“Ele estava ali para finalizar os planos de uma nova liga independente composta pelos principais clubes profissionais do país (…). Havia apenas um último detalhe do negócio a ser avaliado antes que eles pudessem ser conduzidos a esse futuro glorioso (…).
Esse não era um detalhe menor. Por mais de dez anos, os homens que dirigiam o futebol (…) brigavam sobre como, quando e onde seus jogos deveriam ser exibidos na televisão – e, acima de tudo, quanto deveriam receber por isso. Encontrar uma solução para esse problema de uma vez por todas fez 22 homens que não conseguiam concordar em nada colocarem suas diferenças de lado e se unirem.”
O futebol brasileiro tem alguns temas recorrentes. Nesta semana, um deles voltou à tona: a possível criação de uma liga de clubes para gerir e organizar o campeonato brasileiro. Esse modelo não é nenhuma novidade para quem se liga no esporte bretão, sendo adotado em diversos países protagonistas do futebol mundial, cujos campeonatos nacionais de primeira divisão (e eventualmente até mesmo de divisões inferiores) não são organizados pelas respectivas federações nacionais, mas pelas… ligas.
De maneira geral, o termo “liga” é muitas vezes utilizado como sinônimo de “campeonato”, ligado àquele disputado durante toda a temporada em sistema de pontos corridos. Não raro se fazem referências à liga italiana, à liga espanhola e a outras tantas atribuindo-se esse significado – o que é incentivado, naturalmente, pelo fato de o nome dos torneios muitas vezes incluírem o termo (vide a Premier League e a La Liga).
Trazendo o debate para o campo jurídico, a intenção aparentemente manifestada pelos clubes que disputam a Série A do Campeonato Brasileiro (ao menos com base nas informações publicadas pelos veículos de comunicação) é de criar uma pessoa jurídica responsável pela gestão da referida competição. À luz da Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé), essa entidade (independentemente de se constituir como associação civil sem fins econômicos ou sociedade empresária) teria a natureza jurídica de “liga nacional”, que poderia integrar o Sistema Nacional do Desporto nos termos do art. 13 da citada lei.
A Lei Pelé apresenta ainda outros aspectos importantes ligados ao tema. O art. 16, § 2º define que a liga não é obrigada a se filiar ou se vincular a uma entidade nacional de administração do desporto (no caso do futebol, a CBF). Por sua vez, o art. 20 elenca uma série de disposições concernentes às ligas. O §2 º determina que os clubes devem comunicar a criação da liga à entidade nacional de administração do desporto da respectiva modalidade. O § 5º assegura a independência das ligas que assim desejem se manter, enquanto o § 6º equipara as “ligas formadas por entidades de prática desportiva envolvidas em competições de atletas profissionais” às entidades de administração do desporto para fins de aplicação da lei. Por fim, os §§ 3º e 7º resguardam às entidades nacionais de administração do desporto a competência de definir os calendários anuais das respectivas modalidades – podendo, ou não, inserir as competições geridas pelas ligas.
Em resumo, as normas destacadas asseguram a independência das ligas, mas simultaneamente ratificam o papel das entidades nacionais de administração do desporto na organização das modalidades esportivas sob sua ingerência.
Decorre precisamente daí (sem desprezar, claro, questões relativas à política das entidades) a iniciativa dos clubes ao procurarem a CBF para tratar do assunto. Liguemos os pontos: eles são livres para se organizarem em uma liga, mas a chancela da entidade nacional de administração do desporto é de extrema importância diante do sistema federativo cuja estrutura se preserva não apenas na Lex Sportiva, mas na própria legislação nacional. O basquete nos dá um ótimo exemplo em solo brasileiro: o Novo Basquete Brasil, principal competição masculina do país, é organizada pela Liga Nacional de Basquete e chancelada pela Confederação Brasileira de Basketball.
Para além das questões estritamente jurídicas, a notícia da intenção manifestada pelos clubes liga o alerta para outro aspecto: o relacionamento entre eles próprios. Infelizmente, o histórico recente revela dificuldades numa atuação conjunta entre os clubes, o que se manifestou de forma mais clara nas discussões concernentes à negociação de direitos televisivos após a ruptura do Clube dos 13. A própria Primeira Liga, criada por alguns clubes de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina (que poderia ser um esboço do movimento que agora parece ser ensaiado) ruiu em pouco tempo – sem jamais ter sido chancelada pelo sistema federativo e gerando rumores de desentendimentos quanto à divisão das cotas decorrentes da negociação de direitos de TV.
Por isso trouxemos no início do texto um trecho do livro A Liga (de autoria de Joshua Robinson e Jonathan Clegg, traduzido por Carlos Eduardo Mansur), que conta a história da Premier League. O trecho em questão trata dos momentos que antecederam a sua criação – e hoje sabemos o quão bem-sucedida foi essa iniciativa.
Na comparação fria entre Brasil e Inglaterra, os contextos são distintos e as ideias podem ser diferentes; mas no que tange ao cenário de (des)união dos clubes antes da consolidação de uma liga, considerando o exposto no livro, qualquer semelhança não parece ser mera coincidência. Sendo assim, fiquemos ligados no desenrolar dos fatos, para observarmos se o caminho dos ingleses será trilhado também por aqui. Somente depois poderemos responder: esse projeto vai dar liga?