As apostas e o varejo, embora operem em contextos diferentes, compartilham características comuns que podem gerar efeitos colaterais negativos para a população, tanto em termos de saúde mental quanto financeira. A sociedade frequentemente associa as apostas a riscos de vício e danos econômicos, mas muitas vezes ignora que o setor de varejo pode provocar problemas similares. Assim, é importante explorar as semelhanças entre ambos os setores, destacando os efeitos colaterais nocivos que eles podem causar, e refletir sobre o papel que o Estado deve desempenhar para mitigar esses impactos, sem cercear as liberdades individuais.
- Efeitos Nocivos das Apostas e do Varejo
Apostas e compras podem ser fontes de prazer e entretenimento, mas, quando feitas em excesso, ambas podem desencadear compulsões com graves consequências para o bem-estar mental e financeiro. No caso das apostas, há um consenso sobre os riscos de dependência, com estimativas indicando que entre 1% e 2% da população mundial sofrem de transtorno de jogo patológico[1]. Este vício pode resultar em problemas como endividamento severo, rompimento de relações pessoais e até questões legais.
De forma semelhante, o varejo também pode gerar comportamentos compulsivos, especialmente no contexto de consumo excessivo. Estudos apontam que cerca de 5,8% dos consumidores americanos sofrem de “Compulsive Buying Disorder” (CBD), que é o transtorno de compra compulsiva[2]. Esses indivíduos gastam de maneira descontrolada, o que frequentemente resulta em dívidas altas, uso irresponsável de cartões de crédito e, consequentemente, estresse financeiro.
Um dado alarmante indica que 93% das pessoas com problemas de saúde mental têm mais probabilidade de gastar excessivamente durante crises emocionais[3]. Este comportamento reflete o uso das compras como mecanismo de enfrentamento para sentimentos de ansiedade ou depressão, levando a uma espiral de consumo desnecessário que pode agravar tanto os problemas financeiros quanto os psicológicos.
Eventos de varejo como a Black Friday e grandes promoções contribuem para o consumo desenfreado, onde o apelo publicitário e as facilidades de crédito incentivam as pessoas a gastar além de suas possibilidades. Dados apontam que consumidores americanos gastaram mais de US$ 9 bilhões online apenas durante a Black Friday de 2020[4], um exemplo claro de como o marketing agressivo do varejo pode levar ao consumo compulsivo.
Os juros cobrados pelos cartões de crédito no Brasil são dos mais altos do mundo, com taxas que podem ultrapassar 300% ao ano. Este fator contribui significativamente para o endividamento da população, visto que muitas pessoas recorrem ao crédito rotativo ou parcelamentos para financiar compras impulsionadas por campanhas de marketing agressivas e promoções. Muitos varejistas oferecem cartões próprios, facilitando o acesso a crédito e fomentando o consumo.
As facilidades oferecidas pelo varejo, como o parcelamento sem juros, muitas vezes mascaram os verdadeiros custos das compras, levando os consumidores a um falso senso de controle financeiro. Quando os clientes não conseguem quitar o valor total da fatura, entram no crédito rotativo, cujas taxas elevadíssimas podem transformar pequenas compras em grandes dívidas. Ainda assim, não se cogita proibir o uso do cartão de crédito no varejo, assim como acaba de ser feito com relação às apostas, mercado no qual o cartão era responsável por menos de 1% do volume das transações realizadas[5].
Dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) – que atualmente pleiteia no Supremo Tribunal Federal a criminalização das apostas – mostram que, em fevereiro de 2023, 78,3% das famílias brasileiras relataram estar endividadas, e o cartão de crédito foi o principal meio utilizado para essas dívidas.[6] Esses números indicam que o consumo no varejo, quando mal administrado, pode gerar um ciclo de dependência e endividamento profundo, agravando problemas de saúde financeira e mental, até mais nocivos do que os encontrados nas apostas.[7]
- Comparação e Reflexão
Embora as apostas sejam vistas de maneira mais negativa pela sociedade, é essencial reconhecer que o varejo, com suas práticas de marketing, também pode criar um ambiente de dependência e endividamento. Em ambos os casos, o vício pode resultar em sérias consequências pessoais, incluindo o comprometimento de relações familiares e a deterioração da saúde mental.
A chave para resolver ambos os problemas está na educação e na informação. Os consumidores e jogadores precisam ser conscientizados sobre os riscos envolvidos em suas decisões, seja no ato de comprar ou de apostar.
A regulação governamental deve, principalmente, focar em informar as pessoas sobre os perigos do consumo excessivo e das apostas descontroladas. Dessa forma, o Estado pode criar políticas públicas que protejam os indivíduos, sem interferir diretamente em suas liberdades de escolha. Cabe a cada cidadão, munido de informações adequadas, fazer escolhas responsáveis e conscientes sobre como gastar seu dinheiro, seja em compras ou apostas.
Crédito imagem: Arte/UOL/Ana Carolina Takano
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[1] https://www.americangaming.org/resources/economic-impact-of-legalized-sports-betting/
[2] https://addictionresource.com/addiction/shopping/
[3] https://www.moneyandmentalhealth.org/publications/shopping-addiction/
[4] https://addictionresource.com/addiction/shopping/
[5] https://a8se.com/noticias/brasil/proibicao-de-cartao-de-credito-para-pagamento-de-apostas-online-e-antecipada/
[6] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/financas/juros-altos-aumentam-numero-de-endividados-entenda/
[7] https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/setor-de-comercio-pede-que-supremo-reconheca-lei-das-bets-como-inconstitucional/