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Vai pagar com o corpo! A excessiva punição pecuniária e física no esporte de combate japonês

”Se Anpo não puder pagar tanto dinheiro, então ele não terá escolha a não ser pagar com seu corpo [risos]”.

Nobuyuki Sakakibara, presidente do RIZIN

Introdução

No dia 28 de julho, na Saitama Super Arena, em Tóquio, Japão, a lenda do boxe Manny Pacquiao enfrentou o ex-campeão mundial de K-1 Kickboxing Rukiya Anpo em uma luta de exibição de boxe. A luta terminou sem resultado, como é comum em combates de exibição.

A luta aconteceu no evento Super Rizin 3, em 28 de julho, ao vivo da Saitama Super Arena, em Tóquio, Japão.

Pacquiao, nascido nas Filipinas, é considerado um dos maiores nomes da história do boxe. O ícone amealhou vários títulos mundiais em várias categorias de peso e organizações, conquistando o título linear em cinco divisões ao longo de sua carreira histórica.

Desde que se aposentou do boxe profissional, “Pac-Man”, como Pacquiao é conhecido, tem se ocupado com sua carreira política nas Filipinas, mas ainda continua a participar de vários combates.

O japonês Rukiya Anpo passou a vida inteira em esportes que envolviam chutes. Quando criança, ele venceu competições nacionais de caratê. Por fim, ele se dedicou ao kickboxing profissional e conquistou vários títulos no K-1 World GP.

A luta com regras especiais, semelhante ao boxe, foi uma exibição de três rounds. Anpo, mais conhecido por seus nocautes no kickboxing, não pode fazer uso de uma de suas principais armas: os chutes.

Outrossim, apesar da exibição dominante de Anpo – um kickboxer sem experiência pregressa em combates de boxe – a luta não teve resultado.

O que chamou a atenção foi a forma pela qual o evento resolveu garantir que Anpo não fizesse uso dos chutes: uma cláusula com previsão de multa de 5 milhões de dólares caso o atleta usasse o golpe, ilegal nas regras do boxe.

“Ele pagará com o corpo”: a cláusula penal com multa maior que o valor da bolsa do atleta

O presidente do RIZIN, Nobuyuki Sakakibara[1], explicou o que estava em jogo:

“Qualquer violação será punida com uma multa de US$ 5 milhões. Na época do Tenshin vs. Mayweather em 2018[2], esse valor era de aproximadamente 500 milhões de ienes. No entanto, devido ao enfraquecimento do iene, esse valor está agora em torno de 750 milhões de ienes [risos]. Se Anpo não puder pagar essa quantia, “então ele não terá outra escolha a não ser pagar com seu corpo [risos]”. (tradução nossa)

A principal razão para essa regra é que Manny não está condicionado a chutes nas pernas e provavelmente não tem ideia de como bloqueá-los, o que não é incomum para boxeadores. A cláusula com previsão de multa tem o condão de coibir que o atleta use dessa técnica para ganhar uma vantagem ilegal, não expondo a lenda a um dano que poderia ferir a sua imagem para os fãs, daí o alto valor.

Porém, salta aos olhos a dúvida de Sakakibara acerca da eventual impossibilidade de Anpo pagar a dívida caso aplicasse – propositalmente ou não – um chute em Manny. Ora, então a bolsa não seria capaz de cobrir uma multa nesse sentido? É justo que o valor da punição venha a ser maior que o valor do preço pago ao atleta para lutar?

Cumpre esclarecer que a cláusula que ora se discute, comumente chamada de cláusula penal, é uma cláusula em um contrato que busca tornar a contraparte responsável pelo pagamento de uma grande quantia em dinheiro se ela violar o contrato. Entretanto, essa soma de dinheiro geralmente não é proporcional à perda que será sofrida devido à violação. Em vez disso, a quantia é inflada, o que a torna excessiva em muitos casos.

Na verdade, as cláusulas penais são diferentes de outras cláusulas que discutem a concessão de danos, pois propõem uma quantia tão grande que “pune” a parte infratora, em vez de apenas compensar as perdas que ela causou. É por isso que elas são controversas e geralmente não podem ser aplicadas.

