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“UFC de Rua”: A responsabilização dos promotores frente à teoria do risco assumido

Vários eventos que se intitulam como “eventos de luta” têm sido notícia nos últimos meses no Brasil, alguns com resultados terríveis[1].

Muito embora os eventos se intitulem como “UFC[2] de Rua” (sendo o título um chamariz para o público, embora não se trate do renomado evento) ou “Boxe amador”, não se percebe o seguimento por parte dos organizadores de determinadas formalidades rem relação às regras das modalidades às quais os nomes dos eventos fazem referência: MMA e Boxe.

São usadas luvas de diferentes tamanhos, os jovens que competem não parecem ser do mesmo peso, não há ringue com acolchoamento adequado (o que ajudaria no amortecimento de queda em caso de um nocaute), entre outras necessidades.

O que se vê nessas competições são rapazes que não têm qualquer treino formal em esportes de combate competindo sem proteção adequada, o que já resultou na perda da vida de um jovem[3].

É nítida a falta de treino quando se percebe a ausência de guarda adequada dos jovens em relação aos golpes, o que demonstra que não são profissionais, a despeito da forma como o combate é conduzido, sendo digna de nota a conduta do árbitro, que permite que os envolvidos usem de forca excessiva em seus golpes em uma competição que se diz recreativa.

A questão, no caso de haver interferência do poder público em relação a tal prática, é que o inciso I do artigo 217 da Constituição Federal garante autonomia às entidades desportivas quanto à organização e funcionamento do esporte, que tem definição prevista no §1º do artigo 1º da nova Lei Geral do Esporte, in verbis:

LEI Nº 14.597, DE 14 DE JUNHO DE 2023

Art. 1º É instituída a Lei Geral do Esporte, que dispõe sobre o Sistema Nacional do Esporte (Sinesp) e o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Esportivos (SNIIE), a ordem econômica esportiva, a integridade esportiva e o Plano Nacional pela Cultura de Paz no Esporte.

§ 1º Entende-se por esporte toda forma de atividade predominantemente física que, de modo informal ou organizado, tenha por objetivo a prática de atividades recreativas, a promoção da saúde, o alto rendimento esportivo ou o entretenimento. (grifamos)

Em outras palavras, basta que os organizadores intitulem o que fazem como “esporte”, e nele ocorra atividade predominantemente física, ainda que informal, em busca de entretenimento (que parece ser o caso desses eventos), para que não se possa interferir na forma como as competições ocorrem.

Porém, isso não descarta a responsabilidade dos organizadores em relação às consequências.

No Brasil, a prática desportiva é exercida ao abrigo de um contrato, verbal ou escrito, gratuito ou oneroso, geralmente bilateral e excepcionalmente unilateral.

Assim, da violação de cláusulas contratuais, explícitas (na maioria dos contratos escritos) ou implícitas (porque não mencionadas, mais típicas da atividade desportiva praticada), surge a obrigação de indenizar.

Esta obrigação decorrente do descumprimento de cláusulas contratuais resulta da vontade das partes ou da lei. O contrato que sempre surge em uma prática esportiva pode ser traduzido como a união (acordo) de vontades visando o cumprimento das regras (lícitas) propostas para a atividade a ser desenvolvida.

Estas podem ser normas estabelecidas para atividades esportivas formais ou normas adaptadas de acordo com a vontade e possibilidade de quem pretende desenvolver esportes não-formais, como é o caso desse tipo de luta no Brasil.

Em princípio, é contrato desportivo unilateral (ou benéfico), exclusivamente, o fruto do desporto eminentemente social, levado a efeito por aqueles que se doam pela causa social, de forma completamente desinteressada (salvo pelo benefício social da causa), sem qualquer obrigação pessoal ou contrapartida (remuneratória, de marketing, política etc.).

É contrato unilateral, exclusivamente, no que se refere a esta pessoa (promotora social do desporto) e os beneficiados pela conduta desportiva (praticantes do desporto). Entre os praticantes do desporto, há contrato bilateral (entre si, possuem os praticantes do desporto um contrato bilateral). Significa dizer que, nesta hipótese restrita, a promotora social do desporto responderá pelas violações contratuais dolosamente provocadas, conforme o artigo 392 do Código Civil Brasileiro:

Código Civil

Art. 392. Nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei.

A responsabilidade civil na prática das atividades desportivas, e a razão da presente distinção, resulta da análise de tais violações contratuais que pode ser, em alguns casos, dolosa, culposa ou, simplesmente, de resultado danoso (objetiva), sem questionar se houve dolo ou culpa.

