O título da coluna de hoje é a tradução livre de uma das primeiras frases de um vídeo que viralizou no Brasil nos últimos dias. Antes dessa fala do locutor, o vídeo mostra Cristiano Ronaldo, Neymar, Messi, Mbappé e Pogba em campo com o uniforme do Stevenage Football Club, que disputa a League Two – o equivalente à quarta divisão do futebol inglês. Mas como?
As imagens são do jogo FIFA 20, e o vídeo explica: a rede de fast food Burger King decidiu patrocinar o clube e utilizar sua exposição no videogame como plataforma de marketing. Para isso, lançou no segundo semestre de 2019 – pouco depois do lançamento do FIFA 20 – o Stevenage Challenge (“desafio Stevenage”). Basicamente, o patrocinador criou uma campanha publicitária que incentivava os jogadores de FIFA a comandar o Stevenage no jogo eletrônico e compartilhar nas redes sociais gols marcados com o time; em troca, os jogadores poderiam ganhar produtos do Burger King. O sucesso foi estrondoso, com mais de 25.000 (vinte e cinco mil!) gols compartilhados nas redes, e levou o clube a ser o mais selecionado no modo carreira[1] do FIFA 20, algo antes impensável para um modesto time da quarta divisão.
Em outras palavras, o que ocorreu foi a execução de uma brilhante estratégia de marketing desenvolvida pelo Burger King. Afinal, enquanto provavelmente celebrou um contrato de patrocínio de valores modestos (se comparados àqueles que permeiam a elite do futebol inglês, por exemplo), aproveitou-se da enorme exposição do game para levar sua marca a um imenso público. O ponto de partida dessa estratégia é justamente o fato de que o jogo exibe o uniforme oficial do clube, inclusive com seus patrocinadores (e no vídeo essa exposição fica bastante evidente).
Essa estratégia nos traz pelo menos duas reflexões sob o ponto de vista do direito e do esporte. Hoje abordaremos a primeira delas: como ela remete a algumas icônicas campanhas publicitárias associadas ao marketing de emboscada no esporte tradicional[2].
Antes de prosseguirmos, vale um alerta: não se sugere aqui que a estratégia adotada pelo Burger King configure marketing de emboscada, nem que contenha qualquer ilegalidade – inclusive porque não se tem acesso a todos os elementos necessários para essa análise. O que se pretende expor é que a lógica adotada pela empresa é similar à que orienta muitos casos de marketing de emboscada associados ao esporte.
Em breve resumo, o marketing de emboscada (ambush marketing, em inglês) se se caracteriza pela ativação de uma marca aproveitando-se de um evento de grande visibilidade, mas sem possuir autorização nem contrato de patrocínio ou congênere junto aos detentores dos direitos sobre o evento. Pode se dar de duas formas – por associação ou por intrusão. A título de ilustração, a “Lei Geral das Olimpíadas” (Lei nº 13.284/2016, que dispunha sobre medidas relativas especificamente aos Jogos Olímpicos Rio 2016) previa o marketing de emboscada como crime até 31 de dezembro de 2016, e fazia referência expressa a suas duas modalidades. Os tipos penais prescritos naquela lei definem bem as características de cada uma das espécies:
“Marketing de emboscada por associação
Art. 19. Divulgar marcas, produtos ou serviços, com o fim de alcançar vantagem econômica ou publicitária, por meio de associação direta ou indireta com os Jogos, sem autorização das entidades organizadoras ou de pessoa por elas indicada, induzindo terceiros a acreditar que tais marcas, produtos ou serviços são aprovados, autorizados ou endossados pelas entidades organizadoras.”
“Marketing de emboscada por intrusão
Art. 20. Expor marcas, negócios, estabelecimentos, produtos ou serviços ou praticar atividade promocional, sem autorização das entidades organizadoras ou de pessoa por elas indicada, atraindo de qualquer forma a atenção pública nos locais oficiais com o fim de obter vantagem econômica ou publicitária.”
