“Um senhor estagiário” (2015) é um típico filme do estilo “água com açúcar” cuja fórmula é criar situações cômicas pelo contraste entre seus personagens e trazer sentimentos de ternura no público para a relação que nasce das partes nesse processo. É um cinema do tipo inofensivo e que costuma ter grandes atores no elenco para fazê-lo ganhar importância.
Na última semana o Estádio do Maracanã exibiu um longo filme, cujo final ainda não se sabe nem como nem quando será. A única certeza que se tem é que o enredo não tem nada de água com açúcar, mas de sabor agridoce.
A parte doce do sabor ficou com a dupla FLA-FLU que provisoriamente administra o Estádio. O azedume, entretanto, foi todo empurrado goela abaixo do Vasco.
Ao decidir transferir o seu jogo contra o Cruzeiro de São Januário para o Maracanã, o clube da colina deparou-se com a cobrança do valor de aluguel quase três vezes superior àquele que é pago pelos times da zona sul carioca. Enquanto eles pagam R$90.000,00, a equipe da barreira de São Cristóvão recebeu uma fatura de R$250.000,00 para quitar.
O Termo de Permissão celebrado entre o Governo do Estado e Flamengo e Fluminense diz expressamente que os permissionários deveriam respeitar o princípio da isonomia em relação às demais equipes que quisessem se utilizar do Estádio para realizar suas partidas.
Veja-se, a propósito, um dos itens da última permissão celebrada entre as partes que se conseguiu ter acesso, datada de 6 de maio de 2021:
ISONOMIA – CONDIÇÕES DE USO AOS DEMAIS CLUBES DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
FLAMENGO E FLUMINENSE estão cientes das ações vedadas constantes do Termo de Referência, especialmente quanto à proibição de favorecimento a uma ou mais agremiação, clube, associação ou confederação desportiva, em especial do Estádio Jornalista Mário Filho – Maracanã.
Se esta cláusula estiver valendo, não há dúvidas quanto a necessidade da observância em seus estritos limites. Sua clareza é solar. Ela prevê que não poderá haver tratamento diferenciado em relação àqueles que não estejam administrando o Estádio.
Não existe qualquer dubiedade, contradição, omissão, inconstitucionalidade ou ilegalidade que possa afastar a translúcida norma que advém de seus termos e que foi resultante de proposta emanada dos próprios permissionários(!)
Aludida disposição encontra-se em sintonia fina com o Termo de Referência que serviu de embasamento ao processo de permissão, ainda no ano de 2019, em que um de seus itens proíbe aos permissionários:
Imposição de tratamento comercial injustificadamente distinto ou discriminatório, que represente ônus excessivo e ou a prática de atos que resultem em vedação de acesso à utilização do Conjunto às agremiações, clubes, associação ou confederação.
Aliás, nem precisariam existir essas previsões. Enquanto permissionários de um bem público, os gestores precisam respeitar o princípio constitucional da isonomia na sua relação com a população. Isso é o mínimo que se espera de quem administra a coisa pública.
Porque impor um fardo tão desproporcional a um clube que possui, como qualquer outro, o direito de usar um estádio que é PÚBLICO? A propósito, a gestão não demonstrou, através do competente jogo de planilhas, as razões econômicas que justificariam um tratamento tão desproporcional.
Em “Um senhor estagiário”, o que salva a película é o bom desempenho de dois nomes de peso, que são nada mais nada menos que Anne Hathaway e Robert De Niro, que simplesmente carregam o filme nas costas.
Na execução da permissão de uso do Maracanã, nem o peso dos personagens melhora a trama, uma vez que todos os atores desse processo estão fazendo mesmo é um grande papelão. A dupla Fla-Flu, por prejudicar um coirmão sem qualquer justificativa plausível e a Diretoria do Vasco, por apenas espernear e não tomar qualquer providência para defender os seus direitos.
A violação dos direitos do clube do Almirante não parou por aí. Os permissionários proibiram que o Vasco pudesse auferir as receitas decorrentes da venda de produtos dentro do estádio, em flagrante violação ao termo celebrado com o Governo do Estado.
Veja-se o restante da cláusula citada acima:
Além da totalidade das receitas de bilheteria, os clubes do Rio de Janeiro que vierem a utilizar o Maracanã nos termos acima terão direito à totalidade das receitas de comercialização de alimentos e bebidas, condições similares que serão praticadas individualmente por Flamengo e Fluminense em suas respectivas partidas como mandantes […]
Mais uma norma expressa que não rende ensejo a quaisquer dúvidas quanto a sua interpretação. Nota-se que o Diretor desse “filme” também deixa muito a desejar. O Governo do Estado do Rio de Janeiro assiste a tudo isso como se fosse um mero espectador que aguarda apenas pelo final da entediante exibição para deixar a sala de espetáculo.
Vejam outro trecho da cláusula do termo de permissão;
Nesse sentido, já se informa desde logo que, observada a disponibilidade de datas, será permitido aos demais clubes do Estado do Rio de Janeiro realizar partidas oficiais no Maracanã, desde que tais clubes arquem com o valor de locação por partida[…] mediante fiscalização conjunta com o Comitê de Gestão e Operação do Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Onde está a fiscalização do Governo do Estado? O que o Comitê disse a respeito? Qual o parecer técnico que foi emitido? Porque a cláusula foi desrespeitada e não houve punição aos infratores?
A rigor, igualmente não seria imprescindível existir previsão de fiscalização no termo de permissão, já que, por se tratar de bem público utilizado precariamente por particular, cabe ao Estado zelar para que o mesmo seja gerido corretamente, podendo, se for o caso, promover unilateralmente a sua revogação.
Se é verdade mesmo que “Os valores praticados pelo Maracanã têm o objetivo justamente de ‘afastar’ possíveis interessados em mandar seus jogos, tendo em vista o número exacerbado de partidas de Flamengo e Fluminense”[1], a situação fica insustentável, pois restaria claro que esses dois clubes estariam administrando o Estádio como se proprietários dele fossem.
O triste é, depois de mais de 30 anos de advocacia, ver-me como um verdadeiro estagiário, obrigado a reaprender que no Brasil os contratos não têm valor, que os pactos existem para serem descumpridos e que os direitos dos administrados mais se parecem como meras peças em vitrine para servir de deleite a desavisados transeuntes.
Esse é o nosso país, onde no direito o descompasso entre teoria e prática é tão gritante quanto a diferença de idade entre os protagonistas de ‘‘Um senhor estagiário’’.
Tão Impotente quanto se sente um idoso no final de sua vida, este “senhor estagiário” só pode lamentar e dizer que a Permissão do Maracanã é bem pior do que o filme da diretora Nancy Meyers:
Uma senhora vergonha.
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[1] Disponível em: https://colunadofla.com/2022/06/vasco-questiona-valor-de-aluguel-do-maracana-e-envia-oficio-a-flamengo-e-fluminense/amp/