Por Selma Melo
Em Victor/Victória, de 1982, o filme conta a história de uma mulher que se transveste de homem para conseguir emprego, sendo que se tratava de uma cantora fabulosa, com sua voz de soprano. Pode parecer absurdo, mas isso não lhe garantia uma oportunidade para demonstrar o seu incrível talento, já que as apresentações eram restritas ao sexo masculino. Sem sucesso e com dificuldades financeiras, passava dias e dias em testes exaustivos, em vários estabelecimentos, até que Victória conhece Carroll Todd, também cantor desempregado, que tem a ideia de vestir Victória como um homem, transformando-a em Victor. Travestida de Victor, Victória passa a ser um fenômeno dos palcos parisienses.
Sem que ninguém soubesse de sua verdadeira identidade, o gângster King Marchand, apaixonado pelos shows, fica espantado ao se perceber interessado por outro homem. É neste viés que se encontra no filme uma grande reflexão para a época e padrões sociais: os questionamentos sobre papéis femininos ou masculinos na sociedade. King, o gângster, é a materialização do macho alfa, que agride primeiro sem pensar nas consequências de seus atos. Ao descobrir que Victor é na realidade Victória, King exige que ela volte a ser o que ele julga o padrão feminino. Ao trazer este assunto, o diretor, levantou um questionamento sobre a valorização do trabalho feminino.
Para tanto, precisamos entender um pouco mais sobre a história da mulher e o porquê se faz tão importante e relevante debatermos sempre o tema.
No começo do século XX, nos Estados Unidos, o movimento de mulheres começa a repercutir pelo planeta. Esse movimento luta pela igualdade de condições entre homens e mulheres no sentido de que ambos tenham os mesmos direitos e as mesmas oportunidades.
Durante grande parte da história, os movimentos com foco na liberdade e respeito às mulheres tiveram líderes da Europa Ocidental e da América do Norte. No discurso de Sojourner Truth, feito em 1851 às norte-americanas e para todas as mulheres – independentemente da etnia, raça e origem social –, propôs formas de driblar as dificuldades e preconceitos em face do sexo feminino. Esta foi uma tendência muito acelerada na década de 1960 com o movimento pelos direitos civis, que surgiu nos EUA. Grandes mulheres como Ângela Davis e Alice Walker, por exemplo, compartilham do ponto de vista de Sojourner.
Na década de 1980, as mulheres argumentaram que a sociedade deveria observar como a experiência da mulher se relaciona ao racismo. Início de 1990, era defendido pelas mulheres que os papéis dos gêneros deveriam ser construídos com mudanças na sociedade, e que, a essa altura, seria impossível submeter a mulher a uma categoria inferior à do homem.
Em 1975, o dia 8 de março foi instituído como Dia Internacional das Mulheres pelas Nações Unidas, com a finalidade de lembrar suas conquistas no âmbito social, político e econômico, independentemente de cultura, raça ou religião.
No Brasil, este imenso e diversificado país, vivemos em tempos não tão libertadores para as minorias, ainda mais se esta “minoria” for mulher. Acompanhamos aos Jogos Olímpicos, onde as formas de inclusão foram inúmeras. A paridade de gênero ainda não é a ideal, mas o que vimos foi a crescente presença feminina em modalidades até então dominadas pelos homens. Em Tóquio 2020, o número de mulheres representou 46,5% da delegação, ficando atrás somente da marca de Atenas, em 2004, que foi de 49.39% da participação feminina.
Vejamos:
Aída dos Santos chegou à final do salto em altura em Tóquio 1964, única mulher na delegação brasileira e primeira a chegar em uma decisão olímpica, 4ª colocação. Durante 32 anos, foi o melhor resultado feminino do Brasil em Olimpíadas.
Em 27 de julho de 1996, quatro brasileiras disputavam uma final emocionante do vôlei de praia em Atlant, Sandra Pires / Jacqueline Silva e Adriana Samuel / Mônica Rodrigues – Sandra e Jacqueline conquistaram o ouro. Cem anos após o início dos Jogos Olímpicos da era moderna, o Brasil subia ao pódio com quatro mulheres.
De 1996 para cá, as mulheres foram crescendo dentro de todas as modalidades esportivas e olímpicas. Em Pequim 2008, Ketleyn Quadros, a primeira mulher a ganhar uma medalha de bronze em esportes individuais nas Olimpíadas; já em Londres 2012, ano em que foi permitida a participação de mulheres em todas as modalidades disputadas por homens, tivemos, Sarah Menezes ouro no judô, Mayra Aguiar bronze conquistou medalhas em 2012, 2016 e 2020, Rafaela Silva ouro nos Jogos Olímpicos Rio 2016 .
Apenas nas Olimpíadas de Tóquio 2021 foram seis medalhas conquistadas por mulheres: Rebeca Andrade (ouro na Ginástica Artística), Ana Marcela Cunha (ouro na maratona aquática), Beatriz Ferreira (prata no boxe), Rayssa Leal (prata no skate street), Laura Pigossi e Luisa Stefani (bronze no tênis feminino de duplas) e Mayra Aguiar (bronze no judô).
A participação feminina cresce em todas as áreas. Nos tornamos executivas, advogadas, professoras, juízas… Uma gama de profissões que, não podíamos ocupar, quiçá almejar. Um mundo onde o homem tem a errônea versão de que eles dominam na força bruta, e que neste fantasioso mundo a mulher é um artigo de decoração, um troféu, uma simples conquista, a mulher vem mostrando muita garra e competência profissional. Historicamente, o papel da mulher sempre foi muito além da maternidade e do lar.
Hoje, desempenham jornadas duplas, até triplas, pois são profissionais, mães, esposas e, nem por isso, deixam perder o que a essência grita de mais íntimo: ser mulher. O filme Victor ou Victória retrata a triste realidade do sexo feminino no mundo atual: a de ter que se “disfarçar” para poder exercer sua profissão, seus dons e suas vontades em pleno século XXI.
O que dizer do lamentável episódio que se deu recentemente, em uma partida de futebol carioca Sub-20 masculino, onde Paola Rodrigues José, assistente do trio de arbitragem, foi desrespeitada, xingada, em tom misógino, por torcedores e membros da delegação de um dos clubes? (matéria publicada pelo Uol em 23/08/21). Os ânimos se exaltam e, sem o mínimo de profissionalismo, menosprezam o trabalho de uma mulher por acharem que ali deveria estar um homem?
É lamentável que ainda hoje existam homens – gerados pelo ventre de uma mulher, faltem com o devido respeito. Mulheres não são objetos, nem troféus, nem propriedades e, muito menos, inferiores a nenhum outro ser humano. São profissionais que merecem e devem, sim, ter o respeito e a dignidade que tanto lutaram para conquistar. São e podem ser! Não precisam que as digam o que ou não fazer, onde podem ou não estar, quando podem ir ou vir.
Até quando estaremos diante do arcaico Victor ou Victória?
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Selma Melo: Advogada Desportiva; Auditora do Superior Tribunal de Justiça Antidopagem