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Uma travessia sem fim, que tornou o desafio do Canal da Mancha mais seguro

Neste mês de agosto, para ser exato, no próximo dia 23, serão 22 anos de uma travessia sem fim. Uma brasileira enfrentou um desafio arriscado, não chegou ao objetivo final, mas acabou tornando o esporte que ela amava mais seguro. A história de Renata precisa ser sempre lembrada, ainda mais quando dois brasileiros acabaram de completar esse percurso que desafia atletas desde 1875.

Antes de contar o que aconteceu naquele 23 de agosto de 1988, algo importante para este espaço: o contexto da organização jurídica.

A organização de quase tudo passa por regras. Em casa não é preciso que sejam escritas, nem complexas. Elas dizem respeito a um círculo limitado de pessoas que vão estar informadas de qual é a organização que precisa ser respeitada. O Théo e a Lara, meus filhos de 5 e 7 anos, já sabem que, se um bater no outro, nada IPad, por exemplo.

Agora, quando envolve mais gente, é necessário criar regulamentos. Num universo transnacional como o da Lex Sportiva, é preciso haver critérios, regras e leis que garantam também segurança, física e esportiva, aos envolvidos no esporte. E essas são estabelecidas de diferentes maneiras, por meio do costume, da prática, dos diálogos, das provocações jurídicas que o próprio esporte vai sofrendo e, também, a partir de tragédias.

Agora, voltemos a história de uma jovem, talentosa, corajosa e determinada nadadora brasileira, Renata Câmara Agondi.

Com 25 anos ela decidiu enfrentar o Canal da Mancha, que está para os nadadores como o Everest para os alpinistas: um desafio gigante.

A travessia entre Inglaterra e França, nas águas geladas que ligam o oceano Atlântico ao Mar do Norte, impõe ao atleta outros complicadores além dos quilômetros de braçadas. A travessia é dificultada pelas baixas temperaturas, entre 12ºC e 17ºC, pelas mudanças climáticas, pela presença de manchas de esgoto e de óleo e mais de quatrocentas embarcações que cruzam esse trajeto todos os dias.

Claro que Renata se preparou para a prova. Além de ser nadadora de destaque no Brasil, passou a participar de travessias internacionais. Em 1986, dois anos antes da prova no Canal da Mancha, viajou para a Itália. Lá participou da travessia Capri-Nápoles, de 33 km de mar. Nove horas, num mar gelado, enfrentando águas-vivas, ondas e ventos. Ela chegou em terceiro na prova feminina e em sexto na classificação geral. Ela se tornou a primeira nadadora brasileira em águas abertas na elite internacional.

Renata chegou a Dover, na Inglaterra, para a travessia, acumulando 238 medalhas e 40 troféus, e na companhia de Judith Russo, uma amiga de Santos que se tornou uma espécie de treinadora dela. Judith seria a responsável por passar as instruções durante a prova.

Dias antes da largada, problemas.

Cada nadador é acompanhado por um barco. Nele vão, além do treinador, um piloto, um copiloto e um fiscal da travessia, o representante da organização da prova. O piloto do barco de Renata passou mal e indicou outra tripulação, com um novo barco. O barco Hilda May era mais alto do que o outro com o qual elas haviam treinado, o que dificultaria a entrega de alimentos. Além disso, Colin Cook e Graham Featherbee, piloto e copiloto, não tinham a mesma experiência, nem haviam treinado junto com Renata e Judith. Mesmo assim, a nadadora aceitou os novos parceiros.

O fiscal indicado pela organização para acompanhar Renata foi Mark Eduard Lewis, jovem nascido nos Estados Unidos. A nadadora brasileira não sabia que Lewis estava na Inglaterra na condição de acompanhante de um professor que tentaria a travessia por aqueles dias. A organização pediu a colaboração de Lewis, que aceitou, sem entender o tamanho da responsabilidade que tinha.

Às 8h22 do dia 23 de agosto de 1988, Renata partiu da praia de Shakespeare Beach em busca do maior feito na carreira: atravessar o Canal da Mancha. Ela treinou para isso. Estava pronta. Iria até o fim.