A lógica por trás dessas práticas é relativamente simples, e seguimos tomando como exemplo os Jogos Olímpicos: para associar oficialmente uma marca aos Jogos Olímpicos, é preciso estabelecer vínculo contratual com o Comitê Olímpico Internacional (COI) ou com o Comitê Organizador dos Jogos. Ocorre que a aquisição desse direito de associação é, via de regra, é bastante onerosa, e em alguns casos nem sequer é possível – especialmente quando esse direito é previamente cedido ao seu concorrente, e com exclusividade. Ainda assim, as empresas que não patrocinam o evento buscam “pegar carona” na sua exposição para ativar suas marcas, de forma mais barata e causando confusão no espectador, como ensina Alexandre Mestre[3].
No caso do Stevenage Challenge, repita-se, não é possível aferir se houve alguma ilegalidade. Para isso, seria necessário conhecer, no mínimo, os termos do contrato entre o clube e o patrocinador, e também entre a English Football League[4] e a Electronic Arts (desenvolvedora do FIFA 20). De toda forma, pode-se presumir que desses contratos decorrem a exposição da marca do Burger King no uniforme do clube a fiel reprodução desse uniforme no jogo.
Ainda assim, o ponto que aqui levantamos é a lógica da estratégia de marketing adotada pela rede de fast food: patrocínio mais barato em função de ser um clube, em tese com menos visibilidade; aproveitamento da exposição mundial que lhe dá a presença no jogo de videogame (muito mais ampla que a exposição da League Two em si); e engajamento dos consumidores do FIFA 20 a partir da criação de um desafio com recompensas vinculadas a seus próprios produtos. Em outras palavras, o Burger King utilizou-se da visibilidade do FIFA 20 (via Stevenage) sem estabelecer nenhum negócio jurídico com a desenvolvedora do jogo, assim como, por exemplo, a Puma fez uso da exposição dos Jogos Olímpicos (via Usain Bolt) sem qualquer contrato de patrocínio com o COI ou o Comitê Organizador.
Nesse sentido, embora amplamente voltada ao público que joga videogame por mero entretenimento (e não necessariamente aos pro players), a campanha do Burger King traz a reboque um alerta ao universo dos eSports: em função de sua imensa exposição, os eSports podem apresentar um ambiente propício para a ocorrência de marketing de emboscada. Consequentemente, é importante que desenvolvedoras e organizações adotem medidas visando prevenir e/ou coibir práticas dessa natureza – valendo-se, inclusive, dos instrumentos jurídicos próprios para tanto.
Esse case também provoca um questionamento: o ambiente de um jogo eletrônico (como, por exemplo, o FIFA 20), por si só, pode ser considerado como “evento” para fins de aplicação do conceito tradicional de “marketing de emboscada”? O desenvolvimento a passos largos do esporte eletrônico como negócio sinaliza para uma resposta afirmativa – embora a análise mais adequada dependa sempre das circunstâncias de cada caso concreto.
Enfim, nota-se que o Stevenage Challenge traz à tona questões importantes relacionadas à possibilidade de marketing de emboscada nos jogos eletrônicos – e por consequência nos eSports. Além disso, a campanha também nos leva a outra reflexão importante: o contrato de licenciamento entre clubes (ou ligas) de futebol e desenvolvedoras de jogos eletrônicos da modalidade. Mas disso trataremos na próxima semana.
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[1] Esse modo de jogo envolve a condução do clube por diversas temporadas, sendo possível contratar e dispensar jogadores, subir de divisão, classificar-se para competições continentais, etc. Por isso, as imagens do vídeo viralizado exibem alguns do maiores nomes do futebol mundial como atletas do Stevenage.
[2] Alguns exemplos podem ser vistos em https://exame.com/marketing/10-acoes-de-marketing-de-emboscada-em-torneios-esportivos/ .
[3] MESTRE, Alexandre Miguel. Direito e Jogos Olímpicos. Almedina, 2008. p. 139-142.
[4] Conforme se extrai da notícia publicada pela própria English Football League (EFL) em https://www.efl.com/news/2017/august/ifollow-ea-sports-partners-with-efl-to-become-first-ever-sponsor-of-the-worldwide-service/, a Electronic Arts é parceira oficial da liga. Assim, são licenciados à franquia FIFA todos os clubes das três divisões organizadas pela EFL (os equivalentes a segunda, terceira e quarta divisões do futebol inglês) – incluindo o Stevenage.