Por Marcelo Azevedo
Os mais jovens talvez não saibam, mas houve um tempo em que as tardes de futebol reservavam um evento fabuloso para aclimatar jogos: a chamada rodada dupla. Basicamente era uma sequência de duas partidas, com uma preliminar começando ali pelas 15:00, embaixo de um sol forte, e a partida principal às 17:00, ou as cinco da tarde, a forma como chamávamos na época. A definição da ordem dos jogos se dava por sorteio e se isso lhes parece pouco, já aviso que não era. Havia um certo ar de nobreza sobre o jogo de fundo, que era o nome dado a segunda partida.
Haviam diversas conveniências para ir a tal espetáculo, mas uma das mais legais, ao menos para mim, era a chance de poder ir para o estádio com meu irmão, já que ele, sabe-se lá porque, torcia para o time rival, meu e de meu velho. Na verdade eu sei o porquê, mas isso eu conto outro dia.
Nestes dias íamos e sentávamos juntos, quase no meio do estádio, num setor que acomodava uma turma que chegava cedo e só saía quando o juiz apitava o final do segundo jogo. Não era apenas divertido estar ali, era a oportunidade de curtir um jogo, na verdade dois, bem pertinho daquele cara por quem eu nutria tanta admiração, compartilhava de tantos valores, mas que sobre este aspecto esportivo, sobretudo sobre este, exercíamos um antagonismo visceral.
E aqui cabe uma breve contextualização sobre a paisagem sonora de uma partida de futebol entre times rivais de uma mesma cidade. Em geral, em dias de clássicos derbys, é comum que os torcedores de ambos os lados se ofendam com convicção, tenho para mim que este desejo quase medieval se ampara no fato de que inconscientemente nos dirigimos a uma massa sem rosto, a um bloco desumanizado que senta do outro lado do estádio e que deseja nos vencer a qualquer custo, em campo e no grito. Talvez isso estimule a sensação de êxtase que se alcança quando pronunciamos elogios não publicáveis aos torcedores adversários.
Mesmo que lá estejam sentados os amigos.
No meu caso, um ídolo, um irmão.
Mas ocorre que este clima amistoso durante a rodada dupla nem sempre foi assim entre nós dois. Houve uma vez, a primeira delas, em que me foi ensinada uma lição para toda a vida e que agora vou lhes contar. Na real, lhes contarei duas lições, em ambas entendi perfeitamente a diferença entre adversários e inimigos.
Vamos então a primeira.
Eu já devia ter perto dos 12 anos e ele já tinha passado dos vinte. Durante a semana, como de praxe, se criou a expectativa sobre a ordem dos jogos, Comemorei como um título a notícia de que meu time jogaria a partida principal, o que em nada mudou a vontade de meu irmão de ir aos jogos, e, especialmente, me levar junto.
Sim, é óbvio que não me dei conta disso na época.
Chegamos bem cedo ao estádio, nem bem sentamos e já peço a ele o primeiro sorvete, afinal o lado onde sentávamos recebia um sol escaldante e seria um evento de quatro horas, talvez cinco. Quando a primeira partida começa, o time dele logo toma um gol, o que me faz comemorar efusivamente. O tempo passa, entre uma pipoca e um refrigerante, para os quais ele teve que enfrentar uma fila enorme para comprar, seu time toma o segundo gol, e eu comemoro mais ainda. Quando voltamos juntos para o setor da arquibancada, eu devidamente abastecido, meio de soslaio, percebo nele um olhar triste, então ali, pela primeira vez, aquela massa sem rosto que formava a torcida adversária ganha um contorno humano para mim.
Era o rosto do meu irmão. Foi estranho. Uma gangorra de sentimentos.
O primeiro jogo acabou e o time dele havia sido derrotado impiedosamente, o que fez a minha torcida vibrar muito no estádio, dando a partida principal ares de festa. E ele, ali sentado, em momento algum manifestou vontade de irmos embora mais cedo. Apenas ficou. Muitas vezes na vida não é mesmo preciso se falar nada. Basta estar.
O jogo era intenso, meu time fez um gol cedo, mas tomou o empate em seguida. Entre gritos e pipocas, passo a observar meu irmão, o seu olhar atento para mim, o sorriso, o cuidado. Ali ainda éramos rivais, mas ele, de forma contida, não sei se consciente ou não, aproveitou a situação para me mostrar que na vida nunca seríamos inimigos.
Hoje quando vejo alguém falar “Não é só futebol”, eu relaciono imediatamente com as mais diversas situações em que a ambiência do jogo me ensinou algo para a vida.
Você pode estar se perguntando sobre a segunda lição que aprendi e já sigo agora mesmo para ela, havia uma pessoa na minha rede social que praticamente confrontava com tudo o que eu pensava. E, para piorar, ainda torcia para um time rival, o que nos fazia debater raivosamente algumas vezes. Na verdade, eu nem sabia porque eu o mantinha entre meus contatos.
Bom, anos mais tarde meu irmão teve uma doença grave, muito grave, num dado momento ele precisa de doação de sangue, uma das atitudes mais generosas e solidárias a que um ser humano pode se prestar. Eu faço um pedido aos meus contatos e, para minha surpresa, a primeira pessoa a aparecer para fazer a doação é justamente aquele cara por quem eu tinha tantas discordâncias. Esportivas e pessoais. E isso nada importou para o gesto que ele fez.
O sorriso, o olhar, o cuidado dele eram parecidos com o que meu irmão havia me dado naquele dia do jogo da rodada dupla. Ali não éramos adversários, nem rivais, muito menos inimigos. A natureza humana não comporta uma leitura binária de quem somos, e a vida se encarregou de me mostrar que da pessoa que eu menos esperava, recebi um gesto que somente um irmão eu imaginava ser capaz de oferecer.
E se você chegou até aqui, espero que já tenha entendido que este texto não é apenas sobre o jogo de futebol, mas essencialmente sobre a peleja da vida. O futebol é sim um catalisador de fenômenos sociais, dentre eles a violência e o comportamento polarizado. Assim como nos ambientes sociais, estar em oposição, em campos distintos de opinião (ou de lados contrários da arquibancada) não nos torna inimigos.
Divergir é salutar e desejável, promove questionamentos de convicções e invalida crenças, por vezes, falsas, mas desde que a premissa não seja desconstruir o outro, mas construir com o outro.
E isso não é apenas um jogo de palavras.
Crédito imagem: iStock
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Marcelo Azevedo é formado em Administração de Empresas com MBA em Gestão de Negócios. Publicitário por adoção, atua há mais de 30 anos liderando áreas de gestão e finanças. É convicto da força que o ecossistema do futebol pode produzir ao seu entorno. Torcedor raiz, é um amante do jogo bem jogado, da boa disputa, mas gostar, gostar mesmo, ele gosta é do Botafogo, até mais do que do futebol. É sócio do Futebol S/A