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Uma linda jogada, pelo amor de Deus

Eduardo Galeano, que foi mais poeta do que jogador (porque só jogava em seus sonhos), dizia-se mendigo do bom futebol. Andava pelo mundo de chapéu na mão, e nos estádios suplicava: “Uma linda jogada, pelo amor de Deus”¹. Quando o milagre vinha, agradecia, não importava o time (ou o santo). Muito embora, se pudesse, preferia que o milagreiro vestisse as cores do Nacional.

Apesar de ser um apreciador dos gramados, para a assistir à bola rolar, tinha uma preferência: gostava do futebol inútil. O jogo jogado sem motivo, e sem dono. O jogador, solto, como um balão no ar.

A escolha tinha fundamentos: quando virou a indústria do espetáculo, dizia, o futebol ficou rentável, e, ao contrário do futebol inútil, o jogo rentável não era organizado pra ser jogado, mas pra impedir que se jogue. Reclamava dos movimentos mecânicos, do jogo truncado, da vitória na base da força. Sentia falta do homem que pisava no campo, tinha tempo, virava menino e dançava com a bola.

Bom, não sei se os poetas saudosos estiveram conversando, mas Drummond parecia concordar. Orientava: o futebol se joga na alma².

É verdade que as coisas andaram mudando, e os espaços de criação, se estreitando. O corpo, cada dia mais disciplinado, ensinado, obediente. Por mais informal que possa parecer, qualquer “improvisação” não é, de todo, improvisada. No teatro da partida, o normal é que seja ensaiada. Isso porque, onde tem muito espectador, os movimentos são mais de quem vê do que de quem faz e, como bons proprietários, não resistimos em passar orientações. O passe que deveria ter sido assim, o chute que deveria ter sido assado. “Sobe.” “Toca.” “Chuta.” Na orientação tática, o ideal é diminuir a improdutividade, evitar a jogada sem “porquê”. Quantos patrões pra um mesmo trabalho. Pensando bem, de tanto falar, pode ser que não sobre espaço pra inventar.

Terrível seria se tivéssemos chefiado o Garrincha. Divertido e zombeteiro, o homem já começava desafiando os sacramentos milimetricamente planejados pela perna, que era torta. Pior ainda, a obra e a graça no jeito de jogar tinham um único objetivo: desconcertar. O gol era lucro.

Olhando por esse lado, a verdade é que tentamos moldar gestos e técnicas (às vezes, até vozes), mas, em campo, esperamos que o jogador nos surpreenda com o que o corpo é capaz de desenhar. Como um bailarino, que busca na liberdade do seu movimento a necessidade de existir.

Tem quem diga que de nada adianta tanto planejamento se, no final, o resultado parece ser obra do destino, de qualquer jeito. Aliás, não fosse assim, qual seria a graça? Sendo o caso, podemos apagar o 4-4-2 da prancheta e, no lugar, escrever: lambreta, lençol e chapéu. Se o futebol se joga na alma, pra que arrancar ela do sujeito? No ranking de pontos, vitórias e estatísticas, é muito o que ainda vale um bom drible.

……….
GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução de Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. Porto Alegre: L&PM, 2014.
Na íntegra:
“[…] futebol se joga na rua,
futebol se joga na alma.
A bola é a mesma: forma sacra
para craques e pernas-de-pau.
Mesma a volúpia de chutar
na delirante copa-mundo
ou no árido espaço do morro.
São voos de estátuas súbitas,
desenhos feéricos, bailados
de pés e troncos entrançados.
Instantes lúdicos: flutua
o jogador, gravado no ar
– afinal, o corpo triunfante
da triste lei da gravidade.” (ANDRADE, Carlos Drummond de. Quando é dia de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 13).

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