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Vitória no jogo da vida

Era para ser um dos maiores confrontos da atual temporada da NFL. De um lado, o Buffalo Bills, um dos favoritos ao título. De outro lado, o Cincinnati Bengals, derrotado no último Super Bowl. Jogo único da segunda-feira, dia 02/01/2023, em horário nobre.

Enfim, todas as atenções estavam voltadas para a partida, que poderia definir qual equipe chegaria aos playoffs como cabeça-de-chave número 1 da AFC (uma das duas conferências da mais poderosa liga profissional esportiva dos Estados Unidos).

Faltavam cerca de 6 minutos para o encerramento do primeiro quarto quando Damar Hamlin, defensor do Buffalo Bills, chocou-se com Tee Higgins, jogador de ataque do Cincinnati Bengals. Segundos depois, o que parecia ser um lance casual se tornou um dos momentos mais dramáticos da história do futebol americano.

Hamlin, de apenas 24 anos, chegou a se levantar após o choque, mas caiu no gramado logo em seguida. Ele havia sofrido uma parada cardíaca. Embora as imagens não tenham sido mostradas diretamente para os telespectadores, os torcedores no estádio e as equipes de transmissão que cobriam o jogo ao vivo viram que o atleta precisou ser reanimado com o auxílio de um desfibrilador.

Damar Hamlin, literalmente, foi ressuscitado em campo diante de seus companheiros de time, de seus adversários, dos árbitros e das milhões de pessoas que acompanhavam o jogo em todo o mundo.

Passados 10 minutos de um angustiante atendimento, Hamlin foi levado de ambulância, em estado crítico, para o Centro Médico da Universidade de Cincinnati.

Como se soube depois, a causa da parada cardíaca sofrida por Damar Hamlin foi um fenômeno intitulado commotio cordis, que ocorre quando um impacto súbito e contundente no tórax gera uma perturbação elétrica que faz com que o coração deixe de bombear sangue para o cérebro e para o resto do corpo. Em outras palavras, trata-se de um evento que pode causar morte súbita em razão de uma arritmia cardíaca.

Aproximadamente 1 hora depois do terrível incidente, a NFL finalmente anunciou que o jogo não seria retomado. Chocados, os jogadores dos dois times haviam ido para os vestiários por iniciativas dos treinadores Sean McDermott (Bufallo Bills) e Zac Taylor (Cincinnati Bengals).

Durante a transmissão da partida, chegou a ser anunciado que os atletas teriam um período de 5 minutos para se reaquecerem antes de voltar a campo. Questionado posteriormente a respeito, Troy Vincent, vice-presidente executivo de operações de futebol da NFL, negou que isso tenha ocorrido:

Não tenho certeza de onde isso veio. Francamente, não havia período de tempo para os jogadores se aquecerem. (…) A única coisa que pedimos foi que o árbitro (…) se comunicasse com os dois treinadores para garantir que eles tivessem o tempo adequado dentro do vestiário a fim de discutir o que achavam melhor. (…) Sinceramente, nunca nos passou pela cabeça aquecer para retomar o jogo. Isso é ridículo. Isso é insensível.

Quando acordou, dias depois, no Centro Médico da Universidade de Cincinnati, a primeira coisa que Damar Hamlin perguntou, por escrito (naquele momento, ele ainda usava um tubo para respirar), foi: “Nós ganhamos?”

Segundo o Dr. Timothy Pritts, um dos responsáveis pelos cuidados ao atleta, a resposta foi: “Sim, Damar, você venceu. Você venceu o jogo da vida.

Depois de 3 semanas, com a incrível notícia de que o atleta chegou a visitar seus companheiros de time no dia 15/01/2023, tendo recebido alta após uma série de avaliações médicas e testes cardíacos, neurológicos e vasculares, Buffalo Bills e Cincinnati Bengals voltarão a se enfrentar neste domingo, dia 22/01/2023, desta vez pela semifinal da conferência AFC. Que roteiro!

O fato é que o caso Damar Hamlin merece a nossa atenção por diversos motivos. E chegou a hora de fazermos algumas reflexões a respeito.

A primeira delas passa, mais uma vez, por encararmos a realidade de que a natureza do jogo de futebol americano pressupõe choques violentos, algo que já abordamos nesta coluna quando tratamos das concussões sofridas pelo quarterback Tua Tagovailoa, do Miami Dolphins.

Em relação às lesões neurológicas causadas pelas pancadas na cabeça, sabe-se que a NFL firmou um acordo bilionário por meio do qual ex-atletas e familiares de ex-atletas têm acesso a um fundo destinado a pagar indenizações aos demandantes.

Tal acordo, que encerrou um litígio judicial iniciado em janeiro de 2012, representa uma solução minimamente aceitável para um problema de relações públicas que atormenta a liga há décadas. Porém, relativamente a Damar Hamlin, não estamos falando de lesões neurológicas decorrentes de uma concussão.

E se o atleta, que ainda está começando a carreira, tivesse ficado com sequelas irreversíveis em virtude da parada cardíaca? Estaria ele abrangido pelos termos desse acordo? Seria este o momento de a NFL pensar em algum tipo de pensionamento mais amplo, que não fique restrito à questão das concussões, uma vez que são frequentes outras espécies de lesões que também decorrem da violência do jogo?

Diante do que aconteceu (e do que poderia ter acontecido) com Damar Hamlin, os atletas de futebol americano mudarão suas perspectivas em relação às suas carreiras nesse esporte?

Daqui para a frente, como isso se refletirá nas negociações contratuais e nos seguros firmados para proteger financeiramente o futuro desses jogadores?

Será que os familiares daqueles que arriscam sua saúde em campo, como os pais dos jovens que estão iniciando suas trajetórias no futebol americano, passarão a ver o esporte com outros olhos?

Outra reflexão relevante: afinal, havia ou não, por parte da NFL, a intenção de retomar a partida por razões, obviamente, econômicas? Há quem ainda duvide da versão oficial de que a liga jamais pensou em reiniciar o jogo, atribuindo a decisão de cancelamento, unicamente, aos treinadores e atletas. Como os regulamentos da competição irão endereçar situações desse tipo nas próximas temporadas?

Enfim, as perguntas são muitas e a verdade é que a morte nunca esteve tão perto da NFL quanto no episódio de Damar Hamlin.

De qualquer forma, a par de tudo o que existe para ser analisado e debatido, as lições mais importantes que ficam são aquelas que nos mostram o quanto o esporte pode ser valioso para passar ao mundo mensagens e valores positivos.

Desde a noite da lesão, na qual torcedores de Bills e Bengals se uniram em vigília em frente ao Centro Médico da Universidade de Cincinnati, a instituição de caridade fundada por Damar Hamlin para dar brinquedos e propiciar outras ações em prol de crianças carentes já arrecadara quase US$ 9 milhões de dólares em doações.

Pela recuperação de Damar Hamlin, a população dos Estados Unidos, muito polarizada politicamente nos últimos tempos, tal como ocorre no Brasil, demonstrou uma empatia e um senso de comunidade que há muito não se via.

E todos nós, que amamos o esporte, fomos novamente lembrados de que não existe jogo mais importante do que o jogo da vida.

Crédito imagem: Getty Images

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