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Todos temos direitos em qualquer lugar do mundo, inclusive o de praticar esporte

Na coluna de hoje voltamos ao tema do Direito Internacional e o esporte. Sei que citações longas são muitas vezes maçantes, mas convido o leitor a ler a passagem abaixo. Tenho certeza de que vai gostar:

[…] o texto da Declaração representa um decisivo “turning point”, que proponho sintetizar na fórmula da “desterritorialização do direito”. Essa expressão, por mim introduzida no recente debate filosófico através de uma série de discussões com Jürgen Habermas (1998), Alain Touraine, Étienne Balibar e outros, se ancora de modo particular no enunciado do art. 6.º da Declaração Universal: “todo indivíduo tem direito em todo lugar” – logo, independentemente do contexto do Estado territorial soberano em que se encontra – “ao reconhecimento da sua personalidade jurídica”.

Esse texto (Passado e futuro dos direitos humanos – Da “ordem pós-hobbesiana” ao cosmopolitismo da diferença) foi escrito pelo filósofo italiano Giacomo Marramao, professor da Universidade de Roma III e um dos últimos pensadores vivos que conviveram com os grandes nomes da Escola de Frankfurt. Tive a oportunidade de ter assistido a suas aulas na Universidade de Brasília (UnB), onde era convidado pela Faculdade de Direito a nos incutir mais dúvidas, mais certezas de nossas limitações, pobres alunos de doutorado em Direito Constitucional.

Mas voltemos ao seu texto. Repare nas seguintes expressões: “Declaração Universal”, “art. 6º”, “turning point”, “todo indivíduo tem direito em todo lugar”. E qual é o conceito que amalgama todas essas palavras aí em cima, que lhes dá sentido? A resposta é “desterritorialização do direito”.

Comecemos a analisar cada uma das expressões pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Primeiro, qual é o seu contexto? Havia somente três anos que os Aliados, capitaneados por EUA e União Soviética, capitalistas e socialistas, tinham alcançado o feito dos mais importantes para a história da humanidade: a derrota do nazifascismo. Os Aliados (oficialmente chamados por “Nações Unidas”) congregavam ainda a resistência francesa e italiana (dentre eles os partisanos, que lutavam nos territórios ocupados. E, amigo, “Bella Ciao” foi composta pra eles, e não para assaltantes de banco), os nacionalistas e comunistas chineses que combatiam o invasor Império japonês, assim como o Reino Unido e dezenas de outras nações, dentre elas o Brasil. Os horrores praticados em nome do fascismo de Mussolini e Franco, do nazismo de Hitler e da suposta supremacia racial nipônica no Extremo Oriente foram suficientes para que os Aliados, que lhe impuseram a rendição, trabalhassem para que se consolidasse um “não mais” a tanta barbárie. Assim foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU) ou, naquele momento, a Organização dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, os Aliados.

Juridicamente falando, a ONU baseia-se na Carta das Nações Unidas, que, além de ser a coluna vertebral da própria entidade, dá as bases para uma constitucionalização do Direito Internacional Público. Ela por si só traz princípios gerais de direito que assegurariam a luta pela dignidade da pessoa humana, pela supremacia dos Direitos Humanos em todo o mundo. Repare, porém, que somente os membros das Nações Unidas, hoje 193 estados, se obrigam diretamente aos seus comandos (a exceção estaria no “Jus Cogens Internacional”, mas depois falamos sobre isso). Por isso mesmo e ainda numa tentativa de reforçar a positivação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a comunidade internacional, em um esforço sem precedentes, proclamou em 1948 que nenhum Estado, nenhum governante, nenhum ser humano, a partir daquele momento, poderia deixar de observar uma nova norma de Direito Internacional: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Trata-se de um avanço civilizatório descomunal, um “turning point”. Primeiro porque é de uma magnitude jurídica inigualável, por se tratar da promulgação do resguardo da garantida de que a dignidade de qualquer pessoa deva ser respeitada em qualquer lugar da Terra. Segundo porque rompe com a lógica da tese do “voluntarismo estatal” no campo do Direito Internacional. Ao contrário da Carta das Nações Unidas e tanto outros atos internacionais clássicos, a Declaração Universal de 1948 é impositiva, independentemente da aquiescência formal do Estado.