Ocorre que a atitude tradicional japonesa em relação aos contratos nesse sentido não é essencialmente diferente da norte-americana. A diferença é que no Ocidente o contrato é usado para definir direitos e deveres das partes por disposições detalhadas quando a boa vontade e a confiança entre as partes se rompem, enquanto os japoneses tendem a insistir no efeito contínuo da boa vontade e da confiança em todas as situações.

As regras japonesas sobre a formação de contrato são baseadas no princípio da liberdade de contrato. O artigo 521 do novo Código Civil japonês, que é intitulado “Liberdade de Conclusão e Termos de Contrato”, prescreve no parágrafo 1 que “salvo disposição em contrário em leis e regulamentos, qualquer pessoa pode decidir livremente se deve ou não celebrar um contrato”. Diz-se que o direito contratual japonês mostra uma forte adesão ao princípio da liberdade de forma em comparação com outras jurisdições.[3]

Não obstante o acima exposto, uma cláusula que limite os direitos ou pese a obrigação da outra parte de forma unilateral contra o princípio da boa-fé e da negociação justa, à luz do tipo e da natureza da transação ou da prática de mercado predominante, não será considerada como tendo sido acordada entre as partes.[4]

Uma cláusula penal é diferente, embora semelhante, de uma cláusula de indenização. Ambas as cláusulas exigem que o devedor pague uma determinada quantia no caso de descumprimento de uma obrigação; no entanto, uma cláusula penal permite que o credor exija do devedor uma indenização por perdas e danos, bem como a quantia fixa de dinheiro, porque o pagamento dessa quantia pelo devedor é simplesmente uma penalidade e não significa uma indenização por perdas e danos, ao contrário de uma cláusula de indenização por perdas e danos. Esta última impede que um credor faça uma demanda contra o devedor por mais do que o valor estabelecido no contrato.[5]

No Japão, embora os tribunais geralmente relutem em intervir em um contrato em razão da injustiça de seu conteúdo, eles estão dispostos a regulamentá-lo se ele for tão unilateral a ponto de dar uma vantagem excessiva a uma das partes. Esse tipo de contrato com grande disparidade entre as partes permite que os tribunais considerem que ele ou seus termos são inexequíveis como uma questão de interesse público, porque eles não podem mais deixá-lo como uma questão de interesse privado, mas podem considerá-lo inaceitável o suficiente para considerá-lo uma violação de política pública.[6]

A punição corporal dos atletas no Japão por descumprimento de regras

Ainda, com a possibilidade de tal multa ser superior ao pagamento que o atleta teve direito ao realizar o combate (bolsa), é digna da nota a declaração de Sakikabara de que Anpo teria que “pagar com o corpo”.

Historicamente, no Japão, o esporte era reconhecido como educação física, ao contrário da Europa e da América, onde era visto como lazer. Assim, no Japão, os esportes eram frequentemente praticados com base na relação hierárquica entre professor e aluno. Essa relação também está enraizada na cultura de Confúcio e no espírito samurai, com a regra de que é essencial respeitar os superiores. Dentro desse sistema de superioridade, é fácil para os instrutores irem longe demais ao instruir seus alunos com afinco (conhecido como Shigoki), o que resultou em casos de violações dos direitos humanos, como ferimentos que causam a morte e punição corporal excessiva.[7]

A afirmação feita por Sakikabara reflete exatamente a cultura japonesa de punição corporal dos atletas que descumprem regras. A punição corporal nos esportes em terras japonesas perdurou por muito tempo, durante o qual era extremamente difícil para os atletas levantarem a questão. No entanto, um escândalo ocorrido em 2013 mudou drasticamente a situação e, desde então, tem havido um forte movimento para eliminar a punição corporal nos esportes no Japão.

A punição corporal nos esportes perdurou por muito tempo, durante o qual era extremamente difícil para os atletas levantarem a questão. No entanto, um escândalo ocorrido em 2013 mudou drasticamente a situação e, desde então, tem havido um forte movimento para eliminar a punição corporal nos esportes no Japão.

