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Transgêneros: há caminho para resolver esse conflito jurídico no esporte

Não foi o Bernardinho em um desabafo infeliz que trouxe à tona a discussão sobre transgêneros no esporte. Claro que não. Esse tem sido o principal debate jurídico-esportivo já há algum tempo em todo o mundo. E ele coloca em lados opostos dois princípios fundamentais ao esporte: direitos humanos versus paridade de armas, que visa garantir equilíbrio entre os adversários a fim de assegurar a “incerteza do resultado”.

Estaríamos, então, diante de algo inconciliável. De um confronto em que um dos lados sairá necessariamente derrotado. Nessas horas, é sempre bom ouvir, conversar, refletir e ler os sábios.

“Diálogo Bobo
– Abandonou-te?
– Pior ainda: esqueceu-me…”

O poeta gaúcho Mario Quintana era um mestre em dialogar. E, mais, em jogar na nossa cara a importância de colocar em prática esse verbo. Taí um ensinamento indispensável para o Direito Esportivo, principalmente quando se fala em transgêneros no esporte. Aqui há um conflito permanente que exige muita conversa para encontrar o caminho mais correto numa equação: equilíbrio esportivo versus direitos humanos.

Não vamos aqui trazer um caso jurídico específico que acabou gerando consequências legais para todos os atletas que disputam determinada modalidade, ou um movimento jurídico que acabou trazendo consequências para a lei esportiva. Nem falar unicamente da discussão envolvendo a Tiffany, ou Ana Paula. Até porque a discussão é muito maior e mais importante do que um bate-boca entre duas pessoas do vôlei brasileiro. Vamos aqui mostrar como uma série de conquistas individuais fez com que a Lex Sportiva passasse a rever o critério da participação de transgêneros no esporte.

É preciso lembrar vários casos fundamentais ao longo da história, que levaram a discussões jurídicas, pesquisas científicas, reflexões e debates. E esses grandes encontros acabaram provocando um novo entendimento do Comitê Olímpico Internacional sobre o tema, que tem mudado o esporte e gerado novas e grandes discussões.

Antes de mais nada, tem uma lição do meu avô Darci – que nunca fez Direito –, sobre ética, que acho fundamental. Na dúvida sobre o que é o certo, “coloca-te no lugar daquela pessoa e te faz uma pergunta: você acharia certo se fizessem o mesmo contigo? A resposta pode ser teu guia”.

Agora, o exercício. Imagine-se sendo alguém apaixonado por esporte. Que o pratica desde sempre. Tem o sonho de investir numa carreira, treina para isso, abre mão de finais de semana de livros, ócio, farra, por suor, treino e dedicação atrás de um sonho olímpico. Mas tem um problema. Você não se sente bem no seu corpo. Mais do que isso, você não se reconhece nesse corpo. E trocar de sexo representa o fim do sonho de atleta. Ficou complicado agora, né? Seria preciso escolher.

Vários atletas não concordaram com essa escolha. Ela não parecia justa. Então, se abasteceram de coragem e compraram brigas jurídicas contra entidades esportivas poderosas, criaram inimigos íntimos, ganharam antipatia no esporte que praticavam; mas também conquistaram apoio, desmascararam preconceitos e fizeram história.

A primeira transexual no esporte foi uma tenista. Ela nasceu Richard. Nos anos 1970, fez operação de mudança de sexo e passou a se chamar Renée Richards. Talentosa, teve que entrar na Justiça para poder disputar o torneio feminino do tradicional US Open, um dos cinco principais torneios de tênis do mundo. A Suprema Corte americana, em 1977, garantiu a ela o direito de disputar torneios de tênis feminino, quando já tinha 43 anos.

Mas tem também a argentina Jéssica Millaman, que, apaixonada por hóquei, venceu a prostituição e a associação local para poder se dedicar ao esporte. Ela entrou com uma ação na Confederação Argentina de Hóquei, que acabou liberando-a para todos os campeonatos femininos.

Tia Thompson, do vôlei de praia, nasceu homem. Fez a transição de sexo. Precisou esperar quase três anos para finalmente obter autorização para jogar como mulher. Ela tem chances de representar os Estados Unidos na Olimpíada de 2020. Por aqui chegamos ao caso de Tiffany Abreu, a primeira transexual brasileira a conseguir autorização da Federação Internacional de Vôlei para atuar entre as mulheres.

O caminho de Tiffany e de Tia foi facilitado por uma nova determinação do Comitê Olímpico Internacional, que veio depois de muita disputa e discussão jurídica, levantadas por precursoras como Renée.

Antes de falar sobre o cerne das disputas que levaram ao entendimento do COI, é importante dizer que também existem, claro, atletas trans que passaram de mulheres a homens. Mas essa é uma transição mais tranquila, até porque as entidades esportivas dificilmente alegariam um dos princípios que servem de argumento para a não autorização de atletas trans no esporte: a quebra do equilíbrio esportivo.

O direito esportivo tem como um dos princípios fundamentais o da “paridade de armas”. Ou seja, dar condições iguais aos competidores para garantir a “incerteza do resultado”, que também é da natureza do esporte. Em tese, homens têm vantagens físicas, como força, sobre mulheres, o que levaria um atleta trans autorizado a jogar a romper com esse princípio.

Acontece que a não discriminação também é um direito consagrado em todas as cartas mundiais de Direitos Humanos, reconhecidas por muitos dos países filiados ao movimento olímpico, que também prega a bandeira da igualdade. Além disso, está na Carta Olímpica, no sexto princípio fundamental do Olimpismo, que é condenada qualquer discriminação dentro do esporte.

E tudo isso tem sido considerado nessa revolução recente que vive o esporte.

Confrontados com casos como o de Renée, o que se percebe na Lex Sportiva é que os tribunais e o próprio TAS/CAS têm permitido um diálogo com outras ordens jurídicas, principalmente quando a questão versa sobre direitos humanos.

Mas calma lá para quem já quer gritar contra o caminho que o texto vai seguindo. O entendimento predominante tem sido de que é possível excluir pessoas com base no gênero quando a força ou a condição física forem determinantes para o resultado. O detalhe é que isso tem de ser comprovado por testes científicos e pela entidade que não quer permitir a participação do atleta.

Em função de decisões dos tribunais e dos princípios olímpicos, o COI estabeleceu, em novembro de 2015, novos critérios para permitir a participação de atletas transgêneros. A entidade pede que mulheres trans se declarem do gênero feminino (reconhecimento civil) e tenham nível de testosterona inferior a 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes da estreia em competições femininas. Operação para mudança de sexo não é mais obrigatória.

Embora ainda se verifique que as entidades esportivas têm tentado, com estudos científicos, proteger critérios para a preservação de uma competição mais igual, de acordo com princípios do direito esportivo, é possível também perceber uma clara abertura a questões de direitos humanos. Ou seja, a Lex Sportiva tem permitido diálogos entre diferentes ordenamentos jurídicos e se desenvolvido com isso. São os entrelaçamentos transconstitucionais que proporcionam aprendizados.

Repito: esse assunto tem sido discutido no Brasil e no mundo. Com argumentos inteligentes e científicos dos dois lados. Acredito que o caminho tomado pelo COI e pelos tribunais, de controlar e acompanhar esse processo de transição, respeitando a natureza de cada um e tentando proteger a essência do jogo, seja o mais adequado.

Mas a discussão continua. A reflexão é permanente, e o diálogo, sempre indispensável.

Tiffany, Tia e outras atletas também devem ter aprovado esse diálogo necessário no Direito Esportivo. Afinal, o mestre Quintana sempre soube das coisas.

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