Independentemente de se perquirir qualquer culpa, sendo a incolumidade física dos competidores do torneio de responsabilidade do organizador da competição, qualquer risco referente a tal segurança decorre da atividade desempenhada.

Em caso de lesão causada pelos atletas por golpes desferidos por seus oponentes, a teoria com maior adesão em relação ao tratamento dessas lesões é a teoria do risco assumido, visto que a disputa de competição desportiva sujeita os competidores a riscos de todas as sortes.

No Brasil, a teoria do risco assumido (assumption of risk) vem sendo considerada como excludente de responsabilidade.

Bem et al. assim define a teoria do risco assumido[4]:

1 A teoria do risco assumido ou risco permitido

Segundo esta teoria, o fundamento da impunidade baseia-se no consentimento assumido explicita ou presumidamente pelos esportistas, que não será, normalmente, um consentimento em ser lesionado, na lesão concreta sofrida, senão no risco de que a lesão se produza, na colocação em perigo de um bem jurídico, a integridade corporal, disponível desde que se observem minimamente as regras do jogo ou lex artis. Não obstante, a doutrina sempre utilizou o consentimento para justificar suas propostas, e o fez desde uma dupla perspectiva: de um lado, entendendo que o consentimento atua como causa de justificação, e, de outro lado, como casa de exclusão da tipicidade. Assim, Jescheck refere-se ao consentimento como causa de justificação, contudo também como causa de exclusão da tipicidade, enfatizando o risco permitido. Segundo este penalista, o consentimento conduz a um direito no qual a prática do esporte cria o risco ou a lesão que as atividades esportivas implicam, de modo que o esportista aceita o risco do acidente ou da lesão corporal; no entanto, exclui o valor do consentimento nos casos de violação, dolosa ou com negligência grave, das regras do jogo. No mesmo sentido, há quem entenda que a chave para justificar a impunidade das lesões esportivas reside, sem mais delongas, no consentimento do sujeito, baseando-se na afirmação da relevância da anuência nas lesões, entendendo que o consentimento opera como causa de exclusão da tipicidade, pois invoca a impunidade destas quando causadas na prática esportiva. Um setor da doutrina também alude à circunstância do art. 155 do Código Penal de 1995 ao significar que, por mais que se utilize o consentimento, ele atenua, mas jamais exime a responsabilidade penal, pois não é possível que se trate de uma questão que se resolva de modo maniqueísta, isto é, na simples constatação de uma situação ser ou não punível, senão que ainda quando exista o consentimento, na ação antiesportiva se reduzirá a pena em um ou dois graus tal como prevê o artigo aludido, mas em nenhum caso será possível excluir a responsabilidade total de tal ação; assim, dizer que a lesão ou colocação em perigo de bens jurídico-penalmente protegidos neste campo só deixa de ser antijurídica quando exista consentimento do titular do bem jurídico disponível em dita lesão ou colocação em perigo tem uma implicação evidente; o consentimento tem de ser provado no caso concreto; nos casos nos quais se possa demonstrar que não existia tal consentimento, a conduta será em princípio contrária ao Direito, ainda que o problema não só será prová-lo, já que cabe também quando se trata de um consentimento tácito em virtude de atos concludentes, além de problemas de erro.

A assunção de risco é uma doutrina frequentemente aplicada a ações negligentes. Essa doutrina entrou em uso no final do século XIX e início do século XX e foi baseada no conhecimento, compreensão e apreciação do risco na prática de determinada atividade.

Conforme exposto, tal doutrina jurídica sustenta que os participantes de esportes assumem os riscos de seu esporte, e aqueles que aceitaram voluntariamente os riscos conhecidos e apreciados associados à participação na atividade estão impedidos de pedir ressarcimento de lesões resultantes de uma atividade quando se machucam enquanto participam da atividade recreativa. A assunção de riscos foi descrita pela máxima “volenti non fit injuria”, interpretada como a crença de que nenhum mal é devido.