É por essa razão que Marramao nos chama a atenção para o fenômeno da desterritorialização do direito. A vontade do Estado soberano aqui é mitigada, dado que as normas da Declaração se impõem internamente em seu território de jurisdição ou nas suas ações além-fronteiras sem que sua adesão seja um pré-requisito.

Do mesmo modo, Marramao nos conclama a ler com mais calma o que dispõe o art. VI da Declaração Universal:

Artigo VI
Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.

Marramao está certo de que o dispositivo acima trata da “personalidade internacional do indivíduo” ou, como nós internacionalistas preferimos denominar, de “subjetivação internacional do indivíduo”. Ok, mas veja que o filósofo italiano pede mais detalhamento nessa interpretação. O início do texto do artigo diz que “Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares”. Ser o quê? Portador de direitos, meu caro. O sujeito de Direito Internacional, inclusive o indivíduo, passou a ser um cidadão global que exerce todos os direitos prescritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos como aqueles outros que são irrenunciáveis, o núcleo duro do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o “jus cogens”, em qualquer parte do globo, não se esquecendo de todos os outros direitos assegurados em tratados.

Agora eu lhe peço que repare no que dispõe o mais importante ato internacional voltado ao esporte, a Carta Internacional da Educação Física, da Atividade Física e do Esporte da Unesco, de 1976:

A Conferência Geral da UNESCO,
1. Recordando que, na Carta das Nações Unidas, os povos proclamaram sua fé nos direitos humanos fundamentais, bem como na dignidade e no valor da pessoa humana, e afirmaram sua determinação de promover o progresso social e melhores condições de vida,
2. Recordando que, pelos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, todas as pessoas são titulares de todos os direitos e liberdades nela estabelecidos, sem qualquer tipo de discriminação com base em raça, cor, sexo, idioma, religião, convicção política ou opinião, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra,
[…]
13. Proclama esta Carta Internacional, com o propósito de colocar a educação física, a atividade física e o esporte a serviço do desenvolvimento humano….
Artigo 1 – A prática da educação física, da atividade física e do esporte é um direito fundamental de todos.
1.1 – Todo ser humano tem o direito fundamental de acesso à educação física, à atividade física e ao esporte, sem qualquer tipo de discriminação com base em etnia, gênero, orientação sexual, língua, religião, convicção política ou opinião, origem nacional ou social, situação econômica ou qualquer outra.
1.2 – A liberdade de desenvolver habilidades físicas, psicológicas e de bem-estar, por meio dessas atividades, deve ser apoiada por todos os governos e todas as organizações ligadas ao esporte e à educação.

Ora, caríssimo leitor, está claro, não é? Nos termos da Declaração Universal dos Direito Humanos, o cidadão global tem direitos assegurados em qualquer lugar do planeta. Essa Declaração baseia a Carta da Educação Física da Unesco (organismo especializado das Nações Unidas), que assegura, por seu turno, o direito universal à prática esportiva.

A Unesco, nesse ato internacional, declara que o acesso à prática esportiva é um direito fundamental do ser humano, em qualquer parte do mundo, e que a ele deve ser assegurado o exercício dessa prerrogativa com liberdade.

O Direito Internacional Público aqui, independentemente do que regula o sistema transnacional do esporte, a Lex Sportiva, assegura o direito ao esporte enquanto um preceito universal fundamental. Dentre os Direitos Humanos fundamentais, está, assim, o direito ao acesso à prática esportiva.

O item 1.2 do art. 1º dessa mesma Carta da Unesco fala sobre a liberdade necessária para o exercício desse direito fundamental ao esporte. Não estaria aqui um gancho para falarmos novamente acerca de autonomia esportiva, só que agora com base no Direito Internacional Público? Volto ao tema na próxima coluna.

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