“Antígona (442 AC?) é uma peça escrita por Sófocles, que faz parte das chamadas “tragédias gregas”, gênero teatral que se notabilizou por trazer à tona as paixões e imperfeições humanas.
No seu trabalho, Sófocles aborda o embate entre Antígona e o Rei Creonte, a respeito de uma transgressão cometida pela mulher ao decreto editado pelo soberano.
Referido edito proibia, sob pena de morte, que qualquer pessoa sepultasse o corpo de Polinice, por haver sido considerado pelo monarca um traidor do reino. Assim, seus restos mortais deveriam ficar expostos para que fossem devorados pelos animais à vista de todos.
Antígona, irmã de Polinice, se rebela contra a lei de Creonte, pois esta violava a dignidade de seu irmão. Ademais, conforme as leis divinas, quem morresse sem os rituais fúnebres vagaria 100 anos nas margens do rio que levava ao mundo dos mortos, sem poder atravessá-lo durante esse período.
Destemida, Antígona decide enterrar o cadáver, prestando a Polinice as honras funerárias, razão pela qual ela foi condenada à pena capital por seu “crime”.
No meio dessa verdadeira tragédia que a humanidade está vivenciando com o corona vírus, figuras semelhantes à Creonte e Antígona parecem aflorar na sociedade.
Foi o que aconteceu na Argentina. O River Plate negou-se a disputar a partida contra o Atlético Tucumán, pela Copa da Superliga, alegando que a saúde de seus jogadores e das demais pessoas envolvidas na realização do jogo estariam em risco.
No Brasil outras “Antígonas” surgiram. Os jogadores do Goiás se recusaram a entrar em campo pelo campeonato goiano, o que levou a federação a suspender o campeonato.
Na Justiça Desportiva, o Tribunal de futebol de Brasília manteve até o último instante a sessão de julgamento, que só foi suspensa após a pressão exercida pela advocacia.
O drama desenvolvido por Sófocles discute a legitimidade das leis e o limite do dever de obediência ao soberano, quando a norma atente contra a dignidade das pessoas.
Embora escrita há quase 2. 500 anos, a atualidade da obra de Sófocles é impressionante. Como salientam inúmeros tratados e convenções internacionais sobre o tema, nenhuma lei, decreto, portaria ou um simples regulamento esportivo tem a direito de suprimir certas prerrogativas que todos possuímos pelo simples fato de sermos humanos.
Neste sentido, Antígona mostra que existem direitos universais que se sobrepõem às regras editadas por um monarca. Dividida entre cumprir um decreto absurdo e respeitar a dignidade de seu irmão (não havia algo mais indigno na Grécia do que não sepultar um homem), Antígona não teve dúvidas sobre qual norma deveria seguir.
Sua resposta a Creonte é de arrepiar:
“A tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses. Porque essas não são leis de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos: ninguém sabe quando apareceram. Não, eu não iria arriscar o castigo dos deuses para satisfazer o orgulho de um pobre rei.”
Sófocles também lança o gérmen de um direito que seria melhor trabalhado mais de 2 mil anos depois: o direito de resistência, que vem a ser a prerrogativa que as pessoas possuem de resistir ou de se insurgir contra fatores que ameacem a sobrevivência ou que representem violência a valores éticos ou morais.
Como salienta John Milton “a lei de natureza autoriza qualquer homem a se defender, mesmo do próprio rei”.
Assim, entre respeitar as ordens de uma federação, clube ou tribunal desportivo que ponham em risco a integridade física ou fazer valer os direitos fundamentais, dentre os quais o direito à saúde, não é necessário refletir muito qual deva preponderar.
Apesar de ser óbvia a resposta, parece que muitos ainda não conseguiram compreender. Foi o caso, por exemplo, da Associação de Futebol da Argentina e a Superliga, ao afirmarem que a “transgressão” do River Plate ao regulamento não ficaria impune…
Tal como Creonte, eles parecem considerar que suas normas, ao serem aplicadas, não precisam passar por qualquer valoração ética, confundindo Lei com Direito e se esquecendo que os direitos humanos estão acima de qualquer regra jurídica.
Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela dentre outros, nos mostraram que nem sempre aquilo que é legal é legitimo e merece ser obedecido. Todos lutaram contra determinações e normas aparentemente válidas, mas que esbarravam em valores que estavam num patamar superior ao que era imposto pelos governantes.
Uma lei que não se revista dos mínimos valores éticos não se compadece com o Direito e não pode jamais prevalecer, a menos que se queria criar uma verdadeira tragédia grega como foi a que vitimou Antígona.
Pois tão aterrorizante quanto a peça de Sófocles é constatar que, em pleno século XXI, ainda circula um vírus capaz de provocar trágicos desfechos sociais:
A arbitrariedade.