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VAR: um novo Zeus?

As pessoas adoram se abraçar na crença da infalibilidade, da perfeição, de entregar ao outro um destino seguro para si. Claro, assim se teria um mundo perfeito e sem responsabilidades.

A leitura de muitos quando da implantação do VAR foi essa. Acabaram-se os problemas, será o fim das injustiças, temos um “ente” todo-poderoso e senhor do jogo.

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Claro que não seria assim. Por vários motivos, rapidamente: a regra do futebol permite interpretação, o VAR é operado por pessoas, e não existe mundo perfeito, nem no esporte.

O VAR é um auxílio tecnológico para o árbitro, que continua autoridade máxima do jogo. Usar o VAR de escudo para fugir das responsabilidades tem sido uma tendência do árbitro nesse início de processo, como também é de todo ser humano assustado com um fato novo.

E erros acontecem. E quando ele é de mais de uma pessoa? Nosso ordenamento jurídico está sempre procurando diminuir o risco da impunidade,  como fez com a responsabilidade solidária no Estatuto do Torcedor. E como se proteger do VAR?

Entenda essa leitura sobre VAR, medo e responsabilidades com Martinho Neves, procurador de Justiça e novo colunista do Lei em Campo.

Spoiler: a estreia dele tem Zeus e está sensacional.

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VAR: um novo Zeus?

Por Martinho Neves Miranda

O primeiro case de Justiça Desportiva de que se tem notícia na história da humanidade remonta aos jogos fúnebres realizados pela morte de Pátroclo, tendo sido descrito por Homero em sua “Ilíada” como um processo surgido em virtude de uma corrida de carros que existiu entre Antíloco e Menelau.

Antíloco chega em primeiro, e Menelau contesta alegando que Antíloco cometeu uma irregularidade. Antíloco nega e é desafiado a dizer se juraria que não trapaceou diante de Zeus. Antíloco renuncia ao desafio e então se reconhece que ele venceu ilicitamente, dando-se a vitória a Menelau. Zeus é o senhor dos céus, o pai de todos os deuses e Deus supremo na mitologia grega. Por ser o Deus que mantém a ordem e justiça, seus olhos estão em todos os lugares. Sua ira implacável contra a injustiça fez com que o temor de Antíloco pela punição do divino fosse maior do que o seu desejo de ganhar deslealmente a competição.

Apesar de apresentar vicissitudes morais próprias de seres humanos imperfeitos, Zeus está acima de tudo e de todos. Do alto do monte Olimpo governa soberanamente a Terra. Suas decisões são definitivas, e seus procedimentos são inquestionáveis.

Milênios se passaram, e o homem pensou que poderia brincar de Zeus, ou de Deus, como queiram. A tecnologia introduzida no futebol por meio do árbitro assistente de vídeo (VAR) deu-nos a falsa impressão de que tudo estaria resolvido. A justiça sempre seria feita. Tal como Zeus, do alto de uma cabine inexpugnável, nenhum lance irregular escaparia das lentes espalhadas por um campo de futebol.

Mas os erros na análise dos lances começaram a surgir. Denúncias de falta de imparcialidade, traduzidas na seletividade com que o VAR escolhia os lances para serem revistos, tornaram-se recorrentes, e a fórmula tida como infalível mostrou-se incapaz de resolver todos os problemas, além de também haver criado outros…

É que nos esquecemos de que o olho que analisaria tais imagens continuaria a ser humano. Homens que detêm diferentes aptidões, que têm visões distintas de mundo, que diferem em moralidade e caráter e que, acima de tudo, são falíveis…

Por outro lado, o VAR serviu também para nos mostrar que a atividade do árbitro imita o trabalho do jurista. Ambos precisam emprestar algum significado àquilo que seus sentidos lhes transmitem.

Não importa que a letra da lei seja clara ou que a imagem do lance futebolístico se revele cristalina. Por mais evidente que tudo possa parecer aos nossos olhos, haverá a necessidade de darmos um significado àquilo que está sendo lido ou observado.

Tanto a linguagem quanto a imagem exigem interpretação, pois tanto uma mesma ideia pode ser expressa de modos diversos, quanto uma jogada pode ser encarada sob enfoques diferentes.

Mas, além da frustração, talvez o maior problema que o VAR nos tenha trazido – e ao qual poucos se atentaram até agora – é que esse sistema de auxílio aumenta, por mais paradoxal quanto possa parecer, as chances de impunidade. Impunidade não para atletas, treinadores e dirigentes, mas para os próprios árbitros, uma vez que o aumento do número de membros e o modus operandi dessa ferramenta fragmentam e dificultam a apuração de responsabilidades.

Com efeito, é sabido que, quanto maior o número de agentes que participam de uma ação danosa, maior a dificuldade de apontarem-se os seus responsáveis e individualizar a culpa de cada um. Ciente desse problema, o nosso ordenamento jurídico buscou, em inúmeras oportunidades, atenuar o risco de impunidade.

Assim, por exemplo, no Código do Consumidor, ao constatar a dificuldade que haveria de se comprovar o responsável pelo vício de um produto ou serviço, o CDC atribuiu responsabilidade solidária ao seu fornecedor.

Ou também o Estatuto do Torcedor, que, vendo que seria difícil para um espectador demonstrar o culpado pelo dano sofrido numa arena desportiva, fixou a responsabilidade solidária e objetiva na sua reparação entre as entidades que organizam a competição, a equipe detentora do mando de campo e todos os seus respectivos dirigentes.

Com relação aos danos provocados pelo VAR, não se pode fazer da mesma forma, uma vez que a responsabilidade aqui envolvida é a disciplinar, que exige a apuração individualizada de cada conduta a fim de aferir se ela é reprovável ou não.

Imagine-se quão difícil será apurar a culpa de cada um dos sete ou oito membros da arbitragem: o árbitro de vídeo dirá que a decisão final foi do árbitro de campo, que por sua vez responsabilizará o colega da cabine dizendo que foi influenciado para tanto… e rios de tinta poderiam ser gastos com as férteis alegações de todos os envolvidos.

O maior sinal de que o VAR se tornou impune é que, malgrado o fato de haver no Código Brasileiro de Justiça Desportiva um capítulo só de infrações cometidas pela arbitragem, seus membros não estão sendo denunciados pela Procuradoria por seus erros, e todas as impugnações de partida apresentadas pelos clubes prejudicados têm sido olimpicamente ignoradas.

Concebido à imagem e semelhança de Zeus, o VAR tornou-se não mais do que sua caricatura, pois da divindade grega nem de longe guarda sua infalível justiça, apenas a sua condição de um ser inatingível, posicionado acima de tudo e de todos.

Como Zeus, no monte Olimpo.

…………

Martinho Neves Miranda é ex-procurador do BNDES; advogado; procurador de carreira do município do Rio de Janeiro; árbitro do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem; auditor do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem; professor visitante da Universitè de LILLE da França; mestre em Novos Direitos pela UNESA; coordenador acadêmico da Universidade Cândido Mendes/RJ; professor de Direito Civil e de Direito Desportivo; autor do livro “O Direito no Desporto” e de várias obras nas áreas de direito Constitucional, Civil e Administrativo e trabalhista. Integrou a Comissão de Estudos Jurídicos do Ministério do Esporte, foi coordenador da Candidatura do Rio aos Jogos Panamericanos de 2007 e consultor jurídico para os Jogos Olímpicos de 2016.

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