Dizem que a história se constrói pela quantidade de informações que somos capazes ou estamos dispostos a registrar. Se é assim, algo curioso se passa: o acontecido, quando não visto, corre o risco de não acontecer. O mesmo se diga sobre o acontecido que se viu, mas se esqueceu – esse também corre o risco de se dizer que não aconteceu.
Por isso, para criar memórias, aprendemos a escrever. Com a escrita, falamos do que foi, do que é, e do que queremos que seja. Na teimosia de não deixar as coisas irem, guardamos aqui e acolá a história que queremos viva daqui a quantas gerações.
Aos ocorridos escolhidos, cuidamos de manter registrados, bem registradinhos. E assim, dia após dia, vamos criando esse imenso banco de dados que nos permite existir e evoluir enquanto ser e coletividade. A partir dele, criamos memórias, moldamos comportamentos, fortalecemos identidades. Além disso, usamos essas mesmas informações para nos orientarmos em experiências futuras. Antevemos os riscos e as possibilidades de uma ideia nova, com o respaldo do que já passou.
Um método impecável. Não fosse o desagradável pormenor de dependermos tão profundamente da vontade do escritor. Como dito, acontecidos não registrados tendem a se perder no buraco faminto do tempo. Por isso, os donos da história são aqueles que a escrevem.
E o esporte com isso? Entre tantas coisas, a forma como percebemos o esporte, e o espaço que ele ocupa nas nossas vidas também decorre desse imenso baú de pequenos grandes itens coletados com o tempo. Escolhidos, um a um. Por isso, podemos dizer que existe uma parte da experiência esportiva que é nossa, e outra que herdamos sem perceber. Nesse cenário, buscar a verdade significa, às vezes, duvidar de algumas coisas. Vou dar um exemplo.
Há algum tempo, o presidente da FIFA diria que a história do futebol praticado por mulheres é uma história que data dos últimos vinte anos. Ao escolher a forma que melhor lhe conveio de registrar as coisas, como autoridade e pretenso dono da história, pretendeu apagar outras que nos ajudariam a entender como chegamos até aqui.
Por que ainda existe um maior interesse no futebol vindo de homens quando comparados a mulheres? Por que os patrocínios e premiações são menores para elas? E por que ainda existe uma diferença técnica entre a forma de gerir um e outro? O abismo entre gêneros não começa aqui, e seguramente não tem origem nos últimos vinte anos.
Desde muito antes, o que significaria falar sobre as décadas de 20, 30 e 40, o futebol cuidou de representar, seguramente mais do que hoje, um espaço onde a identidade nacional e a masculinidade se construíam e reforçavam.
No pé do ouvido dentro de casa, nas linhas da crônica esportiva, ou nos decretos do Estado, a narrativa futebolística foi como música de uma nota só em termos de gênero. No Brasil, na Argentina, e em toda parte do continente sul americano, a seleção nacional masculina era o povo, e o povo era a sua seleção. E se todos éramos eles, que espaço ocupavam elas?
Para os donos da voz e inevitavelmente da história, o obstáculo principal para uma narrativa nacional feminina vinha da intransponível natureza de seus valores, também femininos, incompatíveis com o jogo do futebol. Pois claro. A virilidade, a bravura, a persistência junto à dor e a resistência à derrota não era algo que a elas fosse possível atribuir. Questão de biologia.
Às mulheres, diriam os donos da história, estavam destinadas a tarefas da maternidade, do cuidado com os habitantes da casa, da limpeza do lar. Que não se preocupassem, porque não era o caso de não serem mencionadas na construção da nação. Estariam, ao menos nos jornais, logo na página ao lado, no caderno de receitas. O mesmo se diga dos livros públicos. Onde as regras do matrimônio bem poderiam estar no capítulo destinado às propriedades.
Em matéria esportiva, a determinação era clara. Quando o tema era futebol, transitavam entre a completa invisibilidade de não serem consideradas sequer como espectadores, e a repressão explícita enquanto praticantes.
No Brasil, apesar de existirem registros de que no início do século XX começaram a praticar o futebol ao mesmo tempo em que os homens, as mulheres foram proibidas de fazê-lo entre 1941 e 1979.
Isso não significa que as mulheres deixaram a modalidade, mas significa que suas experiências no esporte dificilmente seriam registradas. Insubordinações aqui e ali foram repreendidas e apagadas, para que nunca tivessem acontecido. E assim, ano após ano, década após década, nossa história no futebol foi sendo escrita pelas mãos dos outros. E as vivências das mulheres se perderam pelo caminho.
Para quem chegou depois, é como se não tivessem acontecido. E respostas a perguntas como as já feitas por aqui não raro se apoiam na fácil (e aparentemente óbvia) resposta da ausência de interesse. Quem sabe, seja uma questão de biologia. Deve ser questão de biologia.