Você imaginaria que a justiça esportiva brasileira nasceria voltada apenas ao futebol? E mais, que teria sido criada pelo Estado para “exercer rigorosa vigilância sobre o profissionalismo” nesta modalidade, de modo a mantê-lo dentro “de princípios de estrita moralidade”? E, não bastasse isso, que fosse gestada por um ato de um órgão de governo, uma resolução do Conselho Nacional de Desportos (CND)? E que, pasmem, dispusesse que os campeonatos estaduais teriam sempre mais de uma categoria (divisões) e que na primeira divisão o máximo de clubes permitidos seria de doze? O Estado ditando o número de jogadores em campo!?
Sim! Tudo isso consta da Resolução do CND publicada no Diário Oficial da União de 4 de novembro de 1942.
Em minhas pesquisas, sempre me deparava com menções a esta resolução, mas nunca havia conseguido uma cópia para poder ler o texto original. Só a conhecia por citações. Pois agora trago para o Lei em Campo com exclusividade uma análise que consegui fazer justamente da íntegra de sua versão original.
O texto é de um valor histórico tremendo. Há que se lembrar que a esta altura o CND ainda era dirigido por Luis Aranha, representante da corrente de dirigentes esportivos com assento no Botafogo do Rio de Janeiro que venceu a luta contra Arnaldo Guinle, do Fluminense. Isso significou o triunfo da ala antiprofissionalismo, a mais classista e racista da época, que tomou o poder total dos esportes, seja por meio do Estado (CND) seja na “Lex Sportiva” (CBD).
Os considerandos que constam da norma publicada no Diário Oficial da União são emblemáticos acerca da indisposição dos donos do poder do esporte no Estado Novo com o profissionalismo:
Ao C.N.D. compete incentivar, por todos os meios, na forma da letra b, do mesmo artigo “o desenvolvimento do amadorismo, como prática de desporto educativa por excelência, e, ao mesmo tempo, exercer rigorosa vigilância sobre o profissionalismo, com objetivo de mantê-lo dentro de princípios de estrita moralidade.”
Sabe-se que, em 1942 a contratação de atletas profissionais já era prática corrente nos clubes brasileiros, já cansados de perder craques para equipes europeias. Contudo, os primeiros escribas jusesportivos nacionais se aferravam no anacronismo, na tentativa de humilhar as camadas pobres da população que ascendiam por meio do futebol.
O preconceito tanto se espelhava na terminologia empregada (“estrita vigilância sobre o profissionalismo”), de modo a restringir a entrada e pobres e negros nos clubes, justamente quem dependia de se profissionalizar para estar no futebol de alto nível, como em parâmetros normativos práticos, na forma do que transcrevo do item 5 das “instruções gerais” da Resolução:
- Exceto nos casos a que se referem os itens 3 e 4 destas instruções, os campeonatos promovidos pelas federações ou a estas sujeitos serão disputados, exclusivamente, por atletas amadores, não se admitindo a burla a este princípio. Só as associações de primeira categoria poderão possuir atletas profissionais, sujeitando-se a limitação prescrita no item 9.
Esta primeira trava era fatal para os pequenos clubes e aos atletas que não conseguiam vaga em equipes de maior expressão.
Não obstante isso, a segunda restrição é de maior envergadura, porque afastava do futebol profissional os atletas de menor instrução ou analfabetos, o que era regra nas camadas populares àquela época:
- A partir de 1 de janeiro de 1945, na forma do item 23, da portaria n. 254, expedida pelo Ministro da Educação, não poderá ser profissional o atleta brasileiro que deixar de fazer prova de haver completado o curso primário em estabelecimento de ensino oficial ou oficialmente reconhecido.
Para terminar, a norma ainda proibia no item 11 seguinte a prática amadora de futebol nos clubes de elite aos desempregados, subempregados ou àqueles que não eram estudantes, situações praticamente impossíveis de se safar aos jovens pertencentes a famílias de baixa renda, que se viravam com “bicos” e não conseguiam se manter na escola:
- Não poderá ser inscrito como amador, em associação de primeira categoria, o atleta que não prova, por meio de carteira profissional instituída na forma da lei, o exercício de profissão idônea ou que não fizer prova de matrícula e frequência em curso de ensino oficial ou oficialmente reconhecido ressalvada, a juízo da Confederação Brasileira de Desportos (C.B.D.), a situação dos atletas estrangeiros; a serviço no Brasil, ou de atletas brasileiros em atividade fora do país, sempre que a este retornarem periodicamente. A qualquer tempo, a federação poderá eliminar o atleta, tido como amador, se, por meio de denúncia fundada, ou de ofício, colher prova de estar ele deturpando o sentido amadorista do desporto. Apurada a deturpação, a federação aplicará à associação responsável pela inscrição do atleta, a pena de suspensão ou de afastamento do campeonato respectivo.
Há muita coisa ainda para contar sobre este bizarro início da justiça esportiva brasileira e a norma do CND que a instruiu. Vai render ainda outras edições da minha coluna.