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Um “belo” dia para correr pelo futebol

Por Fernanda Chamusca

“Que bonito é as bandeiras tremulando, a torcida delirando, vendo a rede balançar…”[1] é o tipo de frase que se começa qualquer bela história sobre a nossa paixão nacional. Todo bom brasileiro passa a vida esquematizando possibilidades de viverem momentos inéditos do futebol. Acontece que as melhores nascem quando nada é planejado.

Cidade do Porto, 16 de fevereiro de 2012. Essa autora, no auge dos seus 14 anos, totalmente maluca por futebol, deparou-se com uma multidão azul à beira do rio Douro, às 9h da manhã. Torcedores ingleses – hooligans, loucos e aficionados – carregavam os seus pints e ecoavam os cânticos para o jogo que aconteceria à noite: Porto vs. Manchester City, pelas oitavas de final da Europa League.

– Eu preciso ir para esse jogo – pensei.

Nunca tivera a oportunidade de ver ao vivo uma competição europeia. Nunca imaginara que tamanha coincidência poderia mudar os rumos da viagem em família. E que mudança!

Após chantagens sequenciais, sob o abuso dos poderes de uma filha única, meu querido pai, conhecido como Belo, disse o inesquecível:

– Porr%*, não aguento mais você no meu juízo. Vamos!-

Antes de continuar, precisamos falar um pouco de Belo. Aquele que chama toda e qualquer pessoa de “catiguria” e faz todos acharem que são especiais. Na verdade, informo que ele não sabe o nome de vocês. Belo é também aquele que não media distância. Ah se o fosso da antiga Fonte Nova falasse!

Belo é o cara mais bagunceiro e conversador que Nossa Senhora já amadrinhou. É impossível não ser o foco de uma roda de conversa. Faz amizade em enterro, invade festa dos outros e possui inúmeras histórias que matariam pessoas de tanto rir. Esse é o nosso protagonista.

Sigamos.

Minha querida mãe, fiel torcedora da Chanel e Gucci, atleta da rua 25 de março nas horas vagas, informou que o preço dos nossos ingressos, ela gastaria todo no shopping. Com ingressos esgotados, conseguimos a última oportunidade, graças ao novo amigo taxista que Belo fez em cinco minutos de corrida: EUR 150,00 (cento e cinquenta euros) por ingresso.

Fomos obrigados a firmar o maior pacto de pai e filha: minha mãe não poderia saber o preço do ingresso.

Chegamos ao Estádio do Dragão! Estávamos animados, encantados, impressionados. Fomos na expectativa de torcer pelo Manchester City, afinal, Belo já havia bebido, junto com os sky blues no decorrer do dia, todas as cervejas da cidade do Porto. Mas tudo mudou. Era impossível não se apaixonar pela torcida do Porto. Voz, grito, raça, um tanto de brasilidade raiz. Era como estar no Brasil, tirando a parte que eles roubaram nosso ouro e falam português errado (desculpa, amigos).

Belo, já empolgado, me deu o cachecol da partida de presente. Já estava a caráter. A partir daquele momento, éramos Porto e nada mais importava. Fomos para a torcida.

Começou o jogo. O craque Hulk brincava de jogar futebol. Nós, na beira do campo, gritávamos sem parar. Belo me pediu para ter noção e não falar palavrão, como estávamos acostumados a fazer no nosso templo, o Barradão. Só que bastava a bola ser dominada pelos ingleses, que nomes impronunciáveis eram verbalizados por todos os lados.

Pobre Belo, iludido com a educação europeia.

1×0 porto. Festa no Dragão!

Estávamos a poucos metros da torcida do Manchester City e, por isso, era possível ver de perto os ingleses espumarem de ódio, enquanto os portugueses tocavam o terror. Embaixo do mosaico da torcida, o manto azul e branco tremulava com o carnaval das arquibancadas. Parecia até BaVi, já que o Vitória quase sempre ganhava (opiniões divergentes não serão aceitas).

Começa o segundo tempo. Começou, também, o pesadelo.

Manchester City consegue o empate. Silêncio na torcida do Porto, caos entre os hooligans. Os ingleses começaram a dominar o jogo.

-Agressivo esse pessoal do Manchester- disse Belo, suando mais que tampa de chaleira.

40 minutos do segundo tempo, 2×1 Manchester City. Sim, eles viraram o jogo na casa do Porto. Os citzens, com um pequeno espaço no estádio, dominavam a acústica e a partida, se jogavam em cima uns dos outros, completos trombeteiros do caos! Enfrentavam até o cordão policial que os separavam dos torcedores do Porto. Era o futebol raiz gritando pelos quatro cantos do mundo.

– Esse pessoal caiu do berço quando eram pequenos – era o que Belo só falava.

Acostumado com os “corres” da Fonte Nova e do Barradão, em esconder camisa para não apanhar em BaVi, Belo virou pra mim e falou:

– Minha filha, vamos sair antes de acabar o jogo. Esse pessoal é muito doido, mermão! –

Como boa torcedora, pé frio nas horas vagas, analisando a torcida do Manchester a poucos metros de distância, fui obrigada a concordar com Belo.