No entanto, Mohamadinejad et al. (2012) leciona que não é sempre que a teoria da assunção do risco desassiste os praticantes em relação à pedidos de indenização por lesões[5]:

No entanto, a doutrina da assunção primária de riscos não protegerá o réu em todos os casos em que o autor estiver envolvido em uma atividade esportiva ou recreativa. A regra geral no atletismo é que os participantes aceitam os riscos normais e razoáveis das atividades e os golpes e colisões comuns incidentais ao jogo do qual participam (Wong 2010, Citron & Ableman 2003, Fast 2004). A doutrina da suposição de risco, portanto, não inclui incidentes anormais e de maneira não razoável (Citron & Ableman 2003, Wong 2010, Bernardi 2009) e acidentes causados por supervisão inadequada ou quando o réu negligentemente ocultou ou aumentou os riscos inerentes à atividade (Mandell & Dozis 2010). Lesões gerais causadas por negligência, imprudência, riscos que o participante desconhece (Wong 2010), violência indevida (Healey 2005), ações que são deliberada e desnecessariamente prejudiciais (Fast 2004, Citron & Ableman 2003); ou quando o atleta estava sob qualquer compulsão para participar não são cobertas por essa doutrina (Schot 2005). (tradução nossa) (grifamos)

O estudo acima evidencia a questão de que a doutrina do risco assumido nem sempre isenta o réu, mesmo que a atividade seja recreativa. O doutrinador assevera ainda que “acidentes causados por supervisão inadequada ou quando o réu negligentemente ocultou ou aumentou os riscos inerentes à atividade” e “Lesões gerais causadas por negligência, imprudência, riscos que o participante desconhece” não permitiriam a exclusão da responsabilidade do réu (nesse caso, o promotor do evento) de indenizar os participantes, e mesmo de responder penalmente pelos mesmos motivos.

A ausência de formalidades em relação à segurança dos participantes é nítida nos eventos ora discutidos, o que coloca a responsabilidade quanto às lesões dos atletas por conta da supervisão inadequada (árbitro que permite uso de força excessiva, falta de protetores bucais, luvas de tamanhos diferentes, ausência de ringue, falta de exames médicos, falta de definição de categorias de peso etc.), acrescentando também que os jovens parecem desconhecer as regras das modalidades, e, desconhecendo-as, não saberiam como exigir tratamento diferente, o que implica em vício de consentimento por parte do praticamente quanto este se expõe ao risco de competir.

In casu, o vício de consentimento do participante de tal competição ocorre por erro, já que a manifestação da vontade ocorreu por ignorância ou inspirado em um engano, uma vez que o participante pensa que tem a segurança garantida pelos organizadores durante a competição.

Portanto, a ameaça de processo judicial e a imposição de responsabilidade civil e criminal desempenharão um papel fundamental para garantir a manutenção de maneiras seguras no esporte e ajudarão a evitar esses atos negligentes.

É de interesse público repreender tal conduta como forma de dissuasão.

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[1] REDAÇÃO. Luta clandestina termina com homem desacordado e em estado grave. SBT News, 19 out. 2023. Disponível em: https://www.sbtnews.com.br/noticia/primeiro-impacto/263243-luta-clandestina-termina-com-homem-desacordado-e-em-estado-grave. Acesso em: 21 out. 2023.

[2] Com a explosão da popularização do MMA (uma competição esportiva de artes marciais mistas), uma nova leva de fãs chegou para acompanhar o esporte. Os novos torcedores não têm o mesmo nível de conhecimento com o esporte como alguém que assiste as lutas desde os primórdios e acompanhou toda a evolução do MMA. Dentre as diversas competições existentes no MMA ao redor do mundo, a mais importante delas é o UFC, sigla em inglês para Ultimate Fighting Championship. Por vezes, há essa confusão entre a marca UFC e o esporte MMA, que é a modalidade praticada em seus eventos, o que leva muitos a falarem que viram uma “luta de UFC” mesmo quando se trata de uma luta de MMA em promoção diferente do UFC. Portanto, UFC é um evento de MMA.

[3] REDAÇÃO. Jovem morre após ser nocauteado em competição amadora de boxe em Jericoacoara; imagem é forte. G1 CE, 12 out. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2023/10/12/jovem-morre-apos-ser-nocauteado-em-competicao-de-mma-em-jericoacoara.ghtml. Acesso em: 21 out. 2023.

[4] BEM, Leonardo Schimitt de et al, (coord.). Direito desportivo e conexões com o direito penal. 1ª. ed. Curitiba: Juruá, 2014. p. 453-454

[5] MOHAMADINEJAD, Azadeh et al. Assumption of Risk and Consent Doctrine in Sport. PHYSICAL CULTURE AND SPORT, STUDIES AND RESEARCH, v. LV, p. 30-38, 2012. DOI 10.2478/v10141-012-0012-5. Disponível em: https://intapi.sciendo.com/pdf/10.2478/v10141-012-0012-5. Acesso em: 21 out. 2023.

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