O fim de semana que passou não discutiu apenas a realização de uma partida do Brasileiro. Esteve em jogo também a continuidade do campeonato e o sistema jurídico do esporte nacional. A decisão do TST a instantes do horário de começar Palmeiras e Flamengo trouxe um alívio momentâneo para o movimento esportivo, mas mostrou que existe um risco grande dele entrar em colapso.
O esporte se viu ameaçado pelo poder do Estado. E isso normalmente acontece quando ele não consegue se proteger da maneira adequada.
O escândalo do Fifagate é um exemplo. Os mais importantes dirigentes do futebol mundial se aproveitando do cargo que ocupavam para ganhar dinheiro para si. A Fifa não se protegeu, o Estado interviu, prendeu, julgou e condenou os dirigentes. A Fifa teve que agir, e criou mecanismos internos de proteção, com novo código de ética e pilares de complicance.
Basta esse exemplo. Ao caso do fim de semana.
Esqueça time. Esqueça paixão.
Mas o esporte não pode esquecer que proteção a dignidade humana, a defesa de direitos humanos está na sua natureza. Se há risco iminente à saúde dos envolvidos no jogo, e o movimento esportivo não consegue agir, o Estado encontra espaços para atuar.
Se há risco à saúde dos envolvidos no futebol, a Justiça Comum vai agir.
E assim, o esporte é o maior ameaçado.
A ameaça ao campeonato
Sobre a realização do jogo haviam duas decisões.
– Do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que é um órgão privado com competência constitucional. Ele analisou regras do esporte, o protocolo do campeonato, número mínimo de atletas aptos a jogar e regras de direito e decidiu pela realização do jogo. Trata de decisão relacionada à competição, é da competência da Justiça Desportiva.
– Da Justiça do Trabalho. O juiz entendeu que pelo alto número de contaminados no Flamengo a partida implicaria em riscos à saúde de todos os envolvidos, e deferiu liminar cancelando jogo. Decisão diz respeito relação de emprego, à saúde do empregado (comissão técnica, atletas e delegações), é da competência trabalhista.
E agora?
Vale a decisão da justiça estatal.
CBF, por entender que no mundo civilizatório só existe o caminho do respeito às leis, teria (e iria) cumprir a decisão judicial.
Mas, dentro do seu direito. Recorreu.
Depois de ter negado recurso ao Tribunal Regional do Trabalho, no STJ (sobre competência) restou a decisão do TST.
A última esperança. Caso ele mantivesse a liminar, abriria um precedente para que os tribunais estatais decidissem questões do jogo. Em todos os cantos do Brasil. O Brasileiro ficaria seriamente ameaçado.
Instantes antes do jogo, Tribunal Superior do Trabalho (instância maior dessa justiça especial) cassou a liminar e manteve jogo.
Movimento esportivo respirou. E cadeia jurídica do esporte sobreviveu.
O risco de uma crise era gigante.
Ë preciso entender a organização do esporte para entender o risco que ele correu no fim de semana.
Como esporte se organiza
O esporte se organiza dentro do princípio da autonomia esportiva, garantida inclusive como mostrado acima pela nossa Constituição Federal. O inciso I do artigo 217 da Constituição Federal garante essa autonomia às entidades desportivas, dirigentes e associações, quanto à organização e funcionamento.
Ou seja, o Estado reforça a natural autonomia esportiva, estabelecendo uma competência constitucional a esse órgão privado.
E por que precisa ser assim?
Um exemplo: imagine um Campeonato Brasileiro em que o VAR é permitido em São Paulo e Rio Grande do Sul, mas proibido no Rio de Janeiro e na Bahia? Ou um campeonato de vôlei em que transgênero pode jogar na França e nos Estados Unidos, e não no Brasil e no Irã.
Como ficaria um dos princípios mais caros ao esporte, o da paridade de armas, que garante equilíbrio entre os competidores?