Saímos do estádio aos 44 minutos do segundo tempo. O clima estava ameno, a saída estava tranquila. Ouvimos a torcida do Manchester City aumentar o som dos cânticos, junto com o que parecia ser uma comemoração. Era o fim da partida. Vitória do Manchester City contra o Porto, dando vantagem ao clube inglês no jogo de volta, em casa.

Esse sofrimento já nos era conhecido, justiça seja feita, o Barradão ensina muito. Só não havíamos tido a experiência de sofrer em euro. Essa, realmente, doeu na alma e no bolso!

– Imagina o quanto que esses torcedores do Manchester City não devem estar loucos- disse o sábio e visionário Belo.

Ao sair do estádio do Dragão, vimos que era necessário subir uma ladeira. Não uma ladeira qualquer, senhores, mas sim O pior pesadelo de um sedentário.  Iniciamos a nossa subida, já cansados mentalmente, até que o caos começou.

Uma pessoa correndo. Duas pessoas correndo. Três pessoas correndo e subindo a ladeira desesperadamente. Quatro. Cinco. Seis. DEZ. Do nada, uma multidão!

A torcida do Porto saía do estádio e corria em direção ao topo da ladeira.

Olhei para meu pai, Belo me olhou e disse de forma clara:

-O PAU COMEU!!! CORRE! –

Começamos a correr. Corríamos desesperadamente em direção ao topo da ladeira. Corríamos pela nossa vida. Corríamos como um dia caótico de BaVi. Corríamos junto com a torcida do Porto. Nesse momento, Belo já havia tomado o cachecol em suas mãos e escondido embaixo da sua blusa.

Ao chegarmos na metade da ladeira, sob os efeitos do seu sedentarismo evidente, Belo não aguentou. Agarrou-se ao primeiro poste que encontrou, tomado pela emoção, gritou:

– Minha filha, corra e SE SALVE!!! –

 Esperávamos pela surra que levaríamos. Imagina se logo os hooligans teriam dó de nós, Brasileiros e torcedores do Vitória?! Belo não tinha nem inglês para amenizar o problema.

– SE SALVE, FERNANDA! CORRA! – Belo repetia em looping.

Claro que eu não iria abandoná-lo. Família unida dentro e fora de campo. Comecei a empurrá-lo.

– Jamais te deixaria para trás, meu pai-  eu lhe disse, com sentimentos aflorados. O pânico era real, mas o amor pela família permanecia no sofrimento. Corremos juntos pela vida, para sobreviver à catástrofe.

Chegamos ao topo da ladeira. Apáticos e destruídos, Belo sequer conseguia falar, respirava com dificuldade. Corremos (de novo) em direção aos táxis. Afinal, os torcedores agressivos poderiam chegar a qualquer momento e iríamos morrer. Esse, com toda certeza, não era um plano e não era nossa expectativa para a viagem em família. Quem diabos tivera a ideia de ir para esse jogo?!

Entramos no táxi e Belo – o ateu – só conseguiu gritar:

– Saia daqui, pelo amor de Deus!!! –

O taxista português, atordoado com nosso desespero, ofegantes de cansaço, de como quem encarou o bloco do antigo Chiclete com Banana chegar ao final do circuito Brra-Ondina, perguntou o que estava a acontecer.

– O senhor não está vendo? Esses loucos, doentes e bêbados ingleses, essa briga generalizada, eu nunca vi isso na minha vida!!!! – respondeu Belo, sem hesitar.

O taxista, ainda sem entender, refutava as afirmações:

– Não, senhor, não há briga no Porto –

Belo, no auge da sua indignação, rebateu:

– Como não? Não está vendo essas pessoas correndo desesperadas?-

Eis que a calma e lógica lusitana nos fez encarar a realidade:

“Mas é claro, O METRÔ VAI FECHAR EM POUCOS MINUTOS, por isso que estão todos a correr”

Silêncio no táxi.

– Fernanda, eu vou te matar! – disse Belo, sem saber se ria ou se chorava.

As palavras do nosso amigo português foram suficientes para gargalharmos por horas, que já dura uma vida inteira. Só poderia ser o Belo mais caótico do mundo, fã declarado do Vascão, correndo mais que criança de colo!

Depois desse episódio, torcer para o Porto virou um costume, desde que estejamos de acordo com as regras locais. Sem corridas e sem ladeiras, por favor. Afinal, continuamos sedentários!

A moral da história é que determinados planos, em especial, os não “planos”, precisam acontecer para termos histórias para contar, momentos para guardar na memória e motivação de viver o futebol pelo mundo afora.

Uma coisa é certa: o ingresso valeu a torcida delirando, as bandeiras tremulando, ver a rede balançar, o bandeirão, o mosaico, os gritos descontrolados e muito mais… valeu até dizer para minha querida mãe que cada ingresso custou 50 reais!

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[1] GRUPO RAÇA. Na Cadência do Samba (Que bonito é). Canal 100: 1956. 02:42 min.

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