Ainda era madrugada do dia 8 de fevereiro de 2019, quando o Corpo de Bombeiros foi acionado para conter um incêndio de grandes proporções no Centro de Treinamentos do Flamengo em Vargem Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Vinte e seis jovens estavam no alojamento improvisado que pegou fogo após um curto no ar-condicionado. Dez garotos, entre 14 e 16 anos morreram e outros três ficaram feridos.
No dia 6 de fevereiro de 2020, o Grupo de Atuação Especializada do Desporto e Defesa do Torcedor do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro recebeu o inquérito policial que apura as responsabilidades pelo incêndio no Ninho do Urubu. “Composto de 13 volumes, o inquérito foi encaminhado para análise dos promotores de Justiça responsáveis”, informa a nota oficial do MPRJ.
Um ano se passou e o levantamento de provas e depoimentos sobre o acidente ainda não acabou. “Para uma investigação desse porte, é um tempo plausível, mesmo que ainda se estenda um pouco mais. O caso é complexo e grave”, informa Cláudia Barrilari, advogada criminal e Doutora pela USP. Essa é a terceira vez que o Ministério Público recebe o inquérito da Polícia Civil. O documento com mais de 2.200 páginas e as conclusões iniciais da autoridade policial pedia o indiciamento de oito pessoas e foi entregue no dia 4 de junho de 2019.
Eduardo Bandeira de Mello, ex-presidente do Flamengo, e funcionários do clube e da empresa que forneceu os contêineres onde os meninos dormiam, além de um técnico de refrigeração, foram enquadrados no artigo 121, por homicídio doloso, com penas de 12 a 30 anos de prisão por cada morte, e 14 lesões corporais.
“O Ministério Público pode acatar esse entendimento, ou indiciar os acusados no artigo 250 do Código Penal por incêndio com resultado de morte”, analisa Leonardo Palazzi, advogado criminalista. Nesta outra situação, a punição seria de 3 a 6 anos de reclusão, com o acréscimo de 1/3 da pena caso fique comprovado que o alojamento servia de moradia para os garotos.
Para evitar punições indevidas e falhas no processo, é preciso ir a fundo na investigação. Analisar o nexo de casualidade, com a perícia de documentos como contratos, estatuto do clube, ordens de serviço, e o critério de autoria. “Com muitas pessoas e empresas envolvidas, é preciso entender quem eram os responsáveis pela estrutura. Não dá pra culpar todo mundo, tornar uma denúncia temerária, genérica. É preciso ser o mais assertivo possível, para não prejudicar o processo adiante, com muitos recursos e apresentação de documentos das outras partes desconsiderando a denúncia”, acrescenta Leonardo Palazzi.
Agora, “cabe ao Ministério Público solicitar novas diligências, oferecer a denúncia ou requerer o arquivamento do inquérito”, pondera Cláudia Barrilari. O posicionamento deve ocorrer até março. Caso o MPRJ entenda que houve crime, o próximo passo será a oferta de denúncia e acusação formal. O processo, então, será encaminhado a um juiz que deve acatar tal denúncia. Só assim começará a fase judicial. É difícil estimar prazo para uma conclusão do trâmite penal.
“O Flamengo deve aguardar a conclusão do inquérito externo para iniciar a investigação interna”, informa Rafael Simi, integrante do Flamengo da Gente. O grupo formado após a tragédia do Ninho do Urubu conta com 350 integrantes, entre conselheiros, sócios e torcedores de todo Brasil, “unidos pela visão mais humana e inclusiva do futebol”. Eles se apoiam no conceito de Memória, Verdade e Justiça, “para que os meninos não sejam esquecidos, as famílias sejam amparadas e que os erros não se repitam. Cobramos uma investigação interna mais aprofundada e punições, claro, porque é preciso fazer justiça, responsabilizar, punir, para que não aconteça nunca mais”, completa Rafael.
O Flamengo, no aspecto da reparação de natureza civil, fez acordo com três das dez famílias, além do pai de um quarto garoto, Rykelmo. A mãe dele e outras seis famílias ainda não chegaram a um acerto com o clube. “O melhor caminho é o acordo, e que seja feito o mais rápido possível. Se o clube já reconheceu que é culpado, é melhor encerrar o processo. É a opção mais viável para evitar o prolongamento do sofrimento dos familiares, e o desgaste da imagem e reputação da própria agremiação”, conclui Leonardo Palazzi.
“Essa foi a maior tragédia do Flamengo e merece tratamento a altura. Não pode se apegar a números e estatísticos, ou pensamento meramente financeiro nesse momento. O clube é responsável por todos que estavam lá dentro. Dos que morreram e dos que sobreviveram. E é preciso ter uma cabeça menos corporativa e mais voltada para a compreensão e generosidade”, acrescenta Rafael Simi.
No mês passado, o Flamengo dispensou cinco sobreviventes do incêndio no Ninho do Urubu. A alegação foi um processo natural de reformulação e avaliação de desempenho dos atletas das categorias de base. “Do ponto de vista jurídico, o contrato com qualquer atleta pode ser rescindido ou não renovado. Depende da prerrogativa do clube”, lembra Leonardo Palazzi.
Mas não é tão simples assim. “Óbvio que os fatores emocionais são determinantes para performance esportiva. Diante do ocorrido, 12 meses é um tempo limitado para avaliação de desempenho de um atleta que passou por uma situação dessas. Tomaram uma decisão precipitada. Creio que um tempo maior e justo deveria ter sido oferecido a esses atletas. Até para que a avaliação pudesse ser mais isenta de variáveis que interferem mais diretamente no comportamento esportivo, avaliou João Ricardo Cozac, presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte.
Ainda há o viés político da tragédia do Ninho do Urubu. Nesta sexta-feira (7), a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, realizou uma sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito, criada em novembro passado para apurar os fatos do acidente. “Uma CPI busca entender o que aconteceu e avalia se é necessário mudar a legislação para evitar novas tragédias”, informa o criminalista Leonardo Palazzi.
Com a ausência dos representantes do Flamengo na audiência, um pedido de condução coercitiva chegou a ser cogitado. Tal medida só seria obrigatória para os convocados que não foram indiciados. “A pessoa investigada não tem obrigação de comparecer, e, se for, pode ficar calada”, complementa Leonardo.
O ex-presidente do Flamengo, Bandeira de Mello, compareceu à sessão, e respondeu às perguntas. O vice-presidente geral e jurídico do Flamengo, Rodrigo Dunshee, também foi à Alerj e o pedido de condução coercitiva foi anulado. Por fim, o Flamengo prometeu comparecer de forma voluntária a próxima audiência da CPI, na outra sexta-feira, 14 de fevereiro.
Por Ivana Negrão e Thiago Braga
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo