“Um corpo que cai” (1958), obra prima de Alfred Hitchcock, enfoca as agruras sofridas por John Scottie, um detetive que teve que se aposentar porque passou a sofrer de acrofobia, após ver seu colega morrer ao cair de um telhado, durante uma perseguição policial.
Depois da jubilação, Scottie é convencido por um amigo a investigar sua esposa, Madeleine, que demonstra uma estranha atração por lugares altos, desafiando o detetive a enfrentar suas piores vertigens. Ele começa a acreditar que a mulher é louca, com aparentes tendências suicidas.
Os antigos gestores do Cruzeiro são apontados pela mídia e pela atual diretoria por igualmente apreciarem patamares elevados, porém em termos de despesas: teriam gastado mais do que poderiam, o que levou o clube a um autêntico suicídio financeiro.
Em “Um corpo que cai”, Scottie, ao seguir Madeleine, a vê correndo para o alto de uma igreja, jogando-se lá de cima. Diante de seu medo de altura, ele fica paralisado, vê a mulher se atirar para a morte e revive seu trauma.
Assim como Scottie, os torcedores do Cruzeiro viram seu clube cair sem poderem fazer muita coisa. O multicampeão das alterosas foi rebaixado pela primeira vez na sua história para a segunda divisão do campeonato brasileiro no final do ano passado.
É surpreendente constatar como um clube que estava no topo do futebol brasileiro pudesse ter caído tão rapidamente. Com a velocidade que atinge um corpo quando cai do alto de uma igreja, o Cruzeiro despencou do título de campeão da Copa do Brasil de 2018 para o rebaixamento no brasileirão de 2019.
A inadimplência foi um dos fatores principais. Especula-se que as dívidas rondam a casa dos 700 milhões de reais, geradas não apenas por um aumento excessivo dos salários, como também pelo inchaço do corpo funcional.
Um dia essa dívida iria explodir e acabou estourando. Com jogadores e demais profissionais sem receber, os maus resultados surgiram num piscar de olhos.
E a verdade também. Com o clube se endividando de uma maneira nunca antes vista, os credores se avolumaram na justiça e todos ficaram sabendo do histórico rombo financeiro.
Scottie também descobriu a verdade. A rigor, não foi Madeleine que se suicidou. Ela já havia sido assassinada pelo seu marido, que contratara uma sósia para se passar por ela, fingir o suicídio e livrar o amigo de Scottie de responder pelo homicídio.
Assim como no filme, a verdade financeira do Cruzeiro lamentavelmente só veio à tona no final da estória. Um dos fatores talvez seja porque o clube é um dos poucos do Brasil onde não há obrigatoriedade para votar um orçamento anual. Assim, suas contas ficaram sem controle e sem parâmetro de aferição.
Como é inerente à natureza humana, estão tentando agora colocar a tranca depois da porta arrombada. Mas antes tarde do que nunca e pelo menos as propostas são interessantes.
Uma delas é inserir no estatuto uma regra que obrigue a diretoria administrativa a apresentar uma proposta orçamentária para aprovação e que vincule todos os dirigentes ao seu cumprimento.
Outra ideia importante é a de criar um teto para salários do pessoal da área administrativa, a fim de evitar que os profissionais recebam valores acima daqueles praticados pelo mercado.
Outrossim, cite-se a sedutora iniciativa de que o departamento de futebol conte com um conselho de administração que possa vetar contratações que ultrapassem a capacidade de pagamento do Cruzeiro. Não se trataria de um veto de natureza técnica, mas de cunho orçamentário.
Por fim, destaque-se a louvável proposta de que doravante se exija formação profissional pertinente para que alguém possa compor os conselhos do clube mineiro.
Porém, as novas medidas estatutárias a serem implementadas no futuro não impedem que eventuais erros cometidos no passado sejam apurados, conforme prevê a lei n° 9615/98 em seu art.27 § 11.
Esse artigo é claro ao dizer que os administradores de entidades desportivas profissionais respondem solidária e ilimitadamente pelos atos de gestão temerária, assim considerados aqueles atos de administração que põem em risco o patrimônio e a higidez financeira da agremiação.
Aliás, diferentemente de Scottie, que deliberou se investigaria ou não Madeleine, o sucessor na condução das agremiações não possui essa liberdade. De fato, o novo mandatário que se mantiver inerte na apuração, passa a responder solidariamente com os dirigentes anteriores, na forma do art. 24, § 3º da lei n° 13.155/15.
Seja mudando o futuro ou reprimindo o passado, em todos os segmentos existem fórmulas atemporais a serem seguidas. Assim, por exemplo, “Um corpo que cai” seguiu a regra de ouro de manter o mistério que envolve a trama até o fim e não por acaso, foi eleito o melhor filme da história do cinema.
No futebol, embora não exista muito mistério, há uma fórmula válida em qualquer tempo e lugar, para evitar que clubes do porte do Cruzeiro venham a cair tão vertiginosamente:
Não gastar mais do que se arrecada.