A primeira metade da prova foi fantástica. 80 movimentos de braço por minuto, vento leve e ritmo constante. Em menos de cinco horas já estava na segunda metade da travessia.

O problema foi o que aconteceu depois. Nas quatro horas seguintes, a brasileira não nadou mais do que 5 km. Renata estava nadando em uma rota errada. O barco não a ajudava a encontrar o caminho.

O barco de Colin Cook e Graham Featherbee não acompanhava a nadadora da maneira certa. Ele ultrapassava a nadadora e a deixava passar novamente, repetindo a manobra. Essa manobra não é a adequada, já que, quando o barco está à frente, o nadador força o pescoço para avistá-lo. Se o barco está atrás, o nadador está sem direção. Quem dá direção ao nadador em uma prova assim é o barco.

Mais de dez horas depois da largada, ela ainda estava longe da terra e nadando sem ir a lugar algum. Retomar a rota já não era mais possível. Não haveria fôlego e braço para tanto. A travessia precisava ser cancelada. O clima ficou tenso, já que a tripulação se deu conta do erro muito tarde. Com 10h45min de prova, eles aproximaram o barco da nadadora e jogaram a boia no mar. Renata viu a boia. Em razão do tempo e da boa performance, ela acreditou que estava perto da costa. Estava preparada para nadar até a praia. Se negou a segurar a boia – nas provas, agarrar a boia significa desistência, e encostar no barco representa desclassificação.

A equipe precisou acionar a Guarda Costeira para resgatar Renata. Ela foi retirada do mar a 7 km da chegada. De helicóptero, foi levada para um hospital de Calais, mas já era tarde. A nadadora morreu de parada cardíaca, provocada por hipotermia e exaustão.

Após cinco anos de processo, piloto e copiloto da embarcação foram condenados a seis anos de prisão.

E com a tragédia, o esporte também sofreu transformações.

Uma série de mudanças importantes foi tomada para deixar as provas de maratonas aquáticas mais seguras.

Agora, além do treinador, o piloto do barco de apoio também passou a ter o poder de interromper a prova quando entender que o atleta está correndo perigo. Além disso, os técnicos passaram a ser profissionais, não apenas acompanhantes dos atletas que “auxiliavam” na travessia.

O treinamento e a preparação dos barqueiros também estão em outro nível. Atualmente é preciso reservar um barco para a travessia cerca de dois anos antes da viagem, o que evita improvisos e imprevistos como no caso de 30 anos atrás. São poucos os barcos autorizados, todos preparados e equipados. Renata, por exemplo, não fez nenhuma reserva.

Não há informações mais precisas, mas estima-se que dez atletas já morreram durante a travessia. Sete deles, depois da tragédia de Renata. Ao todo, 28 brasileiros completaram a prova.

Atualmente, a Maratona Aquática Internacional de Santos é chamada de Troféu Renata Agondi, em homenagem à brasileira.

No dia 30 de julho deste ano, Mariana Chevalier se tornou a brasileira mais nova a cruzar o Canal da Mancha. Aos 16 anos, a nadadora curitibana fez a largada na Inglaterra às 5h30 e chegou à França 11 horas e 55 minutos depois, após superar forte correnteza no trecho final da prova. O brasileiro Márcio Junqueira, engenheiro capixaba de 48 anos, também conseguiu atravessar o canal. Os dois também têm muito a agradecer a Renata.

Por isso, quando se pensa naquele dia 23 de agosto de 1988, não se pode dizer que as mais de 42 mil braçadas de Renata não levaram a lugar algum. Elas não colocaram a brasileira em terra firme, mas ajudaram a deixar o esporte que conquistou Renata mais seguro para amigos e companheiros de travessias.

……….

Mais sobre:

Documentário “Renata”, baseado no livro “Revolution 9″, lançado em agosto de 2002 e dirigido por Rudá Andrade.
Livro “Renata AgondiRevolution 9″, escrito por Marcelo Teixeira e baseado nos diários da nadadora.

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Crédito imagem: Pixabay.

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