.pdf (fifa.com) – última consulta – 17.11.2021

[3] Relatório TMS 2019 global-transfer-market-report-2019-men.pdf (fifa.com) – última consulta – 17.11.2021

[4] Estudo CIES Football Observatory – Weekly Post 292 (football-observatory.com) – última consulta 17.11.2021

[5] CIES Football Observatory Performance Atlas (football-observatory.com) – última consulta: 18.11.2021

[6] Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA –  gqzmnznyg97hpw17e5pb-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 18.11.2021

[7] Santos rejeita proposta do Chelsea por Neymar (terra.com.br) – última consulta: 20.11.2021

[8] Campeonato Brasileiro Série A – Valores más altos 2021 | Transfermarkt – última consulta: 20.11.2021

[9] Justiça reconhece direito do Vasco de centralizar execução de dívidas trabalhistas | vasco | ge (globo.com) – última consulta: 21.11.2021

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