Em janeiro de 2013, quinze judocas japonesas, incluindo judocas dos Jogos Olímpicos de Londres, apresentaram acusações de punição corporal contínua contra seu treinador principal. Esse incidente foi tratado com fúria pela mídia de massa japonesa e se tornou um grande escândalo.[8]

Também a partir desse sistema de superioridade, os atletas não podiam se opor às ações desses superiores, embora eles restringissem excessivamente os direitos humanos. Assim, os direitos humanos continuaram a ser amplamente restringidos, já que muitas vezes ninguém podia expressar suas opiniões (para os atletas, a objeção era vista como um protesto contra a autoridade e, como tal, eles corriam o risco de ter suas atividades esportivas interrompidas). Da mesma forma, mesmo que tais questões ocorressem, elas eram frequentemente tratadas internamente pelo mundo esportivo. Dada a pequena possibilidade de as disputas esportivas serem resolvidas por meio de mecanismos legais de resolução de disputas, poucos casos de violações de direitos humanos no esporte foram revelados no Japão.[9]

Considerações finais

Como esclarecido, a cláusula que previa milhões a título de multa em caso de um chute aplicado por Anpo provavelmente seria considerada ilegal em eventual litígio em cortes japonesas.

Como alternativa, poderia o evento simplesmente fazer uso da regra do boxe que prevê a desclassificação do atleta caso este usasse o golpe ilegal, aplicando-lhe uma multa contratual pertinente, se fosse o caso.

No entanto, em busca de proteger Pacquiao – uma das maiores estrelas do boxe nas décadas passadas e cuja presença no evento gerará milhões à promoção – de eventual golpe ilegal, o evento optou por se posicionar de maneira hostil em relação ao seu oponente, tornando pública, de maneira jocosa, uma disposição contratual que só expõe o nível de descompromisso do show para com seu contratado.

Não obstante, a luta, esta constante incógnita, que não se incomoda com questões econômicas, viu Anpo superar Pacquiao, ainda que a luta, como é protocolar em exibições, não tenha tido resultado.

Desta forma, o sonho de disputar novo cinturão no boxe às custas de uma vitória humilhante em cima do japonês, o que projetaria Manny em direção de tal intento, pode ter ficado pelo caminho, e Anpo, o cordeiro enviado para o abate, sem histórico no boxe e chamado para o evento um mês antes da luta, não precisou usar de seu potente jogo de chutes para tanto.

Crédito imagem: RIZIN

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[1] WHEATON, Timothy. $5 Million Fine for Kicking Manny Pacquiao in RIZIN. LowKickMMA, [S. l.], 22 jul. 2024.

[2] O invicto boxeador Floyd Mayweather enfrentou a lenda japonesa do kickboxing Tenshin Nasukawa em uma luta de exibição de boxe na Saitama Super Arena, em dezembro de 2018. Naquela ocasião, havia uma previsão de multa similar em valores a do combate entre Pacquiao e Anpo caso Tenshin aplicasse um chute em Floyd. Durante a luta, Tenshin foi visivelmente superado em termos de habilidades e experiência no boxe em comparação com Mayweather, sendo derrubado várias vezes durante a luta, fazendo com que o combate fosse interrompido no primeiro round. É importante lembrar que a transição de um esporte de combate para outro, especialmente contra um adversário altamente habilidoso como Mayweather, pode ser um desafio. O domínio de Mayweather na luta foi mais uma prova de sua proeza no boxe do que de qualquer falha por parte de Nasukawa.

[3] YOSHIMASA, Tomohiro. The principle of pacta sund servanda and its exception under Japanese contract law. In: WITZLEB, Normann et al. Contract Law in Changing Times. EUA: Routledge, 2023. cap. 5, p. 72-86.

[4] NAKAGAWA, Hidenori et al. Commercial contracts in Japan. Lexology, Japão, 22 ago. 2019. Disponível em: https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=55116a5e-0d19-4c8a-822f-7fcaf41ce46b. Acesso em: 28 jul. 2024.

[5] SONO, Hiroo et al. Contract Law in Japan. Holanda: Kluwer Law International B.V., 2018, p. 116.

[6] Ibid., p. 106.

[7] YAMAZAKI, Takuya. Sports Law in Japan. Holanda: Kluwer Law International B.V., 2022, p. 22.

[8] Ibid., p. 23.

[9] DOUGAUCHI, Masato et al. An Introduction to Sports Law. Japão: Minerva Shobou Ltd., 2011.

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