Por isso existe a pirâmide associativa do esporte. Clubes são filiados a federações, que são ligados a confederações, que seguem (todas) as determinações do Comitê Olímpico Internacional (no caso do futebol, da FIFA). Essa associação é voluntária, e no direito esportivo é conhecida como Ein Platz Prinzip.
E TODOS precisam cumprir as mesmas regras. Inclusive o atleta, que ao assinar com um clube, se compromete com todas as regras e procedimentos da modalidade da qual o clube é filiado nessa cadeia, como numa espécie de contrato de adesão.
Ter uma justiça especializada e um caminho jurídico que respeite essa cadeia na busca de solução para litígios esportivos passa a ser crucial para a sobrevivência do movimento esportivo da forma como é organizado hoje.
Por isso que a CF também dá poderes a essa justiça especializada, permitindo a apreciação posterior do Poder Judiciário, sem nenhuma afronta ao acesso a justiça estabelecido na nossa CF.
A Constituição Federal de 1988 inovou, até mundialmente, e se tornou também a Lei Maior do esporte brasileiro. Ela entendeu a importância da área, sua influência na cultura brasileira, e suas necessidades jurídicas..
Ou seja, a Justiça Desportiva é uma justiça especializada e privada, que ganhou força constitucional para decidir sobre determinadas questões, mas possuindo uma eficácia limitada. E é nessa limitação que esta garantido o Livre Acesso à Justiça – princípio da Inafastabilidade da Jurisdição -, expresso na Constituição no art 5º, inciso XXXV.
E por que é importante existir uma Justiça Desportiva?
Simples: por causa da especificidade, da natureza particular do mundo do esporte.
Nem todos juízes entendem como o esporte funciona, e todas as peculiaridades do jogo.
Alváro Melo Filho, um dos maiores pensadores do Direito Esportivo brasileiro, na obra “Desporto na Nova Constituição” , escreve sobre o esporte na Constituição de 1988:
“Além das ideias e ideias subjacentes às normas desportivo-constitucionais, seu conhecimento é essencial e vital, conquanto caberá às entidades, órgãos e pessoas que integram a comunidade desportiva brasileira zelar pela eficácia jurídica e social de tais noras e fazer valer o direito nelas protegidos e assegurados”.
As crises
Em função desse privilégio necessário, o poder é gigante mas não ilimitado.
Muito poder pode gerar abusos. Algumas regras criadas por federações por vezes violam direitos profissionais, impedem acesso a Justiça, atacam princípios de direitos humanos, ou deixam de proteger a saúde dos personagens do jogo. E aí?
Aí, o Estado precisa agir garantindo direitos universais.
O futebol precisa entender que essa proteção de direitos humanos também é um dos seus princípios.
A verdade é: se a decisão do TST, instantes antes do jogo começar, fosse pela manutenção da liminar (e havia bons argumentos para isso – a saúde dos envolvidos), o efeito cascata seria devastador. Em cada estado do Brasil, um juiz poderia determinar o andamento do campeonato.
E a CBF poderia até discutir a possibilidade do campeonato, os clubes se voltariam contra o Flamengo exigindo punição e o sistema jurídico do esporte estaria seriamente comprometido.
O que fazer?
O exemplo do fim de semana, e dos repetidos casos de Covid-19 no futebol são sinais de que mudar o protocolo do Brasileiro é um caminho.
Eu participei de um programa do Lei em Campo com Paulo Schmitt e Milton Jordão, dois advogados que estudam muito o direito esportivo, e que analisaram o protocolo e os regulamento do campeonato e têm ouvido os especialistas de saúde pública. O Paulo, inclusive, tem um trabalho científico fantástico com a Universidade do Paraná sobre o coronavírus e o esporte.
Eles estão preocupados. Como a CBF também está.
A conclusão do programa foi: o protocolo é bom, mas o problema da pandemia ainda é gigante no Brasil e a realidade continental do nosso país exige ainda mais mudanças. Além disso, há sérias dúvidas se clubes estão seguindo as diretrizes estabelecidas.
Algumas ideias que surgiram num primeiro debate foram reforçadas nesse encontro.
1 – os testes precisam ser feitos em dois momentos.
