Na madrugada da sexta-feira, 8 de fevereiro deste ano, um curto circuito no ar condicionado provocou um incêndio nas dependências do Centro de Treinamentos George Helal, do Flamengo. As chamas se espalharam rapidamente pela estrutura inflamável das divisórias entre contêineres que compunham o alojamento do clube carioca, ceifando os sonhos de dez garotos que dormiam no local. A morte dos jovens com idade entre 14 e 17 anos que integravam as categorias de base do rubro-negro, fez com que o Ministério Público do Trabalho aumentasse as fiscalizações em CTs e alojamentos das categorias de base pelo país.
“Em São paulo, todos os CTs foram vistoriados, tiveram fiscalização da prefeitura, provocou uma fiscalização geral. Um ambiente sadio e saudável é condicional. Quem fiscaliza não são as entidades de desporto, não é questão legal da Lei Pelé. [CT] é como se fosse uma escola onde as pessoas dormem. Entidades esportivas não têm poder de polícia, quem é ausente é o estado. O que a nossa legislação deveria mudar é atrelar o esporte à educação, ser um dos elementos da educação, ligado a escolas e universidades. Com uma massa populacional maior, naturalmente teria um controle maior do estado”, analisou Paulo Feuz, presidente da da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP.
Entre as principais questões encontradas pela força-tarefa do MPT constatou-se a existência de instalações elétricas precárias e a falta de certificado de conformidade de proteção contra incêndios, como exigido pelo Corpo de Bombeiros. Além disso, problemas que dizem respeito às condições de saúde e segurança do trabalho nos alojamentos, bem como irregularidades no trabalho do atleta mirim. O órgão defende o uso do contrato de aprendizagem para garantir o respeito aos direitos dos atletas mirins.
A tragédia serviu para que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e o Flamengo assinassem um Termo de Ajustamento de Conduta, com a definição de obrigações do clube para garantir segurança, escolaridade e saúde aos atletas das categorias de base nas instalações do Ninho do Urubu.
O TAC assinado pelo MPRJ e Flamengo tem por objetivo obter o compromisso do clube da execução das medidas necessárias para garantir às crianças e aos adolescentes que atuarem no Flamengo os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Uma das principais medidas previstas é o novo formato dos alojamentos: os dormitórios deverão ter capacidade máxima de seis atletas, sala de estar adequada à quantidade de adolescentes residentes, sala de jantar e banheiros em condições de higiene e salubridade.
O documento prevê ainda a oficialização de contratos de formação dos jogadores residentes ou não do CT com a previsão de bolsa para os atletas de faixa etária entre 14 e 20 anos, conforme determina a Lei Pelé; o acesso e a permanência do jovem em estabelecimento regular de ensino, com adequação do tempo de sua formação aos horários escolares; e a manutenção de programa de reforço escolar. Obriga ainda a realização de exames médicos anuais, com avaliação das condições físicas na admissão e no desligamento, e oferta de alimentação elaborada por nutricionistas. Caberá ao Flamengo disponibilizar equipe multiprofissional com assistente social, psicólogo, pedagogo e monitores.
“Sempre que se lida com vidas há que se ter cuidado e atenção a todas as regras e protocolos. Nas estruturas da base é sempre um papel conjunto do clube e autoridades que avaliam o funcionamento das estruturas. Mantê-las com manutenção e alvarás em dia, seguir parâmetros internacionais de segurança, enfim, garantir o bom funcionamento das estruturas. O ocorrido tem que servir de exemplo para avaliar o que houve e evitar a repetição. É possível que (tenha melhorado as condições) sim. Ao menos atacaram os problemas mais gritantes”, afirmou o executivo do Itaú BBA, onde é o responsável por estudos sobre a situação financeira dos clubes brasileiros.
Já há alguns anos a CBF tem concedido o Certificado de Clube Formador, um documento que atesta a qualidade dos clubes no desenvolvimento técnico de jovens atletas. Hoje são 38 clubes certificados, em um universo de aproximadamente 700 clubes no país, com documentos que podem ser renovados por anualmente ou a cada dois anos. O Flamengo tem o certificado “B”, válido por um ano. Para Paulo Feuz, a única punição esportiva possível é retirar do clube o documento que a CBF concede aos clubes.
“Entendo que não [deve ser retirado o certificado do Flamengo], pois isso agravaria a situação prejudicando muitos jovens em formação. No Brasil existe uma cultura que pessoalmente não entendo no sentido de que mudanças devem ser precedidas de punições extremas. A fatalidade aconteceu e já serviu de alerta. O Flamengo sentiu na pele pela perda desses meninos. Sem chance de algo parecido ocorrer”, pontuou Marcelo Jucá, presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/RJ.
No quesito das indenizações, o Flamengo ainda está longe de resolver a questão. A agremiação entrou em acordo com as famílias de três jogadores: Athila Paixão, Gedson Santos, o Gedinho, e Vitor Isaías. Além do acerto com o pai de Rykelmo. A mãe de Rykelmo resolveu entrar na Justiça contra o clube rubro-negro e pede R$ 6,9 milhões entre danos morais e pensão.
“Toda situação de crise merece atenção rápida e especial. Quanto mais o tempo passa sem solução pior é o efeito. Ainda mais num caso envolvendo vidas. Apesar da complexidade da situação, sempre fica uma imagem de inacabado, e isso é ruim”, alertou César Grafietti.
A primeira versão do inquérito policial determinava o indiciamento de oito pessoas por homicídio doloso (quando se assume o risco de matar), incluindo dois engenheiros do Flamengo e o ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello. Porém, em julho deste ano, os promotores do Ministério Público devolveram o inquérito para a Polícia Civil, sob o argumento de que as provas apresentadas não eram suficientes.
Segundo o advogado criminalista João Paulo Martinelli, eventual denúncia no artigo 121, inciso III, do Código Penal, que versa sobre mortes “com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel” e tem pena prevista de 12 a 30 anos, deve demorar a ter um resultado.
“Se arrastam muito porque existe a decisão de pronúncia, que é quando o juiz manda o acusado para o tribunal do júri decidir. Antes de ir para o tribunal do júri, cabe recurso até o Supremo Tribunal Federal”, esclarece o criminalista.
Martinelli também questiona a inclusão do ex-presidente do Flamengo como um dos possíveis indiciados.
“Um presidente de um clube tem seus subordinados, não tem a função de supervisionar todos os processos. Cabe ao Ministério Público provar que ele tinha conhecimento da situação, de que poderia acontecer a tragédia e não fez nada. Se a teoria do domínio do fato for usada como deveria, se não tiver prova que tinha conhecimento e condições de evitar a tragédia, não tem porque responder pelo crime. A responsabilidade por omissão só é possível se haver provas que ele sabia. Não pode imputar culpa ou dolo apenas pela posição que ele ocupa. Não é uma responsabilidade objetiva”, resumiu Martinelli.
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