Antes da viagem, que seria uma responsabilidade do clube com seus atletas e com todas as pessoas que terão contato com a delegação; e também depois da chegada na concentração, uma responsabilidade da CBF com todos os envolvidos na partida;
2 – o protocolo precisa trazer sanções contra clube que não o respeitar. .
Não adianta apenas recomendações sem punições. A letra do protocolo até tem eficácia, mas fica faltando efetividade. Sem punição, se o clube não respeitar o que está escrito, nada acontece.
3 – é preciso mudar o formato do campeonato, e acabar com os deslocamentos permanentes.
Num país continental, e com viagens semanais, o risco de contaminação é muito grande como se tem visto nesse início de campeonatos. É preciso definir sedes e colocar atletas em “bolhas”, assim como foi feito na Champions League e na NBA, por exemplo. Para não privá-los do convívio familiar por tanto tempo, poderia se estipular visitas periódicas dos familiares que seguiriam também um protocolo. Deslocamentos entre cidades que possam ser feitos de ônibus é algo que também pode ser estudado.
Uma das mudanças propostas no primeiro encontro, a CBF já tomou: definir número mínimo de atletas aptos a jogar para a realização da partida.
São ideias.
E todas pensando na saúde dos atletas, sem entrar em questões caras ao esporte mas que se tornaram menores em função dessa realidade inimaginável, como a isonomia entre os competidores (essa já sofreu danos em todos os lugares do planeta).
A CBF sempre repete que mantém um permanente diálogo para aperfeiçoar o protocolo. E que irá ouvir a todos. Os atletas também precisam falar.
E é importante que CBF e também os clubes os escutem, afinal eles têm o dever legal de proteger a saúde dos atletas.
Já escrevi que é um erro achar que o atleta é obrigado a jogar no meio de uma pandemia como a que estamos vivendo. Não é. Se o atleta se sentir inseguro, os protocolos não forem claros e as autoridades de saúde indicarem a necessidade de manter o isolamento, ou houver risco claro a saúde dele, o jogador tem respaldo jurídico para não voltar a trabalhar.
A Constituição Federal, no art. 7º, XXII, prevê como direito do trabalhador a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. Além disso, a legislação é transparente ao determinar que o empregador (clube) é responsável pela saúde e integridade de seus empregados (atletas). Isso está previsto também na Lei Pelé e na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Olha o risco de se repetir o que se viu antes de Palmeiras e Flamengo!
A responsabilidade é gigante. Dos clubes, e também da CBF, que organiza as competições nacionais.
O direito não é refém de questões materiais, sendo acionado só quando houver um prejuízo financeiro. A sua essência precisa sempre estar no sentimento de justiça e de proteção social. Como escreveu Ihering, “a faculdade de sentir a dor causada pela violação do direito e a energia – coragem – de repelir o ataque são os dois critérios do vigor do sentimento jurídico”.
A equação é realmente complicada. Organizar um campeonato em um país continental com uma pandemia em alta.
Mas é fundamental não esquecer que a prioridade número 1 será sempre a saúde de todos, como já disse Gianni Infantino, presidente da FIFA, e também Rogério Caboclo, presidente da CBF.
Buscar segurança jurídica e proteger direitos fundamentais no jogo tem sido um exercício permanente na atividade de quem trabalha com essa dupla fascinante, e extremamente ativa: direito e esporte. E nesse trabalho de confrontar realidades perigosas, é fundamental ter fôlego, ideias e coragem para tomar novos caminhos.
O esporte é mais do que um jogo, sim. Ele, como eu já escrevi aqui algumas vezes e se continuarei a digitar, também é um fenômeno social importantíssimo na construção de um mundo melhor. Ele já parou guerras, transformou pessoas, combateu preconceitos, e atropelou a fronteira invisível e cruel das diferenças sociais.
Ele dá exemplos. E nessa pandemia, também tem esse poder.
Não seria o campeonato dos sonhos. Verdade. Mas o risco de se viver um pesadelo seria muito